22/06/2018

Hakolo hexowa – Indigenismo encarnado na missão de Vicente Cañas junto aos Enawenê Nawê

Hakolo hexowa: a aldeia é fruto da comunidade. Vicente Canãs, missionário jesuíta que viveu com o povo e se fez Enawenê Nawê, escreveu sobre a dimensão comunitária do povo em seus diários

Vicente Cañas, o Kiwxi, é lembrado pelos mais velhos e se tornou parte da história do povo Enawenê para os mais jovens. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Guilherme Cavalli – Assessoria de Comunicação/Cimi

“Fortes, alegres e expansivos”.

Mesmo que os adjetivos recuperados dos diários de campo de Thomaz Aquino Lisboa, o Jaúka, tenham sido captados pela tez indigenista do missionário no raiar dos anos setenta, seguem definindo a essência do povo Enawenê Nawê em seu cotidiano na Terra Indígena próxima ao rio Iquê, afluente do Juruena, noroeste de Mato Grosso. Os Enawenê Nawê, indígenas contatados em 1973, regem sua organização e fazem da vida um constante ritual; grandes festas que saúdam os espíritos e direcionam os dias da comunidade. Cada ciclo vivido por eles é uma maneira de cultivar o sagrado e de exercer a partilha. Peixe, beiju, mandioca, chicha, batata, milho e mel. Tudo posto em comum geralmente por um dos nove yãkwa: o clã que está em festa. Povo alegre, aberto e rico em pluralidade musical e danças. Também, e sobretudo, pujante em sua espiritualidade, o que os fez conhecido como os “beneditinos da selva”, conforme grifo de Bartