Contra a Constituição, Governo Bolsonaro quer acabar silenciosamente com a saúde indígena
Durante marcha no 15º Acampamento Terra Livre, indígenas reafirmam posição em defesa da Sesai ao Ministério da Saúde. Pasta acatou decisão do movimento
No fim de março, o ministro da Saúde, Luiz Mandetta (DEM-MS), foi obrigado a recuar na intenção expressa de extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e municipalizar o atendimento. Depois de realizar mobilizações em todo o país e exigir uma reunião em Brasília para tratar do assunto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ouviu o compromisso público de Mandetta em, afinal, cumprir a sua obrigação e respeitar a Constituição.
A decisão do ministro foi confirmada hoje (26) em reunião com lideranças indígenas durante o 15º Acampamento Terra Livre. Na falta de Mandetta, João Gabardo, secretario executivo do Ministério da Saúde (MS), recebeu uma comitiva de vinte indígenas e garantiu que “não se fala mais da municipalização e não se fala mais em extinção da Sesai”.
Na prática, no entanto, o governo Bolsonaro tem atuado silenciosamente para continuar desmontando a saúde indígena em diversas frentes.
Na quarta (24), Mandetta anunciou uma troca no comando da Sesai, que foi entregue para Silvia Waiãpi, tenente do Exército e ex-atriz da Globo. Silvia, que é fisioterapeuta, atuava com reabilitação de militares e não tem qualquer experiência de atuação na saúde indígena. A mudança segue a tônica da vasta presença militar no governo Bolsonaro, que já ocupam mais de 100 cargos no governo, a maioria em posições estratégicas.
Na reunião com as lideranças indígenas, Silvia reforçou o compromisso da permanência da Sesai e da não municipalização da saúde indígena. “É por isso que estou aqui”, garantiu.
Paulo Tupiniquim, da Apib, lembrou que a saúde é um direito garantido na Constituição e pediu maior participação do indígenas nas decisões da pasta. “Se a senhora tiver intenção de fazer alguma mudança, que consulte os povos que estão aqui. Viemos para o diálogo e não vamos aceitar que nossos direitos sejam violados”.
Para Joênia Wapichana, a primeira deputada indígena eleita, “a presença de indígenas é essencial para a construção das políticas públicas efetivas”.
Descaso
O Ministério da Saúde até hoje não colocou em dia o pagamento para as entidades que atuam na saúde indígena em todo o país. Milhares de profissionais estão sem receber desde janeiro, causando um verdadeiro caos nos DSEIS. Mesmo prometendo regularizar a situação em março, o MS, se passar a cumprir o repasse em dia, só normalizará o financiamento em maio.
No DF e em SP, as Casais que recebem pacientes com doenças como câncer e casos de média e alta complexidade para atendimento nos grandes centros, só não fecharam totalmente porque os funcionários concordaram em trabalhar sem receber e parte dos fornecedores também se comprometeu a manter os centros funcionando. Do contrário, dezenas de indígenas morreriam.
Nesta semana, Mandetta desmarcou em cima da hora uma reunião em que estariam presentes lideranças indígenas e o Ministério Público Federal para discutir a situação da saúde. Nenhuma justificativa foi dada.
Para Issô Tuká, da Apib e do Fórum de Presidentes dos Condisi, isso é uma espécie de retaliação. “O Mandetta está buscando outros mecanismos para estrangular a saúde indígena. Ele está fazendo de forma silenciosa para que a opinião pública não saiba. Para todo mundo o discurso foi de manter a Sesai. Mas ele vem sufocando o subsistema para quando lá na frente os indicadores não alcançarem as metas pactuadas, vai justificar como incompetência da Sesai para dizer que o modelo atual não dá certo”, afirma Tuká.
A saúde indígena possui metas anuais pactuadas nacionalmente e acompanhadas a cada trimestre. A Sesai monitora as ações em todos os distritos. Existem metas para a saúde bucal, imunização, saúde da mulher, do homem, do idoso, da criança e do adolescente. A maioria dos indicadores vem melhorando nos últimos anos.
Desde que assumiu, Mandetta tem tentado alegar uma suposta corrupção das organizações que atuam no sistema para implantar uma municipalização forçada. No entanto, as denúncias protocoladas até hoje vieram dos próprios indígenas. Mais de 600 processos levantados pelo controle social foram entregues para a Corregedoria do Ministério da Saúde e para o Ministério Público Federal no fim de 2018.
“O Mandetta disse que ou ficávamos do lado da municipalização ou da corrupção. Não estamos nem de um lado nem de outro. E a responsabilidade de apurar é do Ministério. Se tiver lideranças e indígenas envolvidos, que se apure e puna. Eu respondi para ele que o que ele está querendo fazer é um crime. Usando uma justificativa equivocada. Nós aceitamos discutir a saúde indígena para melhorar, não para municipalizar. Não dá para confiar na palavra do ministro”, avalia Issô Tuká.
