27/05/2019

“Por que esse homem ainda tá vivo?”

Há dois anos, cerca de 30 indígenas do povo Akroá-Gamella sofreram um ataque de mais de 200 pessoas incitadas por ruralistas. Entre os mais de 20 feridos, dois indígenas tiveram as mãos decepadas

“Às vezes passo necessidade por não poder ir pescar, por não poder caçar um bichinho pra comer”, conta Aldeli de Jesus Ribeiro Akroá-Gamella. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

“Às vezes passo necessidade por não poder ir pescar, por não poder caçar um bichinho pra comer”, conta Aldeli de Jesus Ribeiro Akroá-Gamella. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Por Sabrina Felipe, no Intercept Brasil

O inverno amazônico é quente. Em Viana, noroeste do Maranhão, fazia 26 graus às cinco da tarde, mas parecia mais por causa do mormaço das chuvas constantes. A umidade do ar e o suor colavam a roupa no corpo, aumentando a sensação de calor. Contrariando a quentura, Aldeli vestia um roupão grosso e felpudo. Mas não era frio que ele sentia. Era dor.

“São os ferros que esfriam com a chuva”, me disse. Placas de metal foram implantadas nos dois antebraços de Aldeli para unirem as mãos novamente ao corpo: seus membros foram brutalmente decepados a golpes de facão na tarde de 30 de abril de 2017.

Naquele dia, mais de 200 pessoas atacaram com armas de fogo, facões e pedaços de pau cerca de 30 indígenas Akroá-Gamella, uma etnia que tenta há quatro décadas a demarcação de suas terras tradicionais no Maranhão.

O ataque aconteceu quando os indígenas tentavam retomar as terras de seus antepassados sobre as quais o comerciante Jamilo Aires Pinto assentou uma propriedade rural privada nos meados do século 20. Por meio de grilagem, dezenas de povoados foram sobrepostos ao território tradicional Taquaritiua, que o povo Akroá-Gamella ocupa pelo menos desde o século 18.

Segundo documentos históricos, os indígenas perderam suas terras durante o século passado, quando fazendeiros e grileiros invadiram o local e registraram a posse das terras em cartório. Na ocasião, o único documento físico que os indígenas tinham para comprovar a propriedade – um registro de doação da coroa portuguesa – foi perdido. Os indígenas tentam há décadas retomar suas terras, mas o processo de demarcação é lento e burocrático. Em 2014, em uma assembleia, eles se autodeclararam povo Akroá-Gamella e começaram o processo de retomada das terras, ocupando as fazendas. Quatro delas foram retomadas e os indígenas se reestabeleceram em partes do território ancestral. Mas, na quinta, eles foram massacrados.

Mapa do século 18 identifica “Terra dos Índios” ainda em 1765 na região de Viana, Maranhão (no alto, à esquerda). Mapa: Domínio Público

Mapa do século 18 identifica “Terra dos Índios” ainda em 1765 na região de Viana, Maranhão (no alto, à esquerda). Mapa: Domínio Público

Naquele 30 de abril, a retomada mal havia se concretizado no interior da fazenda quando os cerca de 30 Akroá-Gamella, entre mulheres, homens e adolescentes, foram surpreendidos por gritos de ódio da multidão e uma “chuva de balas”. Os agressores vieram de cinco povoados que se ergueram sobre as terras indígenas, a pouco mais de 215 km da capital São Luís.

Aldeli de Jesus Ribeiro Akroá-Gamella, hoje com 39 anos, foi um dos 22 indígenas feridos. Um homem o golpeou com facão diversas vezes, arrancando quase por completo suas mãos, que ficaram penduradas por um mínimo pedaço de pele. Na testa, a lâmina abriu um corte profundo de cerca de 10 centímetros de comprimento. Um tiro pegou de raspão no tórax, outro quebrou sua perna esquerda. Uma bala segue alojada em seu corpo.

