13/03/2019

Para lideranças indígenas, governo brasileiro constrói farsa na ONU e milícias tomam o Estado

O pronunciamento foi em resposta às denúncias feitas por Glicéria Tupinambá envolvendo ameaças de morte, assassinatos e a falta de garantia aos direitos dos povos indígenas

Desde a semana passada acontece a 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra. Crédito da foto: Elma Okic/ONU

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Representante da missão do Brasil junto à ONU garantiu à 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, instalada em Genebra, o respeito do governo federal aos direitos dos povos indígenas.

“O Brasil tem sido tradicionalmente um ator ativo e construtivo (…) uma instituição dedicada à promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas”, disse o representante da missão do Brasil ao plenário da ONU. Destacou ainda que as terras indígenas demarcadas cobrem 12,5% do território nacional.

O pronunciamento, na manhã desta quarta-feira (13), foi em resposta às denúncias feitas por Glicéria Tupinambá, minutos antes, envolvendo ameaças de morte, assassinatos e a falta de garantia aos direitos territoriais dos povos indígenas. A indígena do sul da Bahia destacou a piora do quadro com o governo Jair Bolsonaro.

“O Estado brasileiro afirma que temos a maior quantidade de terras indígenas demarcadas; que, agora, indígenas estão ocupando cargos no governo (…) mas, na realidade, as decisões importantes são tomadas por órgãos dirigidos por uma ala radical do agronegócio, mineradoras e, mais recentemente, pelas milícias que se apropriaram do Estado em todos os níveis”, disse Glicéria Tupinambá à ONU.

A fala do governo brasileiro na ONU repercutiu e gerou revolta entre lideranças indígenas, que lidam com ao menos 14 terras indígenas invadidas conforme levantamento da Repórter Brasil. Para integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o governo brasileiro constrói uma farsa à comunidade internacional.

“Não existe um fortalecimento da política indigenista e de demarcação das terras. Como não possuem argumentos para justificar, submetem as suas defesas a discursos vazios. A situação é desoladora. Os órgãos competentes estão paralisados. A política indigenista está desmontada”, explica Dinamã Tuxá, da coordenação da Apib.

Para o indígena, a postura do governo não busca na ONU cooperação para a garantia dos direitos dos povos tradicionais. Ao contrário, Dinamã destaca que os representantes reúnem subsídios e repassam informações inverídicas gerando uma falsa impressão com relação ao que se confere na realidade factual das aldeias.

“O governo não conhece de política indigenista e se nega a aceitar o que os povos indígenas conquistaram nos últimos 30 anos. Defendem a integração dos indígenas à sociedade branca, ou seja, o nosso fim”

Dinamã lembra que o governo Bolsonaro levou da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a atribuição administrativa pelos procedimentos de demarcação das terras indígenas.

Esta secretaria é liderada por Nabhan Garcia, da União Democrática Ruralista (UDR), tem como secretária-adjunta Luana Ruiz, advogada que milita em tribunais contra as demarcações de terras e possui fazendas em terra indígena, além da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, oriunda da bancada ruralista na Câmara Federal.

O representante da missão do Brasil, no entanto, declarou ao plenário da 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas: “A Funai continua plenamente comprometida com a garantia dos direitos e da qualidade de vida dos povos indígenas no Brasil e de iniciativas bilaterais e multilaterais”.

“O governo não conhece de política indigenista e se nega a aceitar o que os povos indígenas conquistaram nos últimos 30 anos. Defendem a integração dos indígenas à sociedade branca, ou seja, o nosso fim. O Estado brasileiro hoje é genocida. O que explica esse discurso vazio e desconhecedor da causa indígena”, diz Dinamã.

Colapso nas demarcações

A missão do Brasil junto à ONU destacou que as terras indígenas cobrem cerca de “12,5% do território, mais de um milhão de quilômetros quadrados, uma área maior que a França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Holanda juntas”. Se trata de uma representação de amplitudes que inversamente não se aplica à propriedade privada.

