11/11/2019

Presidente da Funai nomeia profissionais desqualificados e ex-assessor de deputado ruralista para coordenar demarcações

A Associação Brasileira de Antropologia soltou uma nota denunciando interferência política em assunto de caráter técnico

Marcha Pataxó e Tupinambá por demarcação de terras e contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Marcha Pataxó e Tupinambá por demarcação de terras e contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Assessoria de Comunicação – Cimi

Profissionais não qualificados estão sendo nomeados pelo presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier da Silva, para coordenar e realizar estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas no lugar de antropólogos e antropólogas com qualificação atestada. Ao menos dois grupos técnicos foram desconstituídos nas últimas semanas, o que motivou a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) a divulgar uma nota denunciando a interferência política da atual gestão do órgão indigenista em assunto de caráter técnico.

“Segundo consta na documentação que chegou até nós, a medida teria sido ordenada pela Presidência do órgão, que solicitou a alteração dos componentes dos grupos técnicos, constituídos por meio de portaria, sendo substituídos por “antropólogos de confiança”. E pelo que nos chega, outras medidas semelhantes estão em gestação”, de acordo com trecho da nota divulgada pela ABA.

O presidente da Funai é delegado da Polícia Federal. Em 2017, Xavier atuou na assessoria de deputados da bancada ruralista na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai que investigou o órgão e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O inquérito final pediu 67 indiciamentos, entre os alvos antropólogos e antropólogas com envolvimento no trabalho de identificação e delimitação territorial. Nenhum destes indiciamentos prosperou no âmbito judicial pela completa ausência de provas e diálogo com a realidade factual.

Os grupos de trabalho desfeitos pelo presidente da Funai iam realizar a identificação e delimitação das áreas reivindicadas pelo povo Tuxi, com portaria publicada em 15 de agosto de 2019, e do povo Pankará de Serrote dos Campos, com portaria publicada em 10 de outubro de 2019. As duas Terras Indígenas estão localizadas no estado de Pernambuco. Os antropólogos coordenadores dos grupos foram substituídos, de acordo com a ABA, por pessoas sem conhecimento e experiência profissional na implementação das atribuições da Funai.

Em comum, além da interferência, os dois grupos de trabalho foram portariados, com prazo legal de ida a campo, por determinação da Justiça Federal em ações do Ministério Público federal (MPF). Como a Funai, por orientação do presidente da República, tem se negado a realizar os trabalhos de identificação e delimitação de Terras Indígenas, uma saída encontrada pelos povos indígenas é exigir na Justiça Federal a ida a campo dos grupos de trabalho. Há o temor de que mais ingerências do tipo ocorram país afora, numa nítida tentativa de ludibriar juízes que ao decidirem pela garantia do direito indígena acabam determinando a entrada de indivíduos com más intenções nos territórios.

A ABA informou ao MPF e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que os ditos “antropólogos” impostos pela Presidência da Funai de fato não são antropólogos. “Ao que parece, eles frequentaram unicamente um curso de “especialização em antropologia”, o que do ponto de vista desta Associação é insuficiente para o exercício de um trabalho científico envolvendo estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental necessários à identificação e delimitação de uma Terra Indígena”, diz trecho da nota.

A Associação salienta ainda que “setores econômicos e políticos incomodados e contrariados à implementação do estabelecido na Constituição Federal de 1988 no tocante aos direitos dos povos indígenas no país”. A nota faz referência ao Protocolo de Brasília: laudos antropológicos: condições para o exercício de um trabalho científico, elaborado pela ABA em 2015, um conjunto de orientações para a ação do antropólogo em situações de perícia e resultado dos debates científicos sobre o papel dos antropólogos e da antropologia no reconhecimento de direitos territoriais e culturais diferenciados no Brasil.

Indígenas em marcha contra os cortes na educação. Foto por Adi Spezia

Indígenas realizam protesto na frente do Palácio do Planalto: governo anti-indígena e antidemocrático. Crédito da foto: Adi Spezia/Cimi

Os escolhidos do presidente

No dia 30 de outubro, o presidente da Funai excluiu do Grupo de Trabalho Tuxi a antropóloga Vânia Rocha Fialho, coordenadora do GT, e Ugo Maia Andrade, antropólogo assistente. Os dois profissionais são reconhecidos pela ABA, detêm prestígio entre a comunidade de pesquisadores e histórico de trabalho com perícia e laudos envolvendo Terras Indígenas.

Vânia Fialho é professora Adjunta da Universidade Estadual de Pernambuco e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Já Ugo Maia é doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Departamento de Ciências Sociais e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Para o lugar dos profissionais destituídos, o presidente da Funai nomeou Cláudio Eduardo Badaró como antropólogo coordenador do Grupo de Trabalho. Badaró é também desde setembro assessor nomeado do presidente da Funai e possui apenas uma especialização em antropologia, obtida em 2008 na Universidade Sagrado Coração, com sede em Bauru, interior de São Paulo. Antonio Walter Ribeiro de Barros Junior orientou Badaró durante a especialização sendo ele professor adjunto especial da Universidade Sagrado Coração, onde exerce o cargo de coordenador da especialização Lato Sensu em Antropologia. Sobre o currículo de Antonio Walter cabe um exame.

O orientador de Badaró na especialização tem graduação em Direito pela Instituição Toledo de Ensino, mestrado e doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo, onde concluiu em 2008, e mais recentemente, em 2016, conseguiu o diploma de Gastronomia na Universidade do Sagrado Coração. Nenhuma pós-graduação em antropologia tampouco experiência na realização de laudos, tema do trabalho de Badaró para a conclusão da especialização orientado por Antonio Walter: ‘Perícia Antropológica – Singularidades e Desafios’.

Servidores da Funai estenderam faixa durante audiência pública na Câmara dos Deputados. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Servidores da Funai estenderam faixa durante audiência pública na Câmara dos Deputados. Crédito da foto: Tiago Miotto/Cimi

Ex-assessor de parlamentar ruralista

No caso do Grupo de Trabalho da Terra Indígena Serrote dos Campos, do povo Pankará, o presidente da Funai destituiu, também em 30 de outubro, dois servidores especializados do próprio órgão indigenista. Foram retirados o antropólogo Ivson José Ferreira, coordenador do Grupo de Trabalho, servidor lotado na Coordenação Técnica Local (CTL) de Recife (PE), e o antropólogo Maurício Dias Schneider, assistente, servidor lotado na Coordenação Geral de Identificação e Delimitação da Funai.

Para o lugar dos profissionais, ambos com amplo reconhecimento na comunidade científica e quadros técnicos da própria Funai, foi nomeado Joany Marcelo Arantes, ex-assessor parlamentar do deputado federal Homero Pereira, falecido em outubro de 2013. O deputado presidiu a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e se posicionava contra as demarcações. Atuou com destaque na defesa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215. A proposta visava transferir do Poder Executivo para o Poder Legislativo o ato administrativo de demarcar as terras indígenas.

Além disso, Joany Marcelo Arantes também não possui nenhuma qualificação determinada pela ABA para executar as atribuições da Funai. O único título que ostenta é a especialização em antropologia da Universidade Sagrado Coração cuja orientação do trabalho de conclusão foi realizada por Cláudio Eduardo Badaró.

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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