Questionada sobre a paralisação dos convênios e irregularidades nos processos administrativos da secretaria, Silvia pediu paciência e disse que a fiscalização é prioridade. “A saúde indígena não pode pagar pelos atos administrativos daqueles que não conseguem coordenar. Que tipo de governo é esse? Que diz que vai avançar, mas só está retrocedendo”, alertou Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.
A deputada Joênia Wapichana, que também esteve presente na reunião, descreveu a situação como “vulnerável” e reforçou que as comunidades indígenas não podem ser penalizadas por conta das irregularidades no sistema. “Desviar recursos da saúde é crime e deve ser tratado como crime. O que não pode é suspender os serviços de saúde. Que a investigação ocorra paralelamente aos atendimentos”.
Fim do controle social, Conferência Nacional ameaçada e falta de médicos
No início de abril, Bolsonaro extinguiu por decreto centenas de conselhos de participação social em políticas públicas, como o Conselho Nacional de Política Indigenista, causando reação imediata do MPF e de parlamentares de oposição. Isso afeta diretamente a saúde indígena.
Diante disso, a Apib, via MPF e a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, então entrando com um recurso contra o decreto de Bolsonaro. Todos os conselhos indígenas tem base legal e não podem ser extintos por uma canetada.
“Toda a saúde indígena está comprometida porque as instâncias de controle social deixam de existir. O decreto é completamente inconstitucional. Isso é um terrorismo para fazer com que a gente recue. A gente não vai recuar. As nossas comunidades estão esperando a garantia de sua assistência. Como vamos recuar?”, diz Issô Tuká.
Marcada para o fim de maio, a 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, que deve reunir 2 mil pessoas em Brasília e é fruto de um processo de construção social que contou com 302 conferências locais e 34 distritais, também está ameaçada pelo governo Bolsonaro.
Um parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde assinado também em abril questiona o processo de contratação de empresa para a realização da etapa nacional. A recomendação é que o processo, aberto em setembro do ano passado, seja jogado no lixo e recomeçado do zero, inviabilizando a manutenção da data, decidida quase um ano atrás. “A licitação teve que ser cancelada porque tinha indícios de irregularidades”, explicou Gabardo.
Ainda assim, o secretário garantiu que a Conferência vai acontecer. “A Silvia tem a possibilidade de refazer a contratação do espaço físico ,e, se ter tempo a conferencia pode ser na data prevista”.
O parecer é uma estratégia da União em não arcar com os custos legais da Conferência, cerca de R$ 8 milhões, de sua responsabilidade, e assim inviabilizar o evento, de suma importância. A última conferência nacional aconteceu em 2013. No entanto, as organizações tem se mobilizado para realizar o encontro com recursos próprios.
“Há uma falta de entendimento da questão indígena, uma falta de conhecimento em relação ao histórico do debate dessa temática e desrespeito pelas conquistas alcançadas. E, por consequência, há claramente ações de desmonte”, afirma Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
Outro ataque do governo Bolsonaro é a mudança brusca no Programa Mais Médicos. Mesmo com todos os chamamentos abertos pelo Ministério da Saúde, ainda faltam pelo menos 200 médicos dos 332 necessários para realizar o atendimento nos DSEIS Brasil afora. O desfalque real pode ser ainda maior.
A situação é especialmente grave no Amazonas: os DSEIs do Médio e Alto Solimões, somados, sentem a falta de 37 profissionais. Somente dois médicos apareceram até o momento para atender uma população estimada em mais de 95 mil indígenas. O DSEI Alto Rio Negro, também no Amazonas, onde vivem 40 mil indígenas, está com 16 vagas em aberto. Nestes três distritos, portanto, são 135 mil indígenas com o atendimento comprometido.
Outros casos que se destacam são os do DSEI Maranhão, com 17 vagas não preenchidas; do Tapajós, no Pará, com 11 e dos distritos Leste e Yanomami, em Roraima, com 19.
Entenda como funciona o controle social na saúde indígena
A legislação garante a participação indígena nos órgãos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas de saúde. Esse envolvimento se dá por intermédio dos Conselhos Locais de Saúde Indígena (CLSI), Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e Fórum de Presidentes de Condisi (FPCondisi), que são responsáveis por fiscalizar, debater e apresentar propostas para o fortalecimento da saúde de suas comunidades.
Os 390 CLSI existentes são uma instância permanente, consultiva e propositiva composta por 5.709 conselheiros indígenas. É a partir dos debates e discussões nessa instância que são identificadas as necessidades de ações e serviços de saúde apresentadas aos gestores locais.
Os Condisi, constituídos legalmente nos 34 Distritos de Saúde Indígena (DSEI), têm caráter permanente e deliberativo e são compostos paritariamente por usuários (50%), trabalhadores (25%) e gestores / prestadores de serviço em saúde (25%). São 1.564 conselheiros distritais. Já o FPCondisi, composto pelos presidentes dos 34 Condisi, é uma instância permanente, propositiva e consultiva, criada para acompanhar a execução da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), entre outras ações.