19/07/2019

Terra tradicional, reza, roça e mutirão: o segundo encontro roça e Bem Viver Kaiowá e Guarani

“Quem tem roça tá sossegado para comer com sua família. Quem não tem, não tem paradeiro” – Nhande Ru Ataná Teixeira

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

Por Lídia Farias de Oliveira, do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, e Sandra Procópio, da FAIND/MS

Na cosmovisão Kaiowá e Guarani, Tekohá é “o lugar onde se poder Ser”, é como estes povos definem terra/território tradicional, o lugar onde se respeita o modo de ser destes povos, com suas culturas, crenças, línguas e tradições. Este conceito de terra indígena, onde são permitidos os usos e costumes dos povos indígenas e as relações com as terras tradicionais, também está garantido na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231.

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens ( Art. 231. CF/88).

No Mato Grosso do Sul (MS), o direito aos territórios tradicionais dos povos Kaiowa e Guarani vem sendo negado, por séculos, condicionando estes povos a viverem à margem, impossibilitados de serem que realmente São. Confinados em minúsculas reservas, como é o caso da aldeia Tey’i Kue, na cidade de Caarapó, ao sul de MS com 3.500 hectares de extensão, contando com uma população de mais de oito mil indígenas. A aldeia e os tekoha’s da região de Caarapó se tornaram conhecidos a nível nacional e internacional, principalmente depois do massacre sofrido pelos indígenas em 2016, chamado de massacre de Caarapó, que vitimou Clodiode Aquileu Rodrigues, deixando cinco indígenas baleados e outros seis feridos.

O povo Kaiowá e Guarani luta para garantir os seus territórios, assim poderão ter paz, segurança, liberdade, sementes tradicionais e alimentação de qualidade para todos os membros de suas comunidades, luta para que a Mãe Terra possa permanecer em pé gerando vida para esta e para as futuras gerações, luta para que as crianças destes povos tenham um lugar para existirem e reproduzirem o jeito de ser Kaiowá e Guarani.

Na contramão do sonho Kaiowa e Guarani, estão as investidas econômicas do sistema capitalista, onde o lucro está acima de tudo, onde, segundo Anastacio Peralta, “um boi vale mais que uma criança, onde um pé de soja vale mais que um pé de cedro”. A prova disso é que, nos últimos anos, com a falta de territórios, a fome tem assolado uma parcela significativa das comunidades Kaiowá e Guarani. O que resta para muitos neste momento são as cestas básicas fornecidas pela Funai e que, segundo os próprios indígenas, os alimentos distribuídos nelas não chegam nem até a metade do mês.

Na atual conjuntura brasileira, ter conhecimentos de roça, ter sementes, e ter condições de plantar sua alimentação, está dentro do que se pode chamar apenas de “sobrevivência”. Para discutir isto e também a importância das roças para soberania alimentar dos povos indígenas no cenário nacional, o povo Kaiowá e Guarani realizou no mês de junho de 2019 o segundo encontro sobre roça com tema: Roça, espaço de afirmação e resistência na luta pelo viver Kaiowa e Guarani.

“Sem sementes não há futuro. As sementes são como as crianças, precisam ser bem recebidas e abençoadas para que possam viver felizes na terra”

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

2° encontro de roça e Bem Viver Kaiowá e Guarani – Temity Ara

O encontro contou com a participação de representantes de 26 tekoha e cinco reservas indígenas do cone sul do Mato Grosso do Sul, reunindo 53 espécies de sementes. Destas, nove espécies eram de milhos, alimento considerado sagrado pelo povo Kaiowá e Guarani. Além disso, doze espécies de mudas, entre frutas e madeiráveis, foram trocadas entre os indígenas e demais participantes do encontro.

Com a duração de três dias, o encontro aconteceu às vésperas do dia 24 de junho, dia do Temity Ara (dia do Plantio), ou seja, o dia em que se iniciam as atividades agrícolas no calendário Kaiowá e Guarani. Neste dia, todas as sementes a serem plantadas serão batizadas, bem como o espaço onde a futura roça será feita.

