STJ reconhece resolução, decide por perícia em processo Kaingang, mas nega tradução e intérprete para o caso
Ministros da 6ª Turma do STJ reconhecem Resolução 287 e Convenção 169 da OIT, mas afirmam que indígenas falam português
Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu parcial provimento, nesta terça-feira (1º), ao habeas corpus que pedia tradução do processo penal, intérprete e perícia antropológica na ação que corre na Justiça Federal de Erechim e acusa 19 Kaingang pela morte de dois agricultores durante conflito ocorrido em abril de 2014, no município de Faxinalzinho, Alto Uruguai (RS).
Por três votos a dois, os ministros decidiram assegurar a realização da perícia antropológica, após a sentença de pronúncia, para que o laudo contribua em eventual julgamento pelo Tribunal do Júri. Nesse quesito, acompanharam o voto do relator, ministro Rogério Schietti Cruz, a ministra Laurita Vaz e o ministro Sebastião Reis.
Já nos pedidos para intérprete e tradução do processo penal, os cinco ministros da 6ª Turma votaram contra, mesmo reconhecendo as diretrizes para a matéria oferecidas pela Resolução 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelos artigos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Para os ministros, o conteúdo dos autos mostra que os Kanigang são fluentes na língua portuguesa.
A Assessoria Jurídica do Conselho indigenista Missionário (Cimi), autora do habeas corpus e defesa dos 19 Kaingang, irá recorrer da decisão junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Todos os indígenas respondem em liberdade. Cinco deles chegaram a ser presos sem qualquer evidência de participação e seguem inscritos, junto aos outros 14, nos crimes dos quais são acusados de forma genérica e sem individualização de condutas no processo penal. Os Kaingang acusados são das terras indígenas Votouro e Kandoia.
Durante 2014, o povo Kaingang realizou mobilizações pela regularização de seus territórios tradicionais, inclusive pedindo indenização aos agricultores com terras sobrepostas ao território indígena.
A prisão dos cinco Kaingang, em tal contexto, ocorreu durante uma mesa de diálogo sobre demarcações, em que o ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, por coincidência, cancelou a ida de última hora. Quem apareceu foi a Polícia Federal e as cinco lideranças foram levadas presas.
Resolução 287 do CNJ
Antes de ingressar com o habeas corpus no STJ, a defesa dos Kaingang fez o mesmo pedido ao juiz da ação na Justiça Federal de Erechim, mas o magistrado indeferiu a solicitação. A defesa recorreu então ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que manteve a decisão de primeira instância.
Conforme argumenta a defesa dos indígenas, a tradução do processo na língua Kaingang, um intérprete nas oitivas e perícia antropológica, realizado por um perito nomeado pelo próprio tribunal, são direitos referendados pela Constituição Federal, pela Convenção 169 e agora pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com a Resolução 287, publicada em 25 de junho de 2019.
A resolução estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. A resolução determina ainda a observação a convenções internacionais.
De acordo com o artigo 5º “a autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte”. Neste mesmo artigo, a resolução do CNJ diz que a presença do intérprete pode ocorrer mediante solicitação da defesa ou da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Já no artigo 6º, a resolução determina que “ao receber denúncia ou queixa em desfavor de pessoa indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada”.
Neste laudo deve constar a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada; as circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas da pessoa acusada; os usos, os costumes e as tradições da comunidade indígena a qual se vincula; o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros.
Amigos da corte
Após a negativa do TRF-4 ao direito dos indígenas à tradução, dez organizações de defesa dos direitos humanos, entre instituições da Colômbia, México, Peru e Estados Unidos, e clínicas de direitos humanos de universidades do Brasil e do Canadá, ingressaram no processo com pedido de amicus curiae (amigos da corte) ao STJ.
O relator da ação, ministro Rogério Schietti Cruz, não aceitou os ingressos, mas incorporou as petições respectivas ao processo legal.
O amicus curiae é um instrumento pelo qual instituições com conhecimento e atuação reconhecidas no tema em discussão pela corte podem participar de processos, produzindo subsídios e contribuindo para a qualificação da decisão a ser tomada pelo tribunal.
A Fundação para o Devido Processo Legal, uma das organizações que ingressaram com pedido de amicus curiae, se posicionou em nota afirmando que o Brasil “é um dos poucos países do continente no qual um juiz penal pode aferir, sem qualquer apoio em perícia antropológica ou linguística, o grau de compreensão do indígena sobre um determinado idioma”.
Atentando aos parâmetros do Direito Comparado e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, as organizações apontam que a tradução, a interpretação e a perícia antropológica devem ser observadas desde a primeira etapa do processo penal para evitar que o devido processo legal e a ampla defesa sejam prejudicados.