Na época, o governo maranhense minimizou o ocorrido. Um dia após o massacre, enquanto a notícia corria, o governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, hoje reeleito, publicava em sua conta no Twitter que até aquele momento “não houve nenhuma vítima com mãos decepadas”:

Dois anos depois do que ficou conhecido como o massacre Gamella, as quatro cirurgias e dezenas de sessões de fisioterapia realizadas em seis meses de internação na Casa de Saúde do Índio, a Casai, em São Luís, não foram suficientes para fazer Aldeli recuperar o movimento normal das mãos. Ele sente dor todos os dias. E tudo piora no inverno de Viana, período de chuvas que vai de dezembro a julho. Os metais no antebraço são os primeiros a anunciar o frio que vem com a chuva. “Quando a chuva vai passando lá longe, aqui eu já tô sentindo”, ele me disse. O roupão grosso e felpudo foi presente da irmã, numa tentativa aquecer o corpo para aliviar suas dores.

A força e destreza que sobraram nas mãos não são mais suficientes para Aldeli realizar tarefas antes rotineiras, como pescar, capinar, plantar e colher. “Às vezes passo necessidade por não poder ir pescar, por não poder caçar um bichinho pra comer”, conta. Quem faz o serviço na roça é sua companheira, Joseane Maracanã Ribeiro Guajajara, 39 anos. É ela também quem o ajuda a se levantar da rede suspendendo-o pelo braço. Ele não tem mais força para se erguer apoiando-se nas mãos.

Aldeli informa que recebeu um auxílio-doença de três meses no valor total de R$ 3.470, mas, apesar de ter passado por duas perícias do INSS, até hoje o órgão não o considerou elegível para a aposentadoria. O órgão diz, por meio de sua assessoria, que o auxílio-doença foi encerrado em novembro de 2018 e que Aldeli não solicitou a prorrogação. “O INSS fica condicionando que o Aldeli volte várias vezes para São Luís [para ser periciado], como se fosse uma desconfiança sobre se realmente é o caso de aposentá-lo ou não. Isso é um rito que o médico está criando, porque não é necessário”, me disse Viviane Pedro, advogada do Conselho Indigenista Missionário do Maranhão, o Cimi. Pelas regras do INSS, cabe ao perito médico avaliar a incapacidade do segurado para o trabalho.

Aldeli e a companheira vivem do que ela planta para consumo próprio e dos artesanatos que ela faz com madeira e miçangas e vende aos indígenas, e também de doações de parentes. Mas, mesmo quando há algum dinheiro, a comida não chega fácil. Para o açúcar, o óleo, o sal e o café, precisam ir a Viana, a cerca de 14 quilômetros de Centro do Antero, aldeia onde vivem. Apenas Joseane vai, e com receio. Depois do massacre de 30 de abril de 2017, ficou ainda mais perigoso ser índio em Viana. Aldeli nunca mais pisou lá. Teme ser novamente atacado pelos fazendeiros da cidade. “Eles querem comer a gente. Eles agora comem carne de gente”, ele me disse, reverberando ainda o horror que viveu há dois anos.

Aldeli, em 2017, ainda no hospital, e hoje.Fotos: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Aldeli, em 2017, ainda no hospital, e hoje.Fotos: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Um membro que não lhe pertence

 

Era noite na aldeia Taquaritiua. No dia 25 de janeiro de 2019, a chuva já tinha caído, suspendido e caído de novo. O tempo estava abafado, mas Leonete dos Santos Mendes Akroá-Gamella, 36 anos, botou no fogo uma panela com água para amornar e com ela aliviar a dor da mão direita do marido, José Ribamar Mendes Akroá-Gamella, de 52 anos. Só assim ele conseguiria dormir. Zé Canário, como Ribamar é conhecido, foi outro dos mais machucados no ataque. Ele também teve a mão decepada por um golpe de facão.

