30/09/2018

Depoimentos: “A universidade não está preparada para tanta diversidade”

Em texto e vídeo, estudantes indígenas e quilombolas que participaram da mobilização em Brasília durante luta por políticas de Permanência relatam as limitações do ensino superior e a universidade mais diversa com que sonham.

À medida que as políticas de ingresso de indígenas e quilombolas no ensino superior avançam, sempre à custa de muita luta, o desafio passa a ser garantir também que esses e essas estudantes tenham sua diversidade respeitada e possam, assim, se manter na universidade e concluir suas graduações. Em junho, estudantes indígenas e quilombolas de 18 instituições federais de ensino superior estiveram em Brasília lutando por políticas públicas de permanência – com demandas que, como eles mesmos explicam, vão muito além de recursos financeiros e abrangem também a própria concepção de ensino e de conhecimento.

Nos depoimentos reunidos abaixo, estudantes que participaram da mobilização na capital federal relatam algumas das dificuldades enfrentadas no dia-a-dia e falam sobre o tipo de universidade que almejam.

Rodrigo Mariano Guarani Mbya

“A universidade não está preparada para tanta diversidade”


Rodrigo Mariano, Guarani Mbya
estudante de Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

A permanência dos estudantes indígenas e quilombolas nas instituições de ensino superior vai além desse recurso financeiro que é o Programa de Bolsa Permanência do MEC. São diversas questões que implicam na permanência dos estudantes indígenas e quilombolas nas universidades, e uma delas é o racismo, o preconceito na sala de aula. Isso acaba afetando a saúde mental dos estudantes, e as universidades têm carência de suprir essa necessidade de atendimento psicológico. As instituições não estão preparadas para receber tanta diversidade cultural no espaço acadêmico.

Queremos uma universidade que respeite as diferenças, porque são mais de 305 povos diferentes que estão tendo acesso ao ensino superior, que chegam na universidade e veem o despreparo dessas instituições para receber uma quantidade imensa de cultura, de tradição. E uma universidade que rompa com o racismo velado que existe dentro das instituições e que são reflexo das políticas de Estado e de governo.

A mobilização é válida. Um exemplo é o que conseguimos conquistar na UFSM: a partir de um movimento intenso de ocupações de reitoria, de discussões com lideranças, com o reitor, conseguimos avançar na aprovação do processo seletivo específico para estudantes indígenas aldeados e na construção da primeira moradia estudantil específica para indígenas em uma instituição de ensino superior. A mobilização indígena tem uma força que é imensurável.

“É um direito nosso buscar conhecimento para ajudar nossa comunidade”


Ane Kethleen, Pataxó
Estudante de Fisioterapia na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Queremos uma universidade que atenda às nossas necessidades. A gente tem uma defasagem no ensino público que é muito grande, mas o governo não vê isso. Eles acham que a gente tem incapacidade. Por isso, acabamos levando mais semestres para concluir o curso e corremos o risco de não receber a bolsa nos últimos anos da graduação, se ultrapassamos a duração padrão estimada para o curso.

Quando cheguei na faculdade, muitas pessoas vieram perguntar se eu tinha celular, se na minha comunidade as pessoas usavam roupas, e eu achei isso muito surpreendente vindo de pessoas já na universidade. Nós somos seres humanos, assim como eles, e também temos direito de viver como as outras pessoas. Os colonizadores roubaram nossa cultura, proibiram nossa língua, acabaram com nossas matas, e tem pessoas que perguntam: ‘vocês vivem em oca? Vocês caçam?’ Mas como caçar, se os animais estão em extinção?

Eu nunca tinha tido a experiência de me pintar e ir na faculdade. Um dia, tomei coragem e fiz. Muitas pessoas na rua ficaram mexendo comigo. Na faculdade, os meus colegas acharam bonito, mas houve muitos olhares constrangedores, tem sempre gente falando que não somos indígenas e estamos nos fantasiando.

