Cacica Miranha diz que Funai foi alertada sobre conflito que resultou em três mortes em Coari (AM)
A origem do conflito seria a presença de não-indígenas na Terra Indígena Cajuhiri Atravessado, mas polícia investiga rixa entre famílias
O Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas iniciou nesta quarta-feira (15) no rio Solimões as buscas aos corpos dos indígenas Francisco Cardoso da Cruz, 63 anos, e Mateus Marins da Cruz, 41 anos, da etnia Miranha, que foram jogados por posseiros nas águas na manhã do dia 7 de janeiro, no município de Coari (a 363 quilômetros de Manaus) e morreram afogados. Três homens foram presos, segundo a Polícia Civil, e confessaram a autoria dos crimes. Eles também confessaram o envolvimento no assassinato de Joabe Marins da Cruz, que foi morto com um tiro de espingarda, na noite do dia 6 de janeiro, na casa da família, que fica na Terra Indígena Cajuhiri Atravessado. Francisco era marido da cacica Eunerina Marins da Cruz e Mateus e Joabe eram os filhos do casal.
Eunerina disse em entrevista à agência Amazônia Real que o motivo dos assassinatos é a coleta de castanha pelos posseiros dentro do território, que foi homologado em 2015. Ela contou que alertou à Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre a invasão dos não-indígenas nas áreas dos castanhais e sobre o aumento do conflito com eles, que vivem dentro da terra indígena ilegalmente.
“Eu já vinha alertando, pedindo para tomarem providências, dizendo que a gente não queria mais essas pessoas aqui, a não ser que fossem autorizadas por nós. Também fui na rádio, falei que este ano a coleta da castanha seria da nossa família, que ninguém poderia dividir o castanhal”, afirmou Eunerina Marins da Cruz.
O conflito não é de “índio contra índio”, completou a cacica, se referindo à comentários na cidade , segundo ela, de que seria uma contenda interna entre indígenas do território.
A assessoria de imprensa da Polícia Civil informou que os presos por acusação de homicídio são: Alex de Oliveira da Silva, 19 anos, Marlison Carvalho Bandeira, 37 anos, e Erivan Santos de Oliveira, 24 anos. Além deles, foram presos os irmãos Leandro e Mateus Oliveira da Silva, por posse ilegal de arma de fogo. Com eles, foram apreendidos uma espingarda calibre 16 e três espingardas calibre 20, um motor e um bote. A Polícia Civil não informou se as armas foram usadas para matar os indígenas.
Após as mortes dos três indígenas Miranha, a casa de um dos posseiros foi incendiada e objetos foram furtados, segundo a polícia, que está investigando uma possível vingança.
O delegado titular da Polícia Civil de Coari, José Afonso Barradas, confirmou que o motivo dos três assassinatos foi o conflito de territorial na TI Cajuhiri Atravessado, mas destacou que uma rixa entre famílias devido ao suposto roubo de uma espingarda dos posseiros pelos indígenas Miranha teria agravado a tensão entre eles.
O delegado Barradas disse que nos depoimentos os acusados contaram que para vingar o suposto roubo da espigarda, Marlison, Erivan e Alex, acompanhados e mais dois homens, se aproximaram de Joabe e efetuaram um disparo de arma de fogo contra ele. “Horas depois, para vingar a vítima, os irmãos de Joabe foram até uma comunidade à procura dos suspeitos. Quando estavam em uma embarcação a caminho, foram interceptados pelos autores do crime, que conseguiram derrubar os homens na água e fugiram no bote dos familiares de Joabe”, diz o delegado em nota da Polícia Civil.
À Amazônia Real, o delegado Barradas disse que abriu três inquéritos criminais para investigar os crimes. O primeiro, para investigar o assassinato de Joabe Marins da Cruz. O segundo, sobre os assassinatos de Francisco Cardoso da Cruz e Mateus Marins da Cruz. E o terceiro, para investigar o ataque da família Marins da Cruz contra a moradia da família de um dos autores dos assassinatos.
“A família dos indígenas foi até a casa deles e incendiou. Furtou todos os objetos da casa. Isso também está sendo investigado”, disse o delegado.
A reportagem não conseguiu falar de novo com a cacica Eunerina Marins da Cruz para ela responder sobre a informação repassada pelo delegado a respeito do incêndio e do furto na casa de uma dos posseiros.
Quem são os Miranha?
Os primeiros contatos com o povo Miranha ocorreram no século 19 por viajantes naturalistas. Originalmente, no território brasileiro, eles viviam na região do Médio Solimões e rio Japurá, nas regiões dos municípios de Tefé e Coari. A etnia também ocupa uma área da Colômbia. No século 20, foram fortemente impactados com a exploração da borracha. Neste período, também se iniciaram as primeiras demarcações. (saiba mais).
“Nós somos muitas famílias. Nesse momento temos oito famílias no Cajuhiri. Mas já têm muitas famílias Miranha de Coari querendo ir para Cajuari. Por isso que é importante que a Funai venha aqui para decidir sobre o que fazer com os não indígenas para que não haja mais conflitos. Tem posseiros que criaram comunidades ribeirinhas dentro do nosso território”, afirmou Eunerina Marins da Cruz.
Segundo ela, a TI Cajuhiri Atravessado é território tradicional dos Miranha, mas há algumas famílias das etnias Tikuna e Kambeba, originalmente do Alto Solimões, que foram autorizadas pela família Marins a viverem nessas terras.
Ela conta que desde a homologação, algumas famílias de posseiros, que viviam no local, receberam indenização para deixarem o território, mas outras permaneceram, com autorização dos Miranha. “A gente convive bem com eles, menos com essa família que matou meus filhos”, disse ela, sobre as pessoas que foram acusadas pelos assassinatos de seu marido e seu filho.
O presidente da Associação de Comunidades Indígenas de Coari (ACIC), Francisco Alves da Silva, da etnia Mayoruna, contou à Amazônia Real que o conflito na TI Cajuhiri Atravessado é de longa data por causa da coleta da castanha. Segundo ele, apenas a família de Eunerina Marins da Cruz é indígena na aldeia.
“Os Miranha já haviam avisado aos não-indígenas que neste ano a coleta seria deles. Mas a família não indígena não aceitou. Então, os Miranha foram lá tomar a castanha e ainda pegaram uma espingarda deles. Os outros revidaram com o tiro. Na viagem no dia seguinte, se encontraram no rio e brigaram”, afirmou. Foi Francisco Alves da Silva que denunciou as mortes, na matéria divulgada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), no último dia 9.
Segundo Francisco Alves da Silva, a família de Eunerina e Francisco da Cruz é grande e alternava a coleta de castanha entre si e entre a família dos não indígenas.
“Essa família de não indígenas era amiga dos Miranha e os Miranha foram deixando eles lá. Mas de um certo tempo para cá vieram se arranhando por causa de castanha. A Funai foi deixando, não tirou eles de lá, já era pra ter feito isso. Eu acredito que essa briga não vai parar enquanto a Funai não intervir. Está tendo muito conflito na região, não apenas no Cajuhiri Atravessado. Tem caça e pesca ilegal, e estão tirando muita madeira. Tem muita briga por causa dessas coisas”, afirmou.
Segundo Francisco Alves da Silva, a TI Cahuiri Atravessado é formada por outras comunidades, como Paxiubau e Fazendinha. Já Eunerina contou que o território tem apenas uma aldeia, Cajuhiri Atravessado, mesmo nome da terra indígena.
O que dizem as autoridades?
Em nota oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, afirmou que as mortes dos três indígenas Miranha, mas disse que “ao que se sabe trata-se de um conflito interno da comunidade”. O órgão indigenista também informou que estava “providenciando o deslocamento de servidores da Coordenação Regional de Manaus, bem como de representante da Procuradoria Federal Especializada, àquela localidade a fim de auxiliar na mediação da situação, juntamente com as autoridades competentes”.
A agência Amazônia Real enviou perguntas à assessoria de imprensa da Funai sobre o processo de desintrusão (medida legal de retirada de não indígenas) de posseiros no território Cajuhiri Atravessado, mas não obteve respostas até o fechamento desta reportagem. Até nesta quarta-feira, os servidores do órgão não haviam chegado a Coari, como prometeu a fundação.
Em entrevista à Amazônia Real, o delegado José Afonso Barradas atribuiu à ausência da Funai em Coari e à falta de atuação do órgão indigenista para evitar o conflito fundiário e os assassinatos dos três indígenas Miranha.
“Eu nunca vi a Funai vindo aqui para resolver essa situação. E se não vier para definir de quem é a terra, quem pode ficar e não ficar, a situação pode piorar, pode acontecer mais mortes”, disse Barradas.
O delegado disse que os acusados presos se identificaram como indígenas. “Eles aparecem na delegacia de cocar, falam que são indígenas. Eu não vou dizer se não são ou não. Quem tem que dizer é a Funai. Por isso que ela tem que vir aqui resolver isso”, afirmou.
À Amazônia Real, o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas informou, por meio de nota, que requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito policial, com pedido de envio imediato de equipe ao local para averiguação dos fatos. O MPF disse que “acompanha a demanda por regularização fundiária relativa à terra indígena Cajuhiri Atravessado desde 2004, por meio inquérito civil, e, desde a homologação do território indígena, segue acompanhando o processo de regularização, que inclui a desintrusão, também por meio de inquérito civil.”
Sobre os assassinatos dos Miranha, o MPF disse que “neste momento em que o órgão ainda não dispõe de informações mínimas sobre os fatos, é precipitado apontar ou afastar relação direta entre às mortes e o processo de desintrusão. O MPF só terá condições de apresentar tais conclusões após a finalização das investigações”.