A mão direita de Canário, presa por uma mínima pele, foi reafixada ao antebraço com uma placa de metal. O inverno para ele, assim como para Aldeli, é um martírio. “Não tive melhora nenhuma. Tá toda morta minha mão. Sinto muita dor, dói muito. Toda hora eu sinto, toda hora. Eu tô andando por aqui com vocês, mas eu tô sentindo. A mão o tempo todo pesada. Esse ferro aqui. Pode garrá aí, é muito grande esse ferro”, me disse, estendendo a mão pra eu tocar a estrutura de metal que fica visível sob a pele.

A aparência e temperatura da mão direita de Canário são as mesmas da mão de um defunto: fria e estática. A pele não tem viço. “Não corre sangue”, ele afirma. O ferro é tão pesado que ele precisa segurar a mão direita com a mão esquerda quase o tempo todo. Canário parece amparar um membro que está nele, mas não lhe pertence.

“Ele era um batedor de tambor. Pegava um tambor que só largava de manhã. Batia, cantava”, me disse Leonete sobre o marido, que tocava tambor nas festas e rituais Akroá-Gamella. Hoje, Zé Canário não usa mais a mão direita, e como sempre foi destro, ainda precisa se esforçar para usar a esquerda com alguma desenvoltura em tarefas básicas, como tomar banho ou levar comida à boca com um talher. “Na situação dele, é difícil até pra tomar banho. Se ele for se banhar, ele vai só jogar água. Ele vai banhar se eu for pra esfregar ele. Eu passo a palha nele pra poder sair o sujo da pele, da poeira de quando dá o vento”, diz Leonete.

Canário também manca com a perna esquerda e sente dor, resultado do golpe de facão que recebeu quando já estava caído. O agressor, ele conta, precisou pisar em sua perna para retirar o facão que ficou cravado no osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore recém-abatida.

Não foi apenas a vida de Adeli e Zé Canário que mudou radicalmente depois do massacre. Sua mulher e três das quatro filhas do casal – as mais novas – precisaram alterar a rotina para se adaptar à nova realidade física dele. “Mudou tudo”, lamenta Leonete.

Quando voltaram da temporada de seis meses que passaram em São Luís para o tratamento de Canário na Casai, Leonete e o marido encontraram parte da casa depenada. Ladrões levaram galinhas, porcos e ferramentas de trabalho. Leonete precisou pegar um empréstimo para comprar tudo de novo. Ela voltou a criar galinhas, patos, porcos e um casal de perus. A roça fica por conta das filhas Ana Kelly, Talita e Tainara dos Santos Mendes Akroá-Gamella, de 13, 14 e 16 anos.

Quase dois anos depois do massacre, Zé Canário passou a receber aposentadoria de um salário mínimo, R$ 954. É com esse dinheiro que ele paga de quatro a cinco trabalhadores, a uma diária de 50 reais cada, para de tempos em tempos tocarem a roça e darem um alívio à esposa e às filhas. Do último salário, a família usou quase tudo para pagar os trabalhadores. Sobrou o suficiente para comprar um pacote de café, três barras de sabão e três pacotes de palha de aço.

Zé Canário.Fotos: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Zé Canário.Fotos: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Um crime sem culpados

 

Após mais de dois anos, o inquérito policial aberto para apurar a autoria e circunstâncias do massacre ainda não foi concluído, segundo o Ministério Público Federal e a Polícia Federal no Maranhão. As principais vítimas das agressões, como Aldeli e Canário, nunca foram ouvidas, assim como alguns suspeitos, entre eles, políticos, policiais, lideranças evangélicas e fazendeiros. O local do crime sequer foi periciado.

O inquérito, aberto pela Polícia Civil de Viana, foi transferido à Polícia Federal por se tratar de violação de direitos de povos indígenas. Segundo a assessoria de imprensa da PF, o prazo para a conclusão é junho, “podendo ser necessário solicitar prorrogação, considerando as notícias de ameaças de novos conflitos na região, o que dificulta o esclarecimento de alguns pontos”.

Na época do crime, o então diretor técnico do Hospital Geral Tarquínio Lopes Filho, Newton Gripp, também negava o decepamento das mãos dos Akroá-Gamella. Segundo ele, no caso de Aldeli, “a mão ficou presa por estruturas musculares e tendões”. Para o médico, não houve rompimento de artéria nenhuma e, por isso, a mão do indígena permaneceu viva.

