08/05/2019

“Nosso povo está sofrendo com carvoarias, soja, eucalipto e os fazendeiros”, denuncia Apãnjekra Canela

Em Brasília, uma delegação de lideranças do povo Apãnjekra Canela levou fatos novos à relatora de processo no STF, ministra Cármen Lúcia

Indígenas Apãnjekra Canela chegam ao STF para audiência com a ministra Cármen Lúcia. Crédito da foto: Adilvane Spezia/Cimi

Por Adilvane Spezia, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Desde 2009 tramita na Justiça Federal, chegando ao Supremo Tribunal Federal (STF), um pedido de anulação da portaria declaratória que corrigiu a demarcação, realizada no final da década de 1970, da Terra Indígena Porquinhos, no Maranhão. Em Brasília, nesta terça-feira (7), uma delegação de lideranças do povo Apãnjekra  Canela levou fatos novos à relatora do processo, ministra Cármen Lúcia.

“Nosso povo está sofrendo com as carvoarias, plantação de soja, eucalipto e o campo dos fazendeiros da região já estão apertado e desrespeitando nós. Estamos aqui para denunciar este caso, que para nós é muito sério”, explica Olímpio Tute Canela, liderança do povo . Para os Apãnjekra Canela, a cada ano que passa a situação se torna mais insustentável com o território tradicional sendo mastigado pelo agronegócio.

Para entender melhor essa história e a razão do pedido de anulação da portaria que corrige a primeira demarcação, realizado pelos municípios de Fernando Falcão, Barra do Corda, Formosa do Serra Negra e Grajaú, é preciso voltar à primeira metade do século XX. Na ocasião, ao menos uma centena de indígenas da aldeia Travessia foram assassinados por jagunços de fazendeiros vizinhos ao território.

A população da aldeia que sobreviveu, composta majoritariamente por mulheres e crianças, se espalharam em diáspora. Uma parte destes Apãnjekra Canela se instalaram à cerca de 40 km da Travessia. Passaram a viver neste local que no final da década de 1970 foi demarcado como Terra Indígena Porquinhos. Inicialmente reivindicada com 301 mil hectares, o território foi demarcado com 79.520 hectares e sem a área da aldeia Travessia inclusa.

Em 2000, uma revisão foi iniciada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), permitida pela Constituição Federal de 1988, posto que demarcações anteriores a esta data foram realizadas com vícios e sob os desmandos da ditadura militar. No dia 21 de outubro de 2009, a portaria declaratória é publicada abrangendo a área da aldeia Travessia dentro dos 301 mil hectares. Os municípios então entraram judicialmente com o pedido de anulação.

Depois do julgamento das condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2012, as procuradorias dos municípios acrescentaram a tese do marco temporal como argumento pela anulação. Alegam, portanto, que os Apãnjekra Canela não ocupavam as áreas da portaria declaratória, incluindo a aldeia Travessia, no ato de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

As lideranças Apãnjekra Canela ressaltam que não estavam nas terras da Travessia justamente porque décadas antes da primeira demarcação sofreram um massacre que fez centenas de crianças do povo crescerem sem os pais e avôs. Obrigaram, ainda, suas mães, tias e avós a perambular pelo Maranhão, chegando até mesmo ao hoje estado do Tocantins, atrás de terras para subirem novas aldeias.

“Não queremos o Brasil todo, só o que é nosso por direito, a demarcação do território dos Apãnjekra Canela”, explica Olímpio Tute Canela liderança indígena do povo

O cacique Olímpio Tute denuncia ainda o desmatamento por parte de madeireiros da região e o avanço da rodovia dentro da Terra Indígena, bem como as consequências da Medida Provisória (MP) 870/2019, medida adotada pelo presidente Jair Bolsonaro para reorganizar administrativamente o Poder Executivo, mas que tirou a responsabilidade pelas demarcações da Funai, entregando-a ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, controlada pela bancada ruralista, e, por sua vez, deslocando a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

“Não estamos desrespeitando ninguém, aquela terra é nossa e precisamos da demarcação do nosso território. Só queremos viver com nosso povo, criar nossos filhos, netos, bisnetos. A gente quer preservar a natureza, o Cerrado, as florestas, nosso povo está precisando muito, queremos parar de ficar sofrendo e viver com meu povo”, apela a liderança Apãnjekra Canela.

“Podemos dizer que foi uma decisão um tanto contraditória na forma como foi aplicada a tese, ademais das questões de mérito que envolve discussões sobre indigenato e marco temporal, tem algumas preliminares de mérito, como a gente chama, ou alguns vícios processuais que ainda pendem de análise, como por exemplo o fato de a comunidade indígena não ser parte no processo”, esclarece o advogado do povo e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto dos Santos.

Outro ponto que chama a atenção no caso do povo Apãnjekra Canela é o fato de  municípios terem ingressado na Justiça Federal para anular o processo de demarcação. “É importante que se diga que os municípios não têm legitimidade alguma de pedir direito alheio em nome próprio, em especial para prejudicar os indígenas. Logo, se for levando em consideração essa duas preliminares, o processo deve ser anulado”, pontua Rafael Modesto.

Os Apãnjekra Canela entregaram um documento à ministra Cármen Lúcia. Confira na íntegra:

 

Excelentíssima Senhora Doutora Ministra do Supremo Tribunal Federal

Recurso Ordinário em Mandado de Segurança Nº 29542

Terra Indigena Porquinhos

Povo Apãnjekra Canela

Em 1913, nós indígenas Apãnjekra Canela, tivemos nossa aldeia Travessia destruída após sermos atacados pelos fazendeiros da família Arruda. Primeiramente, eles e seus homens nos embriagaram, para depois levar nosso homens a beira do riacho, onde muitos foram assassinados. Mães para não verem seus filhos mortos pelos fazendeiros, transformavam, estrategicamente os meninos em meninas. Foi assim que muitos de nosso povo conseguiu sobreviver.

Após muitos anos de luta, conseguimos demarcar parte de nosso território tradicional, conhecida atualmente como terra indígena Porquinhos, localizada no município de Fernando Falcão, estado do Maranhão, com setenta e nove mil hectares. Desde então, é desse território que tiramos nosso sustento e praticamos nossos rituais sagrados, ou seja, lá acontece nosso Bem Viver.

Em 2000, iniciamos o processo de nova demarcação de nosso território, para que área importantes para nossa reprodução física e cultural, e onde nossos antepassados andaram, antes deixada de fora, novamente termos acesso.

Em 2009, o então Ministro da Justiça, o Senhor Tarso Genro, declarou através da Portaria 3.508/2009 nosso território de ocupação tradicional. No entanto, as prefeituras de Fernando Falcão, Barra do Corda e Formosa da Serra Negra, entraram com o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (RMS) 29542, que foi acolhido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, e em Sessão do dia 30 de setembro de 2014, anulou a Portaria Declaratória de nosso território.

No entanto, deixamos claro, nosso povo não vai parar e lutar por nosso território. Nosso sangue foi derramado naquele chão, que para nós é sagrado, pelo fato de nossos avós terem vivido livres em nosso território. Estamos disposto a dá nossa vida por nosso território, se preciso for. Não temos medo de morrer para garantir o Bem Viver para nosso povo e nossa futura geração.

O cerrado para nós povo Apãnjekra Canela é nossa vida. Ele nos oferece alimentação de graça, nos alimenta e alimenta nosso filhos e netos. Sem ele, não podemos viver. Não podemos ser Povo Apãnjekra Canela, o povo piranha.

Após a anulação da Portaria Declaratório de nosso território, estamos vendo nosso cerrado sendo destruído de forma avassaladora, dando lugar a grande plantios de soja, grandes carvoarias, grande plantios de eucalipto, nova vilas de moradores de não indígenas, bem como grande fazendas de gado, que se instalam em nosso território. Não indígenas estão cercando toda nossa área. Colocam cerca próximo a nosso riacho, impossibilitando de chegamos no outro lado. Tememos que, com a implantação desses projetos que visa explorar a terra, o futuro de nosso povo, esteja comprometido por conta a destruição de nosso território.

Esse ocupação tem destruído muitos nascentes de riachos perenes que passam por dentro de nosso território. A consequência é a diminuição da água, a falta de peixes e o envenenamento das águas com agrotóxicos. Além disso, os não indígenas estão adentrando no nosso território para caçar. Portanto, afirmamos que esses projetos tem nos provocado grandes prejuízos.

Quando nós lideranças indígenas hoje lutando por nosso território éramos crianças, nosso avós, lutavam para que pudéssemos ter nosso território, e assim, garantir o nosso futuro. Hoje somos nós, antes crianças, e hoje lideranças e nosso povos, que estamos lutando pensando em nossas futuras gerações. Temos em nossa aldeia muitas crianças e jovens dependem do território para continuar vivendo e sobrevivendo.

Portanto, Senhores e Senhoras Ministros, ouçam a voz de vosso coração, sintam o calor da mãe terra penetrando em seu corpo através de vosso pés. Deixem ser tocados pela mãe natureza que clama para ser preservada.

Povo Apãnjekra Canela

 

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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