Dom Roque, presidente do Cimi, fala sobre a questão indígena à Assembleia Geral da CNBB
Dom Roque fez o informe com base nas declarações e denuncias de indígenas em eventos na ONU, Congresso Nacional e ATL
O presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Roque Paloschi, arcebisto metropolitano de Porto Velho (RO), se pronunciou nesta terça-feira (7) à plenária da 57ª. Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que ocorre desde o dia 1º de maio e segue até sexta-feira (10), no município de Aparecida, interior de São Paulo.
Dom Roque estruturou o seu informe à comunidade de bispos do Brasil com base nas declarações e denúncias de indígenas em eventos nas Nações Unidas, Congresso Nacional, Acampamento Terra Livre (ATL) e pronunciamentos à imprensa. A intenção era mostrar que o “clamor dos povos por vida e justiça vem também diretamente da boca e do coração de suas lideranças”.
A partir desta abordagem, o presidente do Cimi destacou a importância do Sínodo da Amazônia para a construção de “novos caminhos” para a Igreja através do resgate daquilo que chamou de imperativos categóricos do papa Francisco ditos em Puerto Maldonado, no Peru, em 19 de janeiro de 2018, aos representantes dos povos da Amazônia e bispos.
Entre tais imperativos, Dom Roque citou: “Provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora. A Amazônia é uma terra disputada em várias frentes”, em ressonância às denúncias e clamores das lideranças indígenas do Brasil
Leia na íntegra o pronunciamento do presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi:
Pronunciamento à 57ª. Assembleia Geral da CNBB
Nuvens perigosas estão pairando sobre a causa e a vida dos povos indígenas. O Acampamento Terra Livre, realizado há poucos dias, que contou com a participação de quatro mil líderes, representantes de aproximadamente 200 povos indígenas de todas as regiões do Brasil, nos fez novamente ouvir os clamores sobre a violação de seus direitos e os ataques às suas diversas formas de viver.
A título de exemplificação, de forma sintética, fazendo uso do Documento Base elaborado pelos próprios povos no ‘Acampamento’, cito alguns dos temas que preocupam os povos indígenas e seus aliados no Brasil:
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- Com a Medida Provisória (MPV) 870/19, o governo pretende inviabilizar de vez o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas, já que transferiu tal competência ao Ministério da Agricultura. Fez o mesmo com a competência relativa aos estudos para licenciamento ambiental de empreendimentos que afetam terras indígenas.
- O governo tem assumido publicamente um discurso integracionista, que reitera a visão de que os povos indígenas não precisam de terras, a não ser que assumam o viés produtivista do agronegócio e disponibilizem os seus espaços de vida para o mercado de terras, usurpando assim o direito de posse e usufruto exclusivo assegurado pela Constituição Federal.
- Para inviabilizar a participação dos povos e organizações indígenas na discussão, formulação e fiscalização das políticas públicas que lhes dizem respeito, o Governo Bolsonaro publicou, o Decreto 9759/19. Dentre outras instâncias de participação extintas pelo mesmo, destaca-se o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI).
- A Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), está sofrendo um processo de inanição, dificultando sua implementação.
- A atenção à saúde dos povos indígenas também sofre ataques com a tentativa de municipalização das responsabilidades.
- A esses ataques do Executivo somam-se as dezenas de iniciativas legislativas que tramitam no Congresso Nacional, sob comando principalmente da bancada ruralista. Entre tantas, destacam o PL 1610/96, que trata da mineração em terras indígenas, a PEC 215/00 e o PL 6818/13. Essas iniciativas pretendem inviabilizar as demarcações e abrir os territórios indígenas para a exploração
O clamor dos povos por vida e justiça vem também diretamente da boca e do coração de suas lideranças. Dentre tantas declarações que chamam nossa atenção e nos interpelam fortemente, destaco e compartilho as seguintes com os irmãos e irmãs:
1. Em reportagem publicada essa semana, o jovem André Karipuna, do estado de Rondônia, afirmou: “Evito ao máximo andar sozinho ou ir à cidade. Tenho medo do que pode acontecer comigo. Não temos paz em nossa própria terra. Se o Estado brasileiro não proteger nosso território, os invasores podem nos exterminar para se apropriar dele”.
2. Durante evento no Fórum Permanente Sobre Povos Indígenas da ONU, no dia 25 de abril, a jovem liderança Erileide Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, denunciou: “Chamam nós de invasores de territórios. Se nós retomamos um pedacinho de terra é para nossa vida e futuras gerações. Nós vamos permanecer na nossa terra. Porque o papel do branco não ouve a terra que grita, e os povos originários ouvem. Vamos lutar pela terra, nem que eles abram um buraco, nos matem e enterrem”.
3. Em audiência pública no Senado Federal, durante o Acampamento Terra Livre, o líder Kretã Kaingang, do estado do Paraná, alertou: “Esses arquivos sobre as violações aos direitos dos povos indígenas durante a ditadura deveriam estar com o movimento indígena. Nesta semana já foram mais de 2 mil copias de documentos para as mãos do Ministério da Agricultura. Podem estar encobrindo crimes que eles causaram no passado”.
4. Também durante o Acampamento Terra Livre, o Cacique Marcos Xukuru, de Pernambuco falou: “A mensagem que levamos para o mundo todo é a de que justiça é o nosso território nas nossas mãos. É a nossa saúde com qualidade e respeito às nossas necessidades. Justiça é termos a nossa educação específica e diferenciada de acordo com os valores de cada povo. Justiça é o nosso território não ser invadido. É nossas lideranças não serem assassinadas. Esta intervenção simboliza Justiça. É isso que estamos fazendo aqui, na Esplanada dos Ministérios: exigindo Justiça!”. Disse ainda que: “Muitas lideranças estão ameaçadas de morte, sem poder sair de seus territórios simplesmente por defender os direitos dos povos indígenas. Nosso país é pluriétnico, essa casa precisa ser capaz de defender os direitos dessa população diversa.”