“A posição do Flávio Dino ao dizer que os índios Akroá-Gamella não tiveram as mãos decepadas retira a grandeza da violência cometida contra eles. O estado deveria proporcionar segurança aos indígenas, mas acabou não fazendo”, me disse Gilderlan Rodrigues da Silva, coordenador do Cimi Maranhão.

As mãos que Flávio Dino e Newton Gripp defenderam nunca terem sido arrancadas do corpo de Aldeli e Zé Canário não são as mesmas que os indígenas hoje têm consigo. “Essa conversa de que eu fui decepado não era pra comentar, eles ficavam brabo lá, o pessoal do hospital. Uma [médica] chegou e disse pros outros ‘por que esse homem ainda tá vivo? Tudo nele tá cortado, isso tá apartado de tudo’”, diz Aldeli, relembrando conversas que ouviu quando ainda estava internado no Hospital Geral. A situação de Zé Canário é igual. “Ele só não perdeu porque grudaram de novo”, diz Leonete, sua mulher. “O que adiantou ter a mão sem movimento nenhum?”

Procurei a assessoria de imprensa do governo do Maranhão e do hospital público estadual onde trabalha Newton Gripp, mas não obtive retorno.

Indígenas reunidos um dia depois do ataque. A polícia havia acabado de chegar para fazer corpo de delito nas vítimas.

Indígenas reunidos um dia depois do ataque. A polícia havia acabado de chegar para fazer corpo de delito nas vítimas.

O medo venceu a esperança

 

Não foi só o decepamento das mãos que foi colocado em dúvida depois do massacre. Na época, o Ministério da Justiça e Segurança Pública chamou os Akroá-Gamella de “supostos indígenas”. Um major da polícia se referiu a eles como “esses que dizem ser índios”.

A etnia tenta, há quatro décadas, ter suas terras demarcadas pela Funai. Nos anos 1980, um grupo de cinco Akroá-Gamella foi à sede da fundação em Brasília requerer políticas públicas de proteção e apoio, e ouviram que teriam que fazer um exame de sangue para que o órgão confirmasse se eram índios ou não.

“Foi tirado sangue de quatro pessoas pra ter certeza se eram índio, mas nós nunca recebemos o resultado desse exame”, me contou Francisco Borges dos Santos Meireles Akroá-Gamella, 61 anos, recuperando relatos do tio que teve amostra de sangue coletada. “Isso tinha na cabeça das pessoas, que o exame ia dizer quem ele era ou quem ele não era. Mas sempre a gente insistiu nisso com a Funai [de que são povo Akroá-Gamella]. Eles que quiseram esconder os Gamella, mas os Gamella nunca se escondeu na vida.”

No final do século 20, a etnia foi declarada como extinta pelo estado brasileiro. “Essa foi uma prática comum, desde o período colonial, para negar a existência de indígenas que adotaram estratégias de resistência e sobrevivência diante da violência imposta tanto naquele período como em tempos atuais”, escreveu a missionária Rosimeire de Jesus Diniz Santos, que atua há 20 anos com indígenas no Maranhão, em um relatório sobre violência contra os povos indígenas no Brasil.

Em agosto de 2014, em uma assembleia, os cerca de 1200 indígenas da etnia se autodeclararam povo Akroá-Gamella. Desde então, divididos em seis aldeias na zona rural de Viana – Taquaritiua, Centro do Antero, Nova Vila, Tabocal, Ribeirão e Cajueiro-Piraí –, eles vêm tentando, sob hostilidades e ameaças de moradores, políticos e lideranças de igrejas evangélicas de Viana, recuperar as terras de seus ancestrais, hoje usadas para a criação de boi, búfalo e retirada de barro para fábricas de tijolos.