Em entrevista ao jornal português Observador, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro ressalta que no Brasil “diz-se que as terras indígenas são muito extensas, que perto de 13% do território nacional seria de terras indígenas”. O professor e pesquisador do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na sequência, conclui: “ora, a população indígena é cerca de 1% da população brasileira. Comparativamente, 46% do nosso território está nas mãos de proprietários privados, que não são 1% da população. São bem menos que os indígenas e são proprietários de quase metade do território”

No Brasil hoje é possível afirmar que há um colapso quanto às demarcações de terras indígenas. A conclusão do indígena Lindomar Terena, durante vigência de despejo judicial contra retomada do povo na TI Taunay-Ipegue, pode ser traduzida em números. Entre janeiro de 2011 até este mês foram homologados apenas 21 terras indígenas.

São 537 terras sem providências legais de um total de 847 com pendências administrativas (Cimi, 2018). Outras 169 estão em processo de identificação, 55 estão identificadas, 61 com portarias declaratórias, 19 homologadas (penúltima etapa do procedimento) e seis com portarias de restrição.

Tal quadro demonstra que o atual governo não só desestruturou a política indigenista em suas virtudes, como fez referência Dinamã Tuxá, como manteve os vícios das gestões anteriores. Uma delas envolve o pronunciamento da missão do Brasil junto à ONU na 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

“O governo brasileiro apresenta tradicionalmente na ONU o argumento de que áreas do tamanho de grandes países europeus estão demarcadas, sem explicar à comunidade internacional que 98.2% dessas terras estão dentro da Amazônia Legal”, explica Paulo Lugon Arantes, representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Genebra.

O que não significa uma situação controlada na região, que tem sofrido com a expansão das fronteiras do agronegócio. Um outro dado, porém, se destaca. No estado do Amazonas, por exemplo, há a maior quantidade de terras indígenas sem quaisquer providências quanto ao procedimento de demarcação: 262.

Muita terra sem nenhum índio

Na entrevista ao jornal português Observador, Viveiros de Castro lembrou que “a maioria da população indígena brasileira não está na Amazónia, mas no sudeste, no sul e no nordeste. A maioria das terras indígenas, terras públicas das quais os índios têm direito exclusivo de usufruto, a maioria dessas terras, sim, fica na Amazónia. Não a maioria da população”.

De acordo com sistematização do Relatório Violências Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2017, com base nos dados do IBGE e da Funai, 60% da população indígena está fora da Amazônia. O perfil das demarcações também muda: se tratam de áreas com territórios tradicionais mais degradados e, portanto, menores em extensão.

O Mato Grosso do Sul é um caso exemplar. São 102 terras indígenas com pendências administrativas (Cimi, 2018) e índices alarmantes de suicídios, violência contra lideranças, desnutrição e mortalidade infantil. São ao menos 68 mil indígenas no estado, sendo majoritariamente 45 mil Guarani Kaiowá e Ñandeva e 25 mil Terena (IBGE, 2010).

Conforme o De Olho nos Ruralistas, no Mato Grosso do Sul existem 1.351 hectares para cada um dos 58 políticos que cumprem cargos eletivos e apenas 1 hectare por Guarani Kaiowá. O estado possui 92% do território em propriedades privadas. Entre os Kaiowá, 31 mil dividem-se entre os 46.331 hectares registrados e homologados.

O Mato Grosso do Sul é um caso exemplar. São 102 terras indígenas com pendências administrativas (Cimi, 2018) e índices alarmantes de suicídios

Para o representante do Cimi na ONU, o governo brasileiro diz que há territórios demarcados tão vastos quanto França e Alemanha para tentar diminuir o tamanho da ineficácia estatal em cumprir com a Constituição Federal e as legislações internacionais correlatas quanto aos direitos territoriais dos povos indígenas.

Se os ruralistas costumam dizer que “há muita terra para pouco índio”, os fatos levam a crer, portanto, que há, na verdade, muita terra sem nenhum índio.

“O presidente Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, afirmou que não iria demarcar mais terras indígenas e, mesmo depois de ter a obrigação de deixar o candidato de lado e se assumir como presidente, esse posicionamento se confirma através dos vários ministérios e reformas que ele modificou”, destacou Arantes.

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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