16/11/2018

Justiça dá prazo de 72 horas para executar despejo de comunidade Guarani Kaiowá

Se não abandonar terra, parte do tekoha Laranjeira Nhanderu pode ser despejada com uso de força policial; comunidade aguarda demarcação há uma década

Crianças e idosos integram comunidade que pode ser despejada no Mato Grosso do Sul. Foto: comunidade Laranjeira Nhanderu

Crianças e idosos integram comunidade que pode ser despejada no Mato Grosso do Sul. Dona Alda, sentada, é uma das anciãs do tekoha. Foto: comunidade Laranjeira Nhanderu

Por Tiago Miotto, da Ascom/Cimi

A Justiça Federal de Dourados determinou que a comunidade Guarani Kaiowá do tekoha – lugar onde se é – Laranjeira Nhanderu desocupe parte de uma fazenda retomada no município de Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul. Caso não desocupem a área em 72 horas, contadas a partir de quarta-feira (14), a força policial pode ser utilizada para executar a reintegração de posse contra a comunidade.

A decisão judicial é do dia 9 de novembro, mas o prazo de três dias começou a contar a partir da notificação à Procuradoria Federal Especializada da Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo informações do órgão, eles foram notificados na manhã desta quarta (14) e preparam recurso contra a sentença. O despejo pela polícia, portanto, pode ocorrer a partir de segunda (19).

O juiz federal determina que a comunidade desocupe a sede e outras áreas retomadas na Fazenda Santo Antônio da Boa Esperança, mas mantém o direito dos indígenas permanecerem na reserva legal da propriedade, cuja mata é ocupada por eles de forma contínua há cerca de oito anos.

A sede da fazenda que incide sobre o território tradicional reivindicado pelos Guarani e Kaiowá foi retomada no dia 31 de outubro. O tekoha Laranjeira Nhanderu, segundo informação dos indígenas, tem cerca de 180 pessoas, incluindo crianças e idosos e contando também a parte da comunidade estabelecida na reserva legal da fazenda.

“A gente não vai sair. Nós vamos ficar. Estamos aqui nessa luta há onze anos, vamos permanecer aqui com a nossa reza, com os nossos anciões”, afirma Kunha Potý’i, moradora da comunidade.

“Estamos aqui pelo nosso direito e pela nossa terra. Faz muitos anos que estamos esperando sem plantar e sem colher nada, vivendo da cesta básica da Funai”

Preocupação com acesso a serviços básicos, como ônibus escolar para crianças, motivo aumento da ocupação. Foto: comunidade de Laranjeira Nhanderu

Preocupação com acesso a serviços básicos, como ônibus escolar para crianças, motivo aumento da ocupação. Foto: comunidade Laranjeira Nhanderu

Autonomia

A indígena explica que foram duas as razões principais para o avanço da retomada: a impossibilidade de fazerem seus roçados, na área de reserva legal, e também a falta de autonomia para se deslocarem e acessarem serviços básicos, pois o acesso à retomada precisava se dar por outra fazenda, cujo proprietário é muitas vezes hostil à sua passagem.

“Estamos aqui pelo nosso direito e pela nossa terra. Queremos que pelo menos o estudo seja concluído, faz muitos anos que estamos esperando sem plantar nada e sem colher nada, vivendo da cesta básica da Funai”, explica Kunha Potý’i.

“A gente não tinha como se sustentar, porque na mata legal a gente não pode derrubar as árvores para plantar batata, mandioca. Não tem espaço lá, e o mato nós queremos preservar”, prossegue ela.

A irregularidade das cestas básicas, na avaliação de Flávio Vicente Machado, missionário do Cimi regional Mato Grosso do Sul (MS), é um fator que reforça o ambiente de insegurança alimentar, crise humanitária e falta de perspectiva.

“Passados mais de dez anos, a comunidade viu-se inviabilizada de garantir a própria alimentação e uma reestruturação social efetiva, que continue respeitando a mata, contemple a construção de moradias permanentes, com acesso à água de qualidade, permanente atenção básicas de saúde e educação, tudo num contexto em que as famílias aumentam e o espaço continua diminuto”, avalia.

Além da falta de espaço, a situação era agravada pelo fato de que a estrada de acesso à área de preservação legal passava em frente à sede da fazenda vizinha. A entrada e saída dos indígenas, assim como dos órgão de assistência à saúde e educação, era bastante dificuldade e, por vezes, inviabilizada – mesmo contrariando determinação judicial.

“A gente ocupava essa estrada do outro fazendeiro para passar o ônibus da escola das crianças, porque na [fazenda] Santo Antônio eles não deixavam passar. Só que o outro fazendeiro nem sempre deixava, foram anos assim. Mexeram muito com nós. Cansamos de reclamar e agora resolvemos ocupar o resto da fazenda para termos a nossa própria estrada. Agora ninguém vai impedir a gente de entrar e sair”, garante Kunha Potý’i.

“Chegamos na sede pacificamente, porque essa é a nossa terra, é a nossa aldeia. Encontramos somente o capataz, e ele saiu pacificamente também”

Foto: comunidade Laranjeira Nhanderu

Foto: comunidade Laranjeira Nhanderu

Gado e capataz

A indígena relata que, quando decidiram ocupar a sede da fazenda, a única pessoa morando na propriedade era o capataz, e a ocupação transcorreu sem violência nem qualquer incidente, contrariando a versão dada no processo pelos fazendeiros – a qual, conforme ressalta a Funai, diverge também do registrado por eles mesmos no boletim de ocorrência.

“Chegamos na sede pacificamente, porque essa é a nossa terra, é a nossa aldeia. Encontramos somente o capataz, e ele saiu pacificamente também”, conta ela. “Disseram que nós usamos foice, facão, mas a nossa arma não é essa. É o nosso mbaraka, é o taquapu que a gente toca”.

Atualmente, a fazenda Santo Antônio encontra-se arrendada para um terceiro, que cria gado – segundo os indígenas, há cerca de 600 animais na propriedade. Antes de decidir pela desocupação da sede, o juiz concedeu um prazo de 72 horas para que os donos, acompanhados da polícia, tratassem e retirassem os animais da fazenda, mas isso não ocorreu.

“Nós não vamos impedir [a retirada do gado], porque os bois até são perigosos para as crianças, que circulam pela área. As barracas estão no meio deles”, afirma a indígena, que também nega que os Kaiowá estejam maltratando os animais.

“A não garantia dos territórios fomenta conflitos com os fazendeiros e aumenta as tensões inclusive dentro da própria comunidade”

A negligência na demarcação das terras indígenas dos Guarani e Kaiowá, no MS, cristaliza situação de conflito e crise humanitária. Foto: Ruy Sposati/Cimi

A constante luta dos Guarani e Kaiowá pela demarcação de suas terras não tem encontrado respostas do Estado, agravando crise humanitária e conflitos. Foto: Ruy Sposati/Cimi

Morosidade acirra conflitos

Parte do extenso território que lhes foi subtraído pelas políticas de colonização da região e confinamento dos indígenas ao longo do século XX, a demarcação do tekoha Laranjeira Nhanderu é reivindicada pelos Guarani e Kaiowá há mais de uma década.

A área foi incluída no Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai em 2007, que estabelecia prazos e multa ao órgão em caso de descumprimento – que desde 2010 está sendo acumulada.

O Grupo de Trabalho (GT) para identificação e delimitação da Terra Indígena Brilhantepegua, que abrange o tekoha Laranjeira Nhanderu, foi aberto em julho de 2008. Passados dez anos, entretanto, o relatório ainda não foi publicado.

“A não garantia dos territórios fomenta conflitos com os fazendeiros e aumenta as tensões inclusive dentro da própria comunidade, em função da impossibilidade dela reproduzir os seus modos de vida tradicionais. Os indígenas não podem fazer seus rituais, suas atividades cotidianas e nem sequer garantir sua alimentação tradicional”, avalia Machado.

“A gente tem nossos historiadores, que nos contam como era a vida antes aqui no tekoha e lembram de quando foram expulsos daqui”

Em 2011, quando retornaram ao tekoha Laranjeira Nhanderu, Guarani Kaiowá lutavam contra o risco de novo despejo, depois suspenso pela Justiça. Foto: arquivo Cimi

Em 2011, quando retornaram ao tekoha Laranjeira Nhanderu, Guarani Kaiowá lutavam contra o risco de novo despejo, depois suspenso pela Justiça. Foto: arquivo Cimi

Histórico

Os últimos dez anos do tekoha Laranjeira Nhanderu foram marcados por ameaças, ataques e mortes, mas também por uma perene resistência na luta pela terra reivindicada.

A primeira vez que a porção do território incidente sobre a Fazenda Santo Antônio foi retomada pelos Guarani e Kaiowá foi em 2008. Dois anos depois, eles acabaram sendo despejados por decisão judicial de segunda instância.

Os indígenas passaram, então, a viver acampados às margens de uma das estradas que ligam as fazendas da região à BR-163, onde sofreram com a falta de condições básicas de vida, inundações e ao menos três mortes por atropelamento.

Em maio de 2011, retornaram para a mesma área. No ano seguinte, a Justiça garantiu sua permanência na retomada e José de Almeida Barbosa “Zezinho”, importante liderança da comunidade, também morreu atropelado numa estrada da região, quando, de bicicleta, dirigia-se à cidade para exigir transporte escolar para as crianças indígenas que andam diariamente cerca de seis quilômetros para pegar o ônibus municipal.

As ameaças e o bloqueio do acesso à comunidade por fazendeiros prosseguiram, assim como os problemas decorrentes do uso de agrotóxicos nas fazendas que cercam os Guarani e Kaiowá.

“Já nos despejaram, mas a gente tem nossos historiadores, que contam para a gente como era aqui no tekoha e lembram de quando foram expulsos das aldeias daqui, ainda crianças”, relata Kunha Potý’i.

Os historiadores e historiadoras a que se refere não são bacharéis, mas os anciãos e anciãs que resguardam as antigas histórias do povo e da vida no tekoha. “Quando voltamos, alguns morreram, até emociona em lembrar. Hoje estão enterrados aqui, nessa terra, como os antigos”.

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