Lideranças Guarani Kaiowá participam de curso que busca resgatar prática agroflorestais
Durante o curso, lideranças denunciam o uso abusivo dos agrotóxicos e a expansão da monocultura nos territórios tradicionais
Com objetivo de resgatar as práticas, princípios e processos agroflorestais cerca de 50 pessoas, entre elas representantes indígenas Guarani Kaiowá participaram do curso “Agrofloresta: práticas, princípios e processos” promovido pela Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas, em Fátima de São Lourenço no Mato Grosso, entre os dias 7 e 9 de junho. Para Irmã Cristina de Souza, uma das participantes do curso, “a Congregação, através desta atividade, quer incentivar a construção do conhecimento sobre a importância de se produzir alimentos e conservar o meio ambiente, como um espaço de acolhida de todos os seres”. Neste sentido, o curso vem ao encontro com o momento histórico de crise de sentido e de falta de cuidado com a Casa Comum, conforme a encíclica Ladauto Si., do Papa Francisco.
Ao longo dos três dias, os participantes, entre eles Eliseu Lopes Guarani Kaiowá, representante da Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá) e Edemar Kaiowá, da Retomada da Aty Jovem (Raj), debateram temáticas relevantes ao território dos povos e comunidade tradicionais. Questões estas ainda mais relevantes diante do momento em que vivemos no país e no mundo com relação aos direitos dos povos e da Mãe Terra.
Sintropia foi um dos temas norteadores do curso. O conceito atraiu a atenção e foi a base para as reflexões. “Sintropia é o contrário de entropia, que é a dissipação de energias nos sistemas”, conforme assessor do curso, Antônio Gomides. Ele explica ainda que “Sintropia é então a força que gera ou capta energia para os sistemas e seres vivos ou não presentes no Universo”. No que tange sistemas agroflorestais, esta força seria a fotossíntese das plantas.
“O curso instigou em nós inquietações desafiadoras para as relações com a vida que o sistema capitalista nos empurrou”
Antônio instigou nos participantes, inquietações desafiadoras para as relações com a vida, refletindo que o sistema capitalista nos empurra, aos olhos da ambição humana, que as florestas e os bens comuns da natureza são vistos apenas como mercadorias, possibilidades de ganhar dinheiro. A biodiversidade foi substituída pelas plantações de cana de açúcar e milho transgênico, assim como pelas fazendas agropecuárias. Observações que motivaram questionamentos: será possível o homem moderno viver em harmonia com a Mãe Natureza?
Na avaliação das lideranças é possível. No entanto, exigirá mudanças radicais. Serão necessárias mudanças em nosso modo de ser e se relacionar com o meio. Lembram ainda que não é impossível conseguir calcular a valor da água, da chuva, da mata, do ar, da respiração. Não será possível obter vida futura caso não seja preservado agora o que ainda temos.
“O meio ambiente necessita de cuidados como o corpo humano”
Uma das consequências deste modelo desenfreado de produção é o envenenamento da natureza, os agrotóxicos, chamados pelo agronegócio de insumos ou defensivos agrícolas. A liberação e uso de agrotóxicos cresceu muito, só neste ano foram liberados mais de 160 novos produtos para uso na agricultura brasileira, resultando no aumento de doenças causadas pelo uso abusivo destas substâncias, entre eles a intoxicação por agrotóxicos e os altos índices de câncer registrados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
As doenças, fruto da irresponsabilidade social com a natureza, foi outro tema abordado durante o curso. “O meio ambiente necessita de cuidados como o corpo humano”, os agrotóxicos matam todas as possibilidades de vida existente na Mãe Terra, causando desequilíbrio e favorecendo o aparecimento de ‘pragas’ na produção agrícola”, aponta Antônio Gomides.
É preciso lembrar que quanto mais agrotóxicos estiverem sendo despejado mais estará destruindo a natureza, logo, o ser humano também sofre as consequências. Fator este que segundo Eliseu Lopes Kaiowá Guarani, “é bastante preocupante pois têm gerado problemas de saúde e conflitos com fazendeiros”.
Por sua vez, o encontro situa-se como um espaço de reflexão onde podemos perceber que todas as espécies existentes na Casa Comum têm funções importantes para a preservação da vida. O homem é apenas uma parte de um sistema inteligente, e não o mais inteligente. Isso porque, o homem tem sua base na agricultura de processos de vida e não na agricultura de insumos tecnológicos.
“Esperamos colocar em prática e ir ensinando os outros para que possam manter a floresta e também plantar nosso próprio alimento”
Inspirado na filosofia de vida de Ernst Gotsch, que preocupado com a vida no futuro, desenvolveu em sua propriedade no Sul da Bahia uma agrofloresta de abundância, recuperando 14 nascentes e transformando 350 hectares de terra completamente degradados em uma floresta rica em biodiversidade. Para Ernst, o maior insumo utilizado na sua forma de agricultura é o saber. Saber observar a natureza e os seus tempos, propicia as melhores formas de agricultura. Os princípios de Ernst, a conexão com a natureza e a forma que os participantes veem a Mãe Terra é semelhante ao modo como os povos indígenas a veem e a tratam.
“Nós indígenas sempre plantamos, mas não com essa experiência técnica. Esperamos colocar em prática e ir ensinando os outros para que possam manter a floresta e também plantar nosso próprio alimento”, avalia a liderança Guarani Kaiowá. Que ainda aponta a importância da troca de experiências “principalmente para nós que queremos colocar em prática na nossa comunidade, essas orientações de como lidar um sistema agroflorestal”.
O Mato Grosso do Sul concentra a segunda maior população indígena do país e possui a menor densidade demográfica na posse e usufruto destes povos. “A morosidade do Estado brasileiro em reconhecer o direito dos povos a seus territórios tradicionais tem gerado muito sofrimento para estas comunidades. As terras no Cerrado são a menina dos olhos para o Agronegócio, logo se tem aqui terras e povos tratados com bastante violência”, denuncia Eliseu.
“A morosidade do Estado brasileiro em reconhecer o direito dos povos a seus territórios tradicionais tem gerado muito sofrimento para estas comunidades”
Cansados de viver confinados em pequenas áreas, buscando condições melhores de vida, os Kaiowá e Guarani iniciaram um processo de retorno a seus territórios tradicionais nos últimos anos, para eles os sistemas agroflorestais parecem ser uma alternativa viável de sobrevivência para estas comunidades. Já que o sistema se torna abundante a partir de uma ação humana consciente, que gera reciprocidade e cuidado com a Casa Comum.
Os povos indígenas são conectados aos seus antepassados por meio da memória cultuada há séculos. Conforme Antônio, “nós, filhos modernos desta sociedade, esquecemos nossas memórias a cada novo nascimento”. E completa: “devastar ou destruir as florestas é como crucificar Jesus de novo, Jesus é a Vida e a Mãe Natureza é a vida que ele deixou para que nós cuidássemos dela e ela de nós”.