A gente percebe o despreparo no ensino que eles dão: os professores passam algumas coisas e pensam que a gente já sabe. Quando a gente chega e fala que é indígena, muitos acham que a gente não deveria estar ali naquele espaço. Muitas pessoas, até professores, não entendem a nossa causa. Tem muita gente perdendo semestre, eu estou perdendo prova, e à vezes chego para conversar com os professores e eles não estão preocupados. Não veem a necessidade da gente estar correndo atrás dos nossos direitos e da nossa permanência.

Eu sonho com uma universidade que respeite a nossa cultura, que respeite as nossas crenças, em que a gente possa chegar sem ser recebido com olhares constrangedores, como se a gente fosse bicho, e sem que achem que a gente não pode estar na universidade porque é indígena. É um direito nosso buscar conhecimento para ajudar nossa comunidade.

“Tentam cortar nossos galhos, mas a nossa raiz é profunda”


Maura Arapiun
estudante de Farmácia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)

Quando a gente fala em Permanência dos estudantes indígenas e quilombolas na universidade, não significa somente que estamos esperando por esse recurso de 900 reais que o governo paga, porque esse recurso não dá basicamente para nada. A UFOPA, por exemplo, mesmo sendo a universidade com mais indígenas e quilombolas em nível nacional, não tem uma estrutura adequada para receber todos esses estudantes.

Não temos a assistência que merecemos, como restaurante universitário, casa do estudante, não temos nenhum apoio, principalmente psicológico, fora outras políticas de ações afirmativas que viemos lutando e o governo tenta nos calar.

A gente já tem uma dificuldade a partir do momento que sai da aldeia. É preciso entender que a população indígena e a população quilombola vêm de um ensino muito fraco, e quando o estudante indígena ou quilombola sai para a universidade ele tem um choque cultural. Chegando dentro da universidade, o professor não quer saber se você sabe fazer uma resenha, se sabe fazer um artigo. Ele passa e “te vira”.

Ainda assim, estamos conquistando cada vez mais nosso espaço. Nossos parentes, muitas vezes, pensam em desistir, mas nós vamos lá e incentivamos, porque sabemos que não é fácil. A gente passa fome, às vezes não tem como ir para a faculdade, e a universidade não nos dá esse apoio.

A evasão dos estudantes está sendo muito grande por conta disso. Muitos falam: “vocês só querem bolsa, só querem recurso”. Não, nós lutamos pelo que temos de direito. Não vai ser a forma de agir do governo que vai nos intimidar.

O maior problema que a gente enfrenta no dia-a-dia é o racismo, principalmente o institucional. E os indígenas bilíngues sofrem ainda mais, por não conseguirem se adaptar à linguagem dos professores.

Eu ouvi na semana passada um professor dizer assim: “eu tenho um plano e uma carga horária a ser cumprida. Se eu parar para ensinar vocês, não vou conseguir terminar o meu conteúdo até o final do semestre”. Ou seja, pouco importa se o aluno está aprendendo ou não, e se vai conseguir repassar o conhecimento adiante.

No Baixo Tapajós, somos treze povos e sofremos muito por sermos tratados como “índios falsos”. Nós não somos índios falsos. Os nossos avós, nossos bisavós sofreram, foram mortos, foram estuprados pelos brancos. O sangue branco também corre nas nossas veias, mas o sangue indígena permanece. Eles tentam cortar nossos galhos, mas a nossa raiz é profunda e sempre vai brotar. Não vai ser um branco que vai dizer que eu não sou indígena. Vou ser eu que vou dizer que sou, e meus parentes que vão me reconhecer.

“Um arcabouço eurocêntrico não permite a valorização dos nossos saberes”


João Batista, quilombola
Estudante de humanidades na UFBA

João Batista, UFBA

Queremos uma universidade que atenda às nossas necessidades. A gente tem uma defasagem no ensino público que é muito grande, mas o governo não vê isso. Eles acham que a gente tem incapacidade. Por isso, acabamos levando mais semestres para concluir o curso e corremos o risco de não receber a bolsa nos últimos anos da graduação, se ultrapassamos a duração padrão estimada para o curso.

Quando cheguei na faculdade, muitas pessoas vieram perguntar se eu tinha celular, se na minha comunidade as pessoas usavam roupas, e eu achei isso muito surpreendente vindo de pessoas já na universidade. Nós somos seres humanos, assim como eles, e também temos direito de viver como as outras pessoas. Os colonizadores roubaram nossa cultura, proibiram nossa língua, acabaram com nossas matas, e tem pessoas que perguntam: ‘vocês vivem em oca? Vocês caçam?’ Mas como caçar, se os animais estão em extinção?

Eu nunca tinha tido a experiência de me pintar e ir na faculdade. Um dia, tomei coragem e fiz. Muitas pessoas na rua ficaram mexendo comigo. Na faculdade, os meus colegas acharam bonito, mas houve muitos olhares constrangedores, tem sempre gente falando que não somos indígenas e estamos nos fantasiando.

A gente percebe o despreparo no ensino que eles dão: os professores passam algumas coisas e pensam que a gente já sabe. Quando a gente chega e fala que é indígena, muitos acham que a gente não deveria estar ali naquele espaço. Muitas pessoas, até professores, não entendem a nossa causa. Tem muita gente perdendo semestre, eu estou perdendo prova, e à vezes chego para conversar com os professores e eles não estão preocupados. Não veem a necessidade da gente estar correndo atrás dos nossos direitos e da nossa permanência.

Eu sonho com uma universidade que respeite a nossa cultura, que respeite as nossas crenças, em que a gente possa chegar sem ser recebido com olhares constrangedores, como se a gente fosse bicho, e sem que achem que a gente não pode estar na universidade porque é indígena. É um direito nosso buscar conhecimento para ajudar nossa comunidade.

“Permanência Já é um guarda-chuva na luta por uma universidade que reflita nossas comunidades”


Cleonilson dos Santos Pereira, quilombola
Estudante de história na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Queremos transformar o Bolsa Permanência, que até agora é uma portaria que fica à mercê de governos, em uma lei que a garanta realmente. Também queremos começar a pensar políticas públicas que realmente reflitam nossos desafios, porque até agora as políticas estão sempre nos excluindo ao mesmo tempo que nos incluem, nos deixando à margem. São políticas feitas para deixar tudo como está.

Todo esse movimento em prol desse guarda-chuva, que é o Bolsa Permanência Já, é para trazer uma universidade que realmente reflita nossas comunidades. Não queremos só ser incluídos numa universidade pensada de cima, que nunca está preparada para a gente, em que a gente chega cru e enfrenta dificuldade para fazer um simples trabalho acadêmico. São sempre professores da elite branca que não estão nem aí para as nossas dificuldades de berço.

Há questões básicas do dia-a-dia – como se alimentar, como acessar recursos – que se tornam difíceis porque a desinformação é total, você não sabe para onde ir. Estamos na mobilização também para começar a mudar essa realidade de descoordenação, para realmente trazer uma diversidade que seja inclusiva, que esteja de acordo com as diferentes realidades do público que ela atende, que não seja uma inclusão falsa, que descaracteriza.

Quando a gente chega na universidade, ela vai nos modulando, a exigência é tal que a gente vai perdendo nossas raízes, para atender demandas que muitas vezes não são nossas. E assim vai matando nossa cultura aos poucos, que é um movimento que já vem de longe, maquiado sob um discurso de progresso, de domínio do conhecimento, e sempre nessa hierarquia, na vertical: o que importa é o que vem de cima, e quem tá embaixo tem que se adequar.

Um caso não raro: minha amiga, também quilombola, entrou no curso de arquitetura da UFBA. No primeiro dia de aula, o professor vira para ela e pergunta: ‘você tem certeza que está no local certo?’. Na universidade, você não pode representar os mundos em que você anda, porque se você começa a mostrar o que é, ela começa a te excluir.

Não tem como dizer que a universidade não é racista, porque a estrutura do país é racista. E por trás das questões burocráticas e cotidianas que expressam um racismo institucional, tem uma mentalidade colonizadora que busca te colocar à margem e te impedir de acessar teu direito. Esses desafios, de agora por diante, nós vamos enfrentar juntos, para garantir que esses espaços tenham as cores desse país, com toda a diversidade e não apenas uma elite branca.

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