Justiça dá prazo de 72 horas para executar despejo de comunidade Guarani Kaiowá
Se não abandonar terra, parte do tekoha Laranjeira Nhanderu pode ser despejada com uso de força policial; comunidade aguarda demarcação há uma década
A Justiça Federal de Dourados determinou que a comunidade Guarani Kaiowá do tekoha – lugar onde se é – Laranjeira Nhanderu desocupe parte de uma fazenda retomada no município de Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul. Caso não desocupem a área em 72 horas, contadas a partir de quarta-feira (14), a força policial pode ser utilizada para executar a reintegração de posse contra a comunidade.
A decisão judicial é do dia 9 de novembro, mas o prazo de três dias começou a contar a partir da notificação à Procuradoria Federal Especializada da Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo informações do órgão, eles foram notificados na manhã desta quarta (14) e preparam recurso contra a sentença. O despejo pela polícia, portanto, pode ocorrer a partir de segunda (19).
O juiz federal determina que a comunidade desocupe a sede e outras áreas retomadas na Fazenda Santo Antônio da Boa Esperança, mas mantém o direito dos indígenas permanecerem na reserva legal da propriedade, cuja mata é ocupada por eles de forma contínua há cerca de oito anos.
A sede da fazenda que incide sobre o território tradicional reivindicado pelos Guarani e Kaiowá foi retomada no dia 31 de outubro. O tekoha Laranjeira Nhanderu, segundo informação dos indígenas, tem cerca de 180 pessoas, incluindo crianças e idosos e contando também a parte da comunidade estabelecida na reserva legal da fazenda.
“A gente não vai sair. Nós vamos ficar. Estamos aqui nessa luta há onze anos, vamos permanecer aqui com a nossa reza, com os nossos anciões”, afirma Kunha Potý’i, moradora da comunidade.
“Estamos aqui pelo nosso direito e pela nossa terra. Faz muitos anos que estamos esperando sem plantar e sem colher nada, vivendo da cesta básica da Funai”
Autonomia
A indígena explica que foram duas as razões principais para o avanço da retomada: a impossibilidade de fazerem seus roçados, na área de reserva legal, e também a falta de autonomia para se deslocarem e acessarem serviços básicos, pois o acesso à retomada precisava se dar por outra fazenda, cujo proprietário é muitas vezes hostil à sua passagem.
“Estamos aqui pelo nosso direito e pela nossa terra. Queremos que pelo menos o estudo seja concluído, faz muitos anos que estamos esperando sem plantar nada e sem colher nada, vivendo da cesta básica da Funai”, explica Kunha Potý’i.
“A gente não tinha como se sustentar, porque na mata legal a gente não pode derrubar as árvores para plantar batata, mandioca. Não tem espaço lá, e o mato nós queremos preservar”, prossegue ela.
A irregularidade das cestas básicas, na avaliação de Flávio Vicente Machado, missionário do Cimi regional Mato Grosso do Sul (MS), é um fator que reforça o ambiente de insegurança alimentar, crise humanitária e falta de perspectiva.
“Passados mais de dez anos, a comunidade viu-se inviabilizada de garantir a própria alimentação e uma reestruturação social efetiva, que continue respeitando a mata, contemple a construção de moradias permanentes, com acesso à água de qualidade, permanente atenção básicas de saúde e educação, tudo num contexto em que as famílias aumentam e o espaço continua diminuto”, avalia.
Além da falta de espaço, a situação era agravada pelo fato de que a estrada de acesso à área de preservação legal passava em frente à sede da fazenda vizinha. A entrada e saída dos indígenas, assim como dos órgão de assistência à saúde e educação, era bastante dificuldade e, por vezes, inviabilizada – mesmo contrariando determinação judicial.
“A gente ocupava essa estrada do outro fazendeiro para passar o ônibus da escola das crianças, porque na [fazenda] Santo Antônio eles não deixavam passar. Só que o outro fazendeiro nem sempre deixava, foram anos assim. Mexeram muito com nós. Cansamos de reclamar e agora resolvemos ocupar o resto da fazenda para termos a nossa própria estrada. Agora ninguém vai impedir a gente de entrar e sair”, garante Kunha Potý’i.
“Chegamos na sede pacificamente, porque essa é a nossa terra, é a nossa aldeia. Encontramos somente o capataz, e ele saiu pacificamente também”
Gado e capataz
A indígena relata que, quando decidiram ocupar a sede da fazenda, a única pessoa morando na propriedade era o capataz, e a ocupação transcorreu sem violência nem qualquer incidente, contrariando a versão dada no processo pelos fazendeiros – a qual, conforme ressalta a Funai, diverge também do registrado por eles mesmos no boletim de ocorrência.
“Chegamos na sede pacificamente, porque essa é a nossa terra, é a nossa aldeia. Encontramos somente o capataz, e ele saiu pacificamente também”, conta ela. “Disseram que nós usamos foice, facão, mas a nossa arma não é essa. É o nosso mbaraka, é o taquapu que a gente toca”.
Atualmente, a fazenda Santo Antônio encontra-se arrendada para um terceiro, que cria gado – segundo os indígenas, há cerca de 600 animais na propriedade. Antes de decidir pela desocupação da sede, o juiz concedeu um prazo de 72 horas para que os donos, acompanhados da polícia, tratassem e retirassem os animais da fazenda, mas isso não ocorreu.
“Nós não vamos impedir [a retirada do gado], porque os bois até são perigosos para as crianças, que circulam pela área. As barracas estão no meio deles”, afirma a indígena, que também nega que os Kaiowá estejam maltratando os animais.
“A não garantia dos territórios fomenta conflitos com os fazendeiros e aumenta as tensões inclusive dentro da própria comunidade”
Morosidade acirra conflitos
Parte do extenso território que lhes foi subtraído pelas políticas de colonização da região e confinamento dos indígenas ao longo do século XX, a demarcação do tekoha Laranjeira Nhanderu é reivindicada pelos Guarani e Kaiowá há mais de uma década.
A área foi incluída no Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai em 2007, que estabelecia prazos e multa ao órgão em caso de descumprimento – que desde 2010 está sendo acumulada.
O Grupo de Trabalho (GT) para identificação e delimitação da Terra Indígena Brilhantepegua, que abrange o tekoha Laranjeira Nhanderu, foi aberto em julho de 2008. Passados dez anos, entretanto, o relatório ainda não foi publicado.
“A não garantia dos territórios fomenta conflitos com os fazendeiros e aumenta as tensões inclusive dentro da própria comunidade, em função da impossibilidade dela reproduzir os seus modos de vida tradicionais. Os indígenas não podem fazer seus rituais, suas atividades cotidianas e nem sequer garantir sua alimentação tradicional”, avalia Machado.
“A gente tem nossos historiadores, que nos contam como era a vida antes aqui no tekoha e lembram de quando foram expulsos daqui”
Histórico
Os últimos dez anos do tekoha Laranjeira Nhanderu foram marcados por ameaças, ataques e mortes, mas também por uma perene resistência na luta pela terra reivindicada.
A primeira vez que a porção do território incidente sobre a Fazenda Santo Antônio foi retomada pelos Guarani e Kaiowá foi em 2008. Dois anos depois, eles acabaram sendo despejados por decisão judicial de segunda instância.
Os indígenas passaram, então, a viver acampados às margens de uma das estradas que ligam as fazendas da região à BR-163, onde sofreram com a falta de condições básicas de vida, inundações e ao menos três mortes por atropelamento.
Em maio de 2011, retornaram para a mesma área. No ano seguinte, a Justiça garantiu sua permanência na retomada e José de Almeida Barbosa “Zezinho”, importante liderança da comunidade, também morreu atropelado numa estrada da região, quando, de bicicleta, dirigia-se à cidade para exigir transporte escolar para as crianças indígenas que andam diariamente cerca de seis quilômetros para pegar o ônibus municipal.
As ameaças e o bloqueio do acesso à comunidade por fazendeiros prosseguiram, assim como os problemas decorrentes do uso de agrotóxicos nas fazendas que cercam os Guarani e Kaiowá.
“Já nos despejaram, mas a gente tem nossos historiadores, que contam para a gente como era aqui no tekoha e lembram de quando foram expulsos das aldeias daqui, ainda crianças”, relata Kunha Potý’i.
Os historiadores e historiadoras a que se refere não são bacharéis, mas os anciãos e anciãs que resguardam as antigas histórias do povo e da vida no tekoha. “Quando voltamos, alguns morreram, até emociona em lembrar. Hoje estão enterrados aqui, nessa terra, como os antigos”.