Cacica perdeu marido e filhos
A Amazônia Real conversou com Eunerina Marins da Cruz a respeito da tragédia que se abateu sobre sua família. Mãe de oito filhos (seis homens e duas mulheres), ela assumiu a liderança da Terra Indígena Cajuhiri, desde que foi homologada, em 2015, com 12.500 hectares, durante a presidência de Dilma Rousseff (PT).
Segundo o levantamento do site Terras Indígenas, do Instituto Socioambiental, o território tem 51 pessoas, mas o número é muito maior, segundo Eunerina. Ela contou que Cajuhiri Atravessado tem oito famílias e que muitos Miranha que vivem hoje na zona urbana de Coari querem viver no território indígena.
“O nosso território vem de muitos anos, de nossos antepassados, os Marins. Esse povo que está lá, da dona Enedida, nora do Alex, que matou meu filho, não é da nossa terra. Eles estão há muitos anos com nós. Veio ela, o marido, o genro, tudo. Começou quando um irmão meu pegou carona com a família deles de barco e encontrou comida na casa deles. Contando com a bondade que fizeram com ele, fomos deixando a família ficar. Tinha um servidor antigo da Funai que foi deixando eles ficarem. Ele dizia para ela: ‘vai orando, vai orando, que vai dar certo’. Mas depois de um tempo eles não aceitaram mais os nossos critérios. Não queriam deixar a gente roçar. Não deixaram mais a gente tirar castanha. Por isso que a gente queria que eles voltassem para a terra deles, que é Bananal e Aranaí”, relata Eunerina.
Segundo Eunerina, nos últimos três anos, sua família foi impedida de extrair castanha para poder vender nos flutuantes em Coari. Seu marido, que era o mateiro da aldeia e responsável pela coleta, passou a ser ameaçado. Eunerina então, transferiu o cargo de “comanda da castanha” para um dos filhos, Jame Marins da Cruz.
“A gente disse que ‘o ano da castanha’ seria nosso. Que não era para as outras famílias retirarem. A coleta vai de janeiro a março e a gente guarda para melhorar os preços e vender nos flutuantes em Coari, que é a nossa renda, pagamos dívidas com ela. Eles [família dos autores dos assassinatos] não davam brecha para nós, só eles se davam bem e ficaram com raiva”, explicou.
Para a cacica Eunerina, o verdadeiro alvo do tiro de espingarda seria Jame, e não Joabe, que era o professor da aldeia. Ela relata que Joabe estava sozinho na casa da família na noite do dia 6 de janeiro com a esposa, quando foi atacado e morto, por volta de 21h. Os outros irmãos tinham ido para casa de uma tia para assistir televisão.
“Depois do tiro, meu irmão e outras pessoas ficaram na casa vigiando a noite inteira. O Joabe, ferido, foi trazido para Coari, mas já estava morto. Voltamos para uma casa que temos em Coari e nos deu um grande vazio. Quando foi cinco horas da manhã (dia 7), meu marido se desesperou muito. Pegou meus filhos Samuel, Moabe e Marcos e foram buscar o Jame, que estava correndo risco. Infelizmente eles não se prepararam para essa viagem”, disse ela.
Conforme Eunerina, seu marido e os três filhos cruzaram com o grupo que tinha assassinado Joabe a 200 metros da margem da aldeia Cahuiri Atravessado. “Minha família ia numa canoinha subindo o rio e os outros, descendo. Tiveram uma grande luta de braço. Meus filhos foram de mão abanando, sem nenhuma arma. Os assassinos estavam de espingarda. Obrigaram meu marido o meus filhos a se jogarem n´água. E ainda deram muita coronhada”, disse.
Segundo seu relato, Moabe conseguiu nadar levando o pai, mas Francisco não conseguiu resistir à dificuldade nas águas pesadas e barrentas do rio Solimões. “Marido era diabético, hipertenso. Meu filho ainda nadou muito tempo levando ele. Mas meu marido endureceu as pernas, estava afundando e levantando. Foi quando ele disse: ‘meu filho, segue em frente’. O Moabe viu o pai sumindo nas águas e conseguiu chegar na margem, nadou quase nas últimas. Como ele tem treinamento de agente de saúde, meteu o dedo na boca e saiu muita água. Meu outro filho, Samuel, conseguiu ser salvo por moradores da comunidade. Os dois estavam quase mortos. O meu outro filho, Mateus, sumiu. Não sei se deram tiro nele, se voltaram para matá-lo”.
Em choque com a perda de três familiares, Eurenina conta que neste momento difícil e de desespero, o que mais deseja é que seu marido e seu filho sejam encontrados. “Estou me sentindo muito frágil. A nossa luta nesse momento é que os corpos sejam encontrados”, diz.
A Amazônia Real não conseguiu localizar advogados de defesa ou parentes dos acusados pelos assassinatos.