Segundo Atana, Nhanderu da aldeia Limão Verde, “sem sementes não há futuro. As sementes são como as crianças, elas precisam ser bem recebidas e abençoadas para que possam viver felizes na terra”. O rezador considerou ainda que “quem tem roça está sossegado com suas famílias, quem não tem, não tem paradeiro”, ou seja, está perdido tendo que encontrar alimentos para o seu grupo familiar.

Para o povo Kaiowá e Guarani, reza, semente e roça não se separam, estão interligadas

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

A reflexões trouxeram à tona a histórica desigualdade na distribuição das terras na região, ocasionando às famílias indígenas a situação de confinamento humano. A falta de território impacta diretamente na perpetuação dos seus conhecimentos tradicionais. Sem lugar para plantar, e com uma política de cesta básica para compensar a falta do território, os conhecimentos são interrompidos entre as gerações. Parte considerável da geração de jovens já não conhece mais os segredos do plantio, das roças, colheitas, rezas, tradições. “Sem as nossas terras, a terra dos nossos ancestrais, as crianças e jovens de hoje não sabem mais usar ferramentas de roça como machete, enxada, e etc, estamos perdendo nossas crianças para a morte”, denuncia Valdomiro, de Tajasu Iguá.

Elpidio, liderança do tekoha Potrero Guasu, no município de Paranhos (MS), demostrou muita preocupação com o envenenamento da natureza, lembrando que neste governo muitos agrotóxicos vêm sendo liberados. Ele teme pela saúde da Mãe Terra: “eles colocam veneno no aviãozinho, mais não cai só nas lavouras de soja, cai sobre nossas aldeias, a agua é contaminada e as crianças sofrem com dor de barriga e problemas respiratórios”.

Para o povo Kaiowá e Guarani, reza, semente e roça não se separam, estão interligadas. As rezas são importantes para que as sementes possam germinar, crescer, ficar grandes e saudáveis, por isso durante todo o encontro os mais de 40 Nhande ru (nosso pai) e Nhande si (nossa mãe) presentes, rezavam sobre a terra, sementes, pessoas e animais para que os males se afastassem daquele lugar sagrado, o tekoha Tey’i Jusu, que envolveu toda a comunidade para receber as quase 200 pessoas para o segundo encontro de roça. A comunidade preparou, além de uma alimentação deliciosa, aconchegantes espaços para o pouso. Durante as três noites do encontro, grandes rodas de guaxiré (dança de alegria) se formavam próximas às fogueiras.

Apesar de tantas violências sofridas pelos Kaiowá e Guarani, os indígenas resistem e protegem suas sementes tradicionais como tesouros

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

Foto: Lídia Farias/Cimi regional Mato Grosso do Sul

Camponeses do estado do Paraná doaram para o encontro 400 kg de sementes diversas e orgânicas como amendoim, milho e feijão, o que fez com que todos os participantes pudessem levar para as suas aldeias uma diversidade grande de sementes abençoadas para as próximas roças.

Desde 2008, a escola Nhandejara Polo e outras escolas da reserva Tey’i Kue realizam a cerimônia do Temity Ara no dia 24 de junho na sede da aldeia. Em 2019, pela primeira vez, os professores e alunos foram participar do ritual em um tekoha situado nos arredores da Reserva. A área do tekoha Tey’i Jusu foi recuperada pelos indígenas no ano de 2015.

Este encontro deu conta de mostrar que, apesar de tantas formas de violência sofridas pelo povo Kaiowá e Guarani, os indígenas resistem e protegem suas sementes tradicionais como tesouros. Em função disso, os rezadores provocaram um próximo encontro sobre roça em 2020, na mesma época do ano, assim como um encontro especial de troca de sementes Kaiowá e Guarani.

Assim caminha o povo Kaiowá e Guarani, com muita resistência e luta pela recuperação de seus territórios tradicionais, contrários ao marco temporal, tentando preservar sua organização social e política e também lutando para recuperar sua soberania alimentar e sua autonomia de produção, com resistência e determinação na luta por seus tekoha.

Lídia Farias de Oliveira – CIMI/MS

Sandra Procópio – FAIND/MS

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