14/09/2018

Grande Assembleia Guarani e Kaiowá aprofunda debate sobre impactos da desterritorialização, em defesa do tekoha

Durante o encontro os Nhanderu’s (nosso pai) e nhandesi’s (nossa mãe), lideranças homens, mulheres e jovens puderam fazer memória de como “era a vida no passado”, como eram as roças, como se plantava, colhia, e partilhava os bens dentro das comunidades indígenas.

Foto: Lídia Farias – CIMI/MS

Por Lídia Farias – CIMI/MS e Sandra Procópio – FAIND/MS

Indígenas das comunidades Guarani e Kaiowá estiveram reunidos, nos dias 5 e 6 de setembro, para discutir sobre os impactos da desterritorialização no modo de ser do tekohá. O Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá – abordou o tema “Bem Viver Kaiowá e Guarani: roça, espaço de afirmação e resistência em defesa do tekohá”. O encontro foi realizado no Tekohá Guira Kambi’y, T.I Panambi- Lagoa Rica, município de Douradina-MS.

Anciões e estudiosos destes povos, afirmam que eles sempre tiveram abundância de vida dentro dos seus territórios tradicionais, nunca lhes faltaram o necessário para se ter uma boa vida, a diversidade de espécies era grande, tinham comida e liberdade, no entanto, tudo isso ficou comprometido com o processo de confinamento nas reservas, instituídas pelo então Serviço de proteção ao índio – SPI, no inicio do século passado.  O processo de confinamento nas reservas ocasionou uma violenta agressão ao modo de Ser Kaiowá e Guarani, fragmentando comunidades, alterando as tradições culturais e práticas ancestrais, impondo a escassez de muitas coisas aos povos, além da falta de território, há escassez de alimentos, água, animais, cultura, saúde humana e ambiental, festa, segurança, e tantas outras.

Nas reservas, muitas práticas tradicionais como a roça deixaram de existir, ou foram limitadas às condições que as reservas os impunham nos minúsculos espaços que lhes sobraram, os Kaiowá e Guarani passaram a enfrentar grandes desafios na transmissão de conhecimentos. Esse fato gera problemas estruturais entre as gerações, tendo em vista que afeta diretamente no modelo de produção tradicional destes povos. Hoje, registram-se, inclusive, altos índices de mortalidade infantil por desnutrição nas comunidades Kaiowá e Guarani.

Segundo os indígenas, a água, a terra, as sementes, os alimentos e inclusive o corpo humano estão contaminados com venenos utilizados pelo modelo de produção capitalista. Essa situação gerou consequências graves à saúde das pessoas como diabetes, hipertensão, câncer e outras doenças devido à má alimentação e a contaminação do meio ambiente.

Seu Olímpio, rezador de Laranjeira Nhanderu, afirma que hoje com o processo de devastação da natureza, as plantas tinham dificuldades de nascerem e crescerem bonitas devido à grande quantidade de veneno que a terra recebeu nos últimos anos. “O espírito da planta foi embora de nós, por isso que a mandioca e o milho dá pequeno agora. O espirito da planta estava na terra, mas ela foi embora com o veneno e a derrubada”.

A roça pra nós, é aquela roça que sem nenhum veneno, que sustenta as nossas crianças. Roça não é dinheiro, é sustento, comida, água, criança livre e feliz. Roça é   festa, é partilha”.

Foto: Lídia Farias – CIMI/MS

Conforme Nilson, da Retomada Guira Kambi’y, “ Estamos cercados pelo agronegócio. Não tem mais como a gente plantar comida saudável. A gente planta, mas a nossa planta tem que crescer dentro de um quadrado, pois se ela passar pra fora, os pistoleiros estão de olho e nos ameaçam”.

Em resistência às condições, os Guarani e Kaiowá iniciaram, desde a década de 1980, um processo de retorno para os seus tekohá tradicionais. “A retomada é o espaço pra gente retornar do chiqueiro. Nós fomos enchiqueirados nas reservas. A retomada é para retomar nossa vida, nosso jeito de ser, nosso teko porã (lugar onde se é feliz), onde se pode fazer a roça e a casa onde queremos”, afirma Elizeu Lopes liderança do tekohá Kurusu Ambá.

Durante o encontro, os Nhanderu’s (nosso pai) e nhandesi’s (nossa mãe), lideranças homens, mulheres e jovens puderam fazer memória de como “era a vida no passado”, como eram as roças, como se plantava, colhia, e partilhava os bens dentro das comunidades indígenas. Os participantes falavam sobre a importância das rezas, cantos, rituais tradicionais na hora de se plantar, para que a as sementes pudessem brotar, crescer e dar frutos bons, afirmavam quão importantes eram as roças Kaiowá e Guarani para a transmissão de conhecimentos entre as gerações. Para Eliel Benites, “a roça é o espaço de ser feliz, de ter o coração bom, a roça é a gente, é a criança, é um lugar de convivência e transmissão de conhecimento”.

Dona Mileana Nhandesi, falava sobre o processo de cultivo do milho, produto considerado sagrado para os povos Guarani e como hoje têm dificuldade em encontrar a espécie. “Para fazer a roça, a gente tem que queimar e depois rezar para poder plantar o milho branco. Quando ele começar a crescer, tem que rezar de novo pra ele continuar crescendo e nascer a flor. Depois reza para sair à espiga, e ela crescer e ficar bem grande. Se não tiver a reza o milho branco não nasce”.

Daniela representante da Raj, Retomada da Aty Jovem, demostrava sua preocupação com o futuro dos rituais tradicionais de seu povo, lembrava que ela como jovem agora está podendo ter contato com sua cultura, maS com a falta dos territórios, ela prevê que muitas crianças e jovens não terão este contato. Hoje, ela escutava falar em batismo do milho, Jeroki Guasu – encontro de rezadores-, mas teme pelos que ainda não nasceram, e encerrou sua fala com algumas perguntas: como será o nosso futuro? onde iremos nascer? quais serão as nossas referencias?

Foto: Lídia Farias – CIMI/MS

Na ocasião, também foi feita uma avaliação sobre os perigos que assolam as aldeias, quanto à falta de políticas públicas relacionada à produção de alimentos, principalmente políticas que garantam o jeito originário de produção dos povos indígenas. O que se vê são tentativas de padronização dos processos de produção, restando às comunidades, muitas vezes se submeterem a tentativas falidas do sistema que assedia as lideranças para o arrendamento nas aldeias e retomadas. A avaliação apontou a existência de vários lugares que caracterizam verdadeiros territórios de exclusão social e fome diária. Dessa forma, o “subarrendamento” tem sido frequentemente imposto como ‘quase que única opção de subsistência’. Em troca do dinheiro imediato, muitas comunidades indígenas se tornou refém dessa prática.  

A partir dessa atividade, os Kaiowá e Guarani se comprometeram em fazer mais encontros e reuniões relacionadas à essa temática, favorecendo assim espaço de trocas e memórias, para que os membros do povo Kaiowá e Guarani possam continuar o seu modo ser, transmitindo as gerações presentes e futuras, valores, crenças, oportunizando a todos o fortalecimento e manutenção da cultura tradicional, reforçando sempre a condição de “filhos” da natureza, aqueles que precisam cuidar sempre da mãe, conforme fala do Senhor Ricardo (rezador) de Guyra Kambi’y “queremos nossos territórios de volta, queremos continuar sendo Kaiowá e Guarani, queremos nossas roças, nossos rituais, nossa cultura, sem território deixamos de existir”.

O encontro foi encerrado com uma grande reza e os participantes foram enviados fortalecidos para os seus tekohá’s de origem.

 

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