27/09/2018

O Agronegócio e a Política Brasileira

O Agronegócio trabalha para fazer das terras da união um negócio particular, de poucos. Se construiu um ‘Pacto de Poder’ através de manipulação dos direitos constitucionais para legalizar maneiras de obter, manter e concentrar a relação de propriedade privada sobre o território público.

Por Guilherme C. Delgado, doutor em Ciência Econômica (Unicamp) e membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)

A expressão “agronegócio” está cheia de ambiguidades ou múltiplos significados, de maneira que requer um preliminar esclarecimento. E esse esclarecimento inevitavelmente nos encaminhará ao título deste artigo. Vamos, portanto, fazer uma varredura das ambiguidades, para nos concentrar na relação que nos propomos esclarecer – agronegócio e política brasileira.

Duas noções convencionais de larga circulação são bem conhecidas, uma puramente descritiva e outra publicitária:

1) Agronegócio é o mesmo que negócio no ou com o agro

2) Agro (negócio) é tech, agro é pop, agro é tudo

As duas noções nada revelam sobre economia e política, que é no fundo o campo de atuação desse arranjo de poder. A primeira é semelhante a uma descrição do tipo “seis é igual a meia dúzia”. A segunda é uma peça publicitária, expressa em linguagem idolátrica e totalitária, que mais esconde do que revela sobre o que pretendemos desvendar – o papel desse sistema na política brasileira.

Por outro lado, veremos que palavras-chave de caráter seminal aparecerá se conceituarmos agronegócio ou economia do agronegócio como pacto de poder, envolvendo parceria estratégica de cadeias agroindustriais, do sistema de crédito bancário e dos proprietários da terra, sob regência e patrocínio do Estado brasileiro, com vistas à acumulação de capital nesse espaço de negócios.

“Pacto de poder”, “parceria estratégica” entre classes proprietárias, “regência do Estado”, “espaço de negócios” são ideias seminais à explicação das relações de grupos sociais dominantes com a política. Ajudam a desvendar e não a esconder os fenômenos sociais, econômicos e políticos que estão por trás do Agronegócio.

Esse pacto de poder com esses protagonistas mencionados – cadeias agroindustriais, sistema de crédito bancário e proprietários de terra – não é uma novidade histórica absoluta. Já houve algo parecido na época da ditadura militar, com o nome pomposo de ‘modernização conservadora da agricultura’, projeto que durou praticamente duas décadas, se esvaiu, mas não se encerrou com a Constituição Federal de 1988. Ficaria em estado de dormência ou hibernação por mais de uma década (meados dos 80 mais anos 90), até que no início dos anos 2000 seria relançado sob os auspícios do segundo governo do Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 1999   .

A partir desse relançamento, agora fortemente ligado à especialização brasileira nas exportações primárias – agrícolas e minerais, esse pacto de poder caminhou por vários governos – FHC II, Lula I e Lula II, Dilma e Temer – com alta subvenção de recursos públicos – de créditos e incentivos fiscais. Apoiou-se as cadeias agroindustriais exportadoras de meia dúzia de ‘commodities’, valorizando o patrimônio e a renda dos proprietários ou pretensos proprietários da terra.

O lugar dos “Direitos” da Terra no pacto de Poder do Agronegócio

Merece especial destaque nesse ‘Pacto de Poder’ o lugar que nele ocupam os proprietários de terra e suas estratégias políticas e privadas para captura de ganhos extraordinários (renda fundiária). Por sua vez, essas se dão com a manipulação dos direitos ou pretensos direitos de propriedade, posse e uso da terra. Como é sabido, é da manipulação desses ‘direitos’ que essa classe obtém ou captura várias formas de rendimento econômico, tanto externas (preços externos em elevação, elevam igualmente os prelos de terras e arrendamentos), quanto internos (subsídios fiscais e principalmente creditícios conferidos aos titulares de propriedade ou posse fundiária)

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por seu turno, para obter, manter e concentrar a relação de propriedade sobre o território, principal fonte de renda e riqueza para esse grupo ou classe social, é imprescindível não apenas controlar o governo, mas todos os Poderes do próprio Estado brasileiro. Afinal, sem este, que é o regente do pacto de poder, a orquestras não toca, ou quando o faz desafina por completo. Isto porque, não é possível por ação humana produzir novas superfícies territoriais a explorar ou controlar. Mas a ânsia por colocação no mercado de novos títulos de propriedade fundiária, estratégia requerida pela economia do agronegócio, requer operações combinadas, que em primeira e última instância avançam contra a legitimidade dos direitos de propriedade, posse e uso da terra, na forma e que estes estão definidos nos regimes fundiários constitucionais.

