10/07/2019

Incêndio destrói casa de reza Guarani Kaiowá na reserva de Dourados

Indígenas denunciam que incêndio, ocorrido na manhã de segunda-feira (8), foi criminoso

Cinzas da casa de reza de seu Getúlio e dona Alda, na reserva de Dourados. Foto: povo Guarani Kaiowá

Cinzas da casa de reza de seu Getúlio e dona Alda, na reserva de Dourados. Foto: povo Guarani Kaiowá

Por Assessoria de Comunicação do Cimi

Cerca de vinte minutos bastaram para que o fogo consumisse uma casa de reza Guarani e Kaiowá na manhã de segunda-feira (8), na reserva de Dourados, no Mato Grosso do Sul. O casal de rezadores da casa denominada Gwyra Nhe’engatu Amba, Getúlio Juca e Alda Silva, denunciam que o incêndio que destruiu o espaço sagrado foi criminoso.

“Eu estava sozinho aqui, fazendo artesanato, e vi fumaça ao lado da casa de reza. Tinham botado fogo. Eu corri para apagar, tentei jogar água, mas não teve jeito. Queimou tudo, quase chegou a pegar fogo na minha casa, que é junto da casa de reza”, explica seu Getúlio, morador da aldeia Jaguapiru, uma das duas que compõem a reserva de Dourados.

À distância, ele conta que ainda conseguiu ver um homem correr e se embrenhar em um milharal, embora não tenha conseguido identificá-lo. Os indígenas chamaram os bombeiros, mas eles não chegaram a tempo de aplacar as chamas que destruíram a estrutura tradicional, feita de madeira e coberta com palha de sapé.

“Quando os bombeiros chegaram, já não tinha mais nada. Estamos muito tristes, essa casa de reza é a nossa vida. Quando ela queima, a gente também queima”, relata a professora Guarani Kaiowá Aldineia Oliveira, filha de seu Getúlio e dona Alda.

O incêndio também destruiu diversos instrumentos sagrados que eram armazenados na ogapysy, como é chamada a casa de reza. Foram perdidos cocares, vestes tradicionais, takuapu’s e mbaraka’s – estes últimos, instrumentos utilizados por mulheres e homens nas cerimônias de reza.

O que mais abalou os rezadores e a comunidade, entretanto, foi a queima de um antigo Xiru, altar com enorme significado espiritual para os Guarani Kaiowá e que, por isso, precisa ser tratado com muito cuidado.

“O Xiru para os Kaiowá é o espaço onde o diálogo com o Sagrado acontece”, explica Flávio Vicente Machado, missionário do Cimi regional Mato Grosso do Sul. “Ele é o sustentáculo do Mundo Espiritual, reunindo os espíritos que habitam a casa, as árvores, a água, e dá harmonia à vida no ambiente”.

Ao todo, foram três xirus queimados, conta seu Getúlio. “Eu defendi um xiru e um mbaraka. O resto queimou tudo”, relata.

Ainda abalados com a perda, Getúlio e Alda convocaram rezadores de outros tekoha para fazer orações no local incendiado, no intuito de evitar as possíveis consequências espirituais da queima do Xiru.

“Já amanhecemos hoje [terça] rezando, amanhã também vamos amanhecer. São três noites fazendo oração para acalmar o espírito do Xiru, porque ele não pode ser queimado. Não pode nem ser retirado de um lugar para o outro sem pedir licença”, explica Getúlio.

“Espiritualmente, fica tudo na casa de reza, e ficar sem ela é perigoso, pode dar muita doença brava. Se começar a crescer a doença, ninguém consegue combater, só a reza. Vamos fazer três dias e três noites de reza para não acontecer isso”, conta ele.

“A casa de reza não era só nossa, era dos jovens, do nhanderu, da Sesai, da escola, era de todo mundo”

Casa de reza da aldeia Jaguapiru era referência cultural e sediava diversos encontros, como este, da RAJ - Retomada Aty Jovem, organização da juventude Guarani e Kaiowá. Foto: Ana Mendes/Cimi

Casa de reza da aldeia Jaguapiru era referência cultural e sediava diversos encontros, como este, da RAJ – Retomada Aty Jovem, organização da juventude Guarani e Kaiowá. Foto: Ana Mendes/Cimi

Referência e resistência cultural

Além do aspecto espiritual, a casa de reza do nhanderu Getúlio e da nhandesy Alda – termos utilizados pelos Guarani e Kaiowá para se referir aos rezadores e rezadoras e que podem ser traduzidos, respectivamente, como “nosso pai” e “nossa mãe” – era uma referência social e cultural para os Guarani e Kaiowá na reserva de Dourados.

“A casa de reza não era só nossa, era dos jovens, do nhanderu, da Sesai, da escola, era de todo mundo”, explica Aldineia. Ela conta que, em 14 de agosto, o espaço sediaria o encontro Kunhague Jeroky Guasu Marangatu, de rezadoras tradicionais. “Ficamos tristes, mas não vamos baixar a cabeça. Mesmo sem a casa de reza, vamos fazer a assembleia”.

Maior do município de Dourados, a casa de rezas queimada também tinha um importante sentido de resistência cultural e política, explica Machado.

“A casa de seu Getúlio e dona Alda era um centro que recebia várias atividades, tanto do movimento indígena quanto da própria sociedade e, inclusive, de instituições estatais. Lá havia mutirões para emitir certidões de nascimento, por exemplo, e era um espaço de referência não só pelo aspecto tradicional, mas também por esses benefícios coletivos que trazia para a reserva”, explica o missionário.

“Isso também chama atenção para a situação de crise humanitária em que se encontra a reserva de Dourados. Existem cerca de oitenta igrejas evangélicas na reserva, enquanto havia apenas duas casas de reza. Esse espaço acabava sendo uma resistência a essa situação, por ser um ponto focal da cultura e do modo de vida tradicional, assim como de acesso às políticas públicas”, aponta.

Por diversas vezes, o espaço queimado sediou encontros culturais, de articulação e de mobilização dos Guarani e Kaiowá, motivo pelo qual sua destruição gerou forte comoção entre o povo.

“Para nós, esse incêndio é um massacre. É como se morresse também o corpo de um de nós. Uma ogapysy representa muita coisa, é onde aprendemos com os nossos rezadores, que são nossos mestres, a nossa espiritualidade. Muitas pessoas não respeitam porque não sabem a importância e porque não entendem o poder que tem o Xiru”, lamenta Eliseu Lopes, liderança da Aty Guasu, a grande assembleia Guarani e Kaiowá.

A Aty Guasu emitiu uma nota de pesar, na qual lamenta a queima da casa de reza, pede respeito aos rezadores e rezadoras e solicita apoio para a reconstrução do espaço.

“A queima de casas de reza é uma violência simbólica e religiosa contra os Guarani e Kaiowá. Ela tenta minar não só o poder espiritual, mas também o poder político que está vinculado àquele ambiente”

Rezadores oram sobre as cinzas da ogapysy na aldeia Jaguapiru, em Dourados. Foto: povo Guarani Kaiowá

Rezadores oram sobre as cinzas da ogapysy na aldeia Jaguapiru, em Dourados. Foto: povo Guarani Kaiowá

Conflitos e confinamento

Com o passar dos anos, o regime de confinamento dos Guarani e Kaiowá em pequenas reservas estabelecido no início do século XX pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) gerou situações críticas. Na reserva de Dourados, cerca de quinze mil indígenas espremem-se em 3600 hectares, onde, impossibilitados de praticar seu modo de vida tradicional, convivem com altos índices de violência.

“São vários problemas aqui na aldeia”, explica seu Getúlio. “Arrendamento, brigas entre indígenas, venda de armas de fogo, álcool e drogas, brancos que compram casas aqui dentro. Tudo isso a comunidade tem reclamado e quer que a Justiça veja”.

O rezador relata receber ameaças e acredita que sua atuação como liderança cultural está na origem do crime contra sua ogapysy. “Sofremos ameaças por causa de bebida, drogas e de não indígenas que moram aqui na reserva e que trazem álcool e drogas aqui para a aldeia”, conta ele. A situação já foi denunciada ao Ministério Público Federal (MPF).

“Teremos que começar do zero novamente, porque queimou tudo. Esperamos que dê tudo certo através da nossa cultura”

Indígenas denunciam que incêndio da casa de reza foi criminoso. Foto: povo Guarani Kaiowá

Indígenas denunciam que incêndio da casa de reza foi criminoso. Foto: povo Guarani Kaiowá

Violência simbólica

Essa não é a primeira vez que a casa de reza de Getúlio Juca e Alda Silva é queimada. Em 2009, outra ogapysy já havia sido destruída por um incêndio criminoso. “A anterior foi queimada com dois anos de uso, por causa da ameaça de arrendatário, que o MPF impediu naquele ano de plantar soja dentro da reserva. Essa que queimou agora iria fazer dez anos em dezembro”, afirma o rezador.

“A queima de casas de reza é uma violência simbólica e religiosa contra os Guarani e Kaiowá já de muito tempo. Ela tenta minar não só o poder espiritual, mas também o poder político que está vinculado àquele ambiente. Em 2006, inclusive, houve uma onda de queima de casas de reza que estimulou o MPF a fazer um acordo com as igrejas evangélicas, naquela época, para evitar essas práticas de intolerância”, relembra Flávio.

“É importante lembrar que a casa de reza é um dos símbolos que representa a herança espiritual familiar Kaiowá, que atravessa gerações, acolhendo os desafios do dia-a-dia que, no diálogo com a fé, vão gestando respostas. É a materialização da vida Kaiowá e de sua fé. Todo crente sabe que no santuário também está a esperança que o poder religioso provoca. E, por isso, sua destruição é algo emocionalmente violento, de total desolação. Além de, neste caso, gerar uma desordem no mundo espiritual, desesperançar a família, chegando a beirar a perda de um ente querido”, explica o missionário.

Apesar da tristeza, a família de dona Alda e seu Getúlio já começa a buscar apoio para construir uma nova casa de rezas. A intenção, explica Aldineia, é tê-la pronta até o Jerosy Puku, o tradicional ritual do milho sagrado.

“Em outubro, a gente vai plantar o milho jakaira, o saboró, e até janeiro ele já está pronto para ser batizado e utilizado no Jerosy Puku, que é em fevereiro”, planeja a Kaiowá. “Nós já estávamos pedindo a colaboração de todos para renovar a casa, que tinha dez anos. Agora, vamos precisar de ajuda para reconstruir”.

“Teremos que começar do zero novamente, porque queimou tudo. Esperamos que dê tudo certo através da nossa cultura”, almeja seu pai.

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