Crianças Akroá-Gamella brincam no ritual de São Bilibeu na aldeia Cajueiro-Piraí, no Maranhão. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Crianças Akroá-Gamella brincam no ritual de São Bilibeu na aldeia Cajueiro-Piraí, no Maranhão. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Desde 2015, quatro fazendas foram retomadas pelos indígenas. Na ação, que tem sido implementada por outros povos além dos Akroá-Gamella, os indígenas ultrapassam as cercas e arames que bloqueiam o acesso às terras e as retomam. Os fazendeiros não costumam viver nessas propriedades. Caseiros e outros empregados que vivem e trabalham no local se retiram, levando consigo bens e pertences pessoais. Após negociações, os indígenas autorizam os fazendeiros a retirarem gado, plantações e outros bens que se encontram na área. Reestabelecidos em suas terras, eles interrompem o processo de desmatamento iniciado e mantido pelos ocupantes anteriores e replantam árvores nativas, fazem roças de milho, mandioca, arroz e feijão, e preservam as nascentes e os lugares que consideram sagrados, como rios.

Nas fazendas retomadas pelo povo Akroá-Gamella, a regeneração da vida natural já pode ser vista a olho nu. Onde um rio havia sido assoreado, hoje corre um fio de água cristalina que chega a cobrir os pés. Bacurizeiros, pés de juçara, caju e guarimã ressurgiram sobre mares de capim. “Tatu a gente encontra bastante, paca voltou, cotia voltou. Macaco, esse não tem. Tucano tem, sabiá. As terras tão melhorando, onde eles meteram as máquinas, o mato tá crescendo. O coelho, que a gente não via mais, a gente vê passando de carreira”, me disse Leonete Akroá-Gamella.

A quinta fazenda a ser retomada pelos indígenas seria a de Jamilo Aires Pinto, no povoado Bahias, e que culminou com o massacre. Depois da tragédia, os gamella ocuparam por três semanas o prédio da Funai, em São Luis, exigindo a criação de um grupo de trabalho para iniciar o processo de identificação e delimitação de suas terras.

A reivindicação foi aceita e o grupo, composto por antropólogos, biólogos e outros profissionais, iniciou os trabalhos com uma reunião geral na aldeia Cajueiro-Piraí. Acompanhei o encontro, em 10 de novembro de 2018, aberto à imprensa, e vi a esperança dos Akroá-Gamella. A expectativa, no entanto, deu lugar à apreensão com a Medida Provisória 870/19, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de mandato, que reestrutura ministérios e retirava da Funai o poder de identificar e demarcar terras indígenas e entregava ao Ministério da Agricultura – nas mãos dos ruralistas.

No último dia 22 de maio, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto da MP 870, mas com modificações importantes para os povos indígenas: as demarcações voltaram a ficar a cargo da Funai, e não mais do Ministério da Agricultura. A fundação também retornou ao Ministério da Justiça, saindo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ao qual se encontrava submetida por força da MP publicada em janeiro.

A modificação do texto-base aconteceu após intensa pressão dos movimentos indígenas sobre o governo Bolsonaro. A vitória, porém, não é definitiva. A votação da MP ainda deve passar pelo Senado, e precisa ser sancionada pelo presidente até 3 de junho.

A Funai não respondeu meus pedidos de informação e entrevista. Segundo a advogada Viviane Pedro, o Ministério Público Federal garantiu que o grupo de trabalho continuará discutindo o reconhecimento dos Akroá-Gamella.

Mulher consola o marido na aldeia Cajueiro-Piraí um dia depois do ataque. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Mulher consola o marido na aldeia Cajueiro-Piraí um dia depois do ataque. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

‘Índio tem que morrer’

 

Depois da barbárie de 2017, as hostilidades contra indígenas em Viana aumentaram, e a eleição de Jair Bolsonaro, com seu discurso racista contra indígenas e quilombolas, tornou tudo mais violento.

Os Akroá-Gamella resistem a ir para Viana. Quando vão, evitam estar com braços, pernas e rostos pintados com grafismos típicos da etnia. Ouvi relatos de olhares de ódio e ameaças vocalizadas pelas ruas e nos comércios: “índio tem que morrer”, dizem quando os veem passar. Como parte da estratégia de terror psicológico, moradores de Viana, ao modo Bolsonaro, simulam uma arma com os dedos polegar e indicador em riste e a apontam aos indígenas.

À noite, tiros são disparados para o interior das aldeias retomadas. “Vocês ouviram o pessoal que passou pela estrada nessa madrugada xingando a gente de ladrão e vagabundo?”, me perguntou Pe’gre Akroá-Gamella, 41 anos, durante uma das minhas visitas ao território.

Em Centro do Antero, Aldeli e Joseane estão cercados por não indígenas que, ao longo de décadas, compraram terras griladas e se instalaram na aldeia. O casal relatou que tiros são disparados com frequência nos arredores da casa por alguns vizinhos com o objetivo de amedrontá-los. Em uma de minhas visitas à aldeia, ouvi um disparo enquanto a equipe de vídeo capturava imagens com drone, por volta de 9h.

Em outro momento da apuração em campo, precisamos ficar em alerta: por volta das 20h30, um homem abandonou uma moto a poucos metros da entrada principal da aldeia onde estávamos. Ele se escondeu no mato à beira da estrada. Cerca de uma hora depois, saiu do esconderijo – uma vala do outro lado da pista – e partiu em retirada no veículo. A moto não tinha placa. A polícia de Viana foi acionada pelos Akroá-Gamella enquanto o homem ainda estava escondido, mas chegou horas depois que o suspeito já tinha ido embora. “Era uma emboscada. Se a gente se aproximasse pra ver quem era, ele podia matar a gente”, avaliou um dos indígenas na ocasião.

Cemitério na aldeia Taquaritiua, no território Akroá-Gamella. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Cemitério na aldeia Taquaritiua, no território Akroá-Gamella. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

No dia seguinte, por volta de 11h, uma jovem Akroá-Gamella de 16 anos foi abordada no povoado Santeiro por dois jagunços encapuzados numa moto. Eles queriam saber onde se encontrava uma das lideranças do território. Com uma arma apontada para sua cabeça, a jovem negou conhecê-lo. Só depois de ameaçar gritar, ela foi liberada pelos pistoleiros.

Entre outubro de 2018 e fevereiro deste ano, oito ocorrências de ameaças e ataques com arma de fogo foram registradas pelos indígenas na Delegacia Especializada em Conflitos Agrários de São Luís. “Desde que Bolsonaro pegou a presidência, a ameaça ficou muito mais perigosa pra nós. Agora, eles tão diretamente nos ameaçando, e até querendo entrar pra dentro do território onde a gente tá”, me disse um dos indígenas que tem sido procurado por jagunços em Viana e que pediu para não ser identificado.

Em 21 de fevereiro de 2019, o deputado federal Aluísio Mendes, do Podemos maranhense, publicou em sua conta no Facebook fotos de uma reunião com o presidente da Funai, o general Franklimberg Farias, e escreveu a seguinte legenda: “Em pauta, as terras de Viana e Matinha, ocupadas por pessoas que se autointitulam índios Gamelas (sic) e a necessidade de ampliação da rede de transmissão de energia elétrica para atender estas regiões. (…) Quanto à insegurança jurídica dos pequenos fazendeiros de Viana e Matinha, vítimas das invasões, defendemos a posse de suas propriedades.”

O post repetiu as mesmas palavras e ideias que ele proferiu em um discurso durante a Manifestação pela Paz feita em 30 de abril de 2017 numa praça do povoado Santeiro, em Viana. Poucas horas depois, aconteceria o massacre contra os Akroá-Gamella.

Reportagem realizada com apoio do Rainforest Journalism Fund em associação com o Pulitzer Center.

Crianças brincam em açude da aldeia Cajueiro-Piraí, uma antiga fazenda, agora retomada. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

Crianças brincam em açude da aldeia Cajueiro-Piraí, uma antiga fazenda, agora retomada. Foto: Ana Mendes/The Intercept Brasil

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