 

Regimes Fundiários

É necessário fazer uma rápida é sucinta abordagem dos regimes fundiários constitucionais. A análise permitirá entender porque estes são objeto de “avanços contra’, desconstrução e/ou sistemática desconsideração dentro da estratégia do mercado de terras autossuficiente, que é marca registrada do agronegócio.

Há três regimes fundiários constitucionais bem definidos e um quarto, que como se verá é ambíguo, prestando-se a toda sorte de manipulações:

O primeiro é conceitualmente àquele que designa e destina as terras à produção agropecuária, mas as subordina a uma função social –  produtiva, ambiental e trabalhista. O aparato legal (art. 186 da CF) deveria ser seu selo legitimador;

O segundo é o regime das terras étnicas – indígena (Art. 231 da CF) e quilombola (ADCT Art 68), cuja função explícita é de reprodução social das culturas ancestrais; e por isso se diferencia essencialmente do primeiro;

O terceiro regime fundiário, explícito no texto constitucional é dos parques e reservas naturais de caráter contínuo (Art. 225), cuja função precípua é de reprodução do próprio espaço da natureza.

Há um quarto regime, de terras de domínio da União (Art. 20 da CF), contendo uma miscelânea de situações fundiárias – ‘terras de fronteira’, ‘terrenos de marinha’, ‘terras devolutas’, ‘superfícies aquáticas’ e principalmente o domínio das terras dos segundo e terceiro regimes. Todo esse imenso espaço territorial de ‘domínio da União’, praticamente sem órgão gestor capacitado para lidar com um território de mais de metade do território nacional, funciona como uma espécie convite implícito às apropriações indébitas de patrimônio público.

Erosão dos Regimes Fundiários
A erosão e desconstrução dos regimes fundiários constitucionais se dá de diferentes formas. As mais insidiosas e malignas são as macro operações de grilagem de terras públicas (indígena, quilombola, de parques e reservas, de terras produtivas, mas que não cumprem a função social, de ‘terras devolutas’, ‘de fronteira’, ‘de marinha’ etc). São erosões que se dão ao abrigo de leis aprovadas pelo Congresso, notoriamente inconstitucionais. Os exemplos mais recentes são:

Lei 13.178/2015: ainda no Governo Dilma, sobre ‘legalização de registros cartoriais em toda zona de fronteira’

Lei n. 13.465/2017: do governo Temer, de legalização de grilagens na Amazônia Legal e privatização dos assentamentos, ambas sob distintas Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).

Essas ações de macro grilagem pretensamente legalizadas, são precedidas pelo trabalho sujo de ‘limpeza’ das áreas griladas com recurso sistemático à violência privada ou policial. Não são atos isolados, dos porões do sistema do agronegócio, mas partes e peças de sua estratégia de acumulação fundiária e de captura de renda e riqueza, para o que a participação no ‘pacto de poder’ dos proprietários de terra é essencial.

O Ano Eleitoral de 2018 como Potencial de Controle do Poder Político

Isto posto, parece-nos da maior relevância política, ‘dar os nomes aos bois’ no ano eleitoral que ora vivenciamos – de renovação dos agentes políticos em todos os níveis – Executivo e Legislativo, em todos os Estados e na União.

Salta aos olhos que há meios e modos de, pelo controle político, somado às lutas sociais, exercer um claro contraponto de autoproteção social à pretensão idolátrico do tal pacto de poder. Ademais, no nível regional, da eleição de governadores, prefeitos e deputados estaduais, também se reproduz o fenômeno nacional do pacto de poder do agronegócio, com características de alta ilegitimidade relativamente aos regimes fundiários constitucionais.

A depender das Bancadas Ruralistas operantes, com notória fúria legislativa para desconstruir direitos e constituir o mercado de terras autossuficiente, os direitos agrários, ambientais, hídricos, indígenas, quilombolas etc, não teriam vez.

Revelar o que eles fazem no Congresso Nacional é fundamental. E votar com consciência de que cada vez mais se aproxima a hora de separar o joio do trigo. Traduzir também para as pessoas não residentes no espaço rural a ideia de que – direitos agrários, ambientais, hídricos, étnicos etc são patrimônio de condição de vida digna para toda sociedade; e inversamente – propriedade privada irresponsável sobre o território é porta aberta à degradação das terras, águas, florestas, biodiversidade e clima planetário. O Agro não é tech, o agro não é pop, agro não é tudo.

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