Neste momento extremamente crítico, a voz do Papa Francisco, através do “Sínodo para a Amazônia”, vem ao nosso encontro, não para reivindicar privilégios, mas para apoiar os povos indígenas na defesa dos seus direitos e territórios, não somente no Brasil, mas na Grande Amazônia. O que está acontecendo hoje na Amazônia é política, econômica, ecológica e pastoralmente relevante para o mundo inteiro.
Recentemente, pelo seu discurso, no dia 19 de janeiro de 2018, aos representantes dos povos da Amazônia e bispos, em Puerto Maldonado (Peru), o Papa Francisco nos fez entender a importância do Sínodo para a Amazônia e para o protagonismo dos povos indígenas.
Trata-se de aprofundar o tema desse sínodo: “Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Aliás, quais são os critérios para assumir novos caminhos? Nas questões pastorais há o critério dos 500 anos. Depois de um meio milênio de presença eclesial na Amazônia, o labor pastoral e missionário não conseguiu edificar uma Igreja com rosto amazônico. Igrejas proselitistas, evangélicas e pentecostais, se tornaram hegemônicas em mais da metade das comunidades amazônicas.
Para facilitar a questão dos “novos caminhos” vou resgatar alguns imperativos categóricos do papa dirigidos aos líderes indígenas e bispos presentes em Puerto Maldonado.
1. Aos líderes indígenas de Puerto Maldonado
1.1. – “Obrigado (…) por nos ajudardes a ver mais de perto, nos vossos rostos, o reflexo desta terra. Um rosto plural, de uma variedade infinita e de uma enorme riqueza biológica, cultural e espiritual”.
1.2. – “Quis vir visitar-vos e escutar-vos, para (…) reafirmarmos uma opção sincera em prol da defesa da vida, defesa da terra e defesa das culturas”.
1.3. – “Provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora. A Amazônia é uma terra disputada em várias frentes”.
1.4. – “Congratulo-me com todos os jovens dos povos nativos que se esforçam por elaborar, do seu próprio ponto de vista, uma nova antropologia e trabalham por reler a história dos seus povos a partir da sua perspectiva. (…) Muitos escreveram e falaram sobre vós. É bom que agora sejais vós próprios a autodefinir-vos e a mostrar-nos a vossa identidade. Precisamos de vos escutar”.
1.5. – “Ajudai os vossos bispos (…) a fazerem-se um só convosco e assim (…) podeis plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena”.
1.6. – Confio na capacidade de resistência dos povos e na vossa capacidade de reação perante os momentos difíceis que vos toca viver”.
2. Aos bispos presentes em Puerto Maldonado
2.1. – “A defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida”.
2.2. – “Todos os esforços que fizermos para melhorar a vida dos povos amazônicos serão sempre poucos”.
2.3. – “A cultura dos nossos povos é um sinal de vida. A Amazônia, além de constituir uma reserva da biodiversidade, é também uma reserva cultural que deve ser preservada face aos novos colonialismos”.
2.4. – “A educação ajuda-nos a lançar pontes e a gerar uma cultura do encontro.
2.5. – “Cada cultura e cada cosmovisão que recebe o Evangelho enriquecem a Igreja com a visão de uma nova faceta do rosto de Cristo”.
2.6. – “Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas”.
A inovação do Sínodo não está na reformulação doutrinal, mas na assunção do princípio da sinodalidade. Onde o papa poderia interferir, graças à sua autoridade ministerial, ele não interferiu. A sinodalidade, quer dizer, o princípio da participação na construção do caminho comum, só pode ter resultados a longo prazo, desde que seja também assumido na escolha dos bispos e na administração das Igrejas locais. “O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (FRANCISCO, Discurso, 17.10.2015).
Assumir esse rosto amazônico da Igreja local significa descolonizar a Igreja. “O Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com seus sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado ao lado” (EG 88). Hoje compreendemos melhor que a Igreja, que assumiu a cultura da Palestina ou da Grécia, pode e deve também assumir as culturas dos povos indígenas. “O que não é assumido, não é redimido” (DP 400).
Os rostos da Amazônia têm feições culturais e sociais – uns nos lembram da beleza da criação e de Jesus ressuscitado, em outros reconhecemos “as feições sofredoras de Cristo” (DP 31). O Sínodo para a Amazônia coloca com novo rigor os desafios da assunção da realidade sociocultural e da inculturação na pauta pastoral de hoje. Práticas de ecologia integral são também práticas de evangelização integral: “Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas” (DAp 176; cf. EG 88). O Papa João XXIII abriu com o Vaticano II as janelas da Igreja. O Papa Francisco, abriu a porta para a “Igreja em saída”, seguindo o mestre, que é “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6).
Que o Deus da Vida e a mãe Aparecida nos ajudem a ver a aflição, a ouvir o clamor, a nos aproximar sempre mais dos povos originários de nosso país, para conhece-los melhor, aprender com eles e ajuda-los na defesa de suas vidas, para que vivam em seus territórios, plenos de vida e futuro (conf. Êxodo 3, 7-10 e Jo, 10, 10).
Dom Roque Paloschi
Arcebispo Metropolitano de Porto Velho, RO, e Presidente do Cimi
57ª. Assembleia Geral da CNBB
Aparecida, SP, 04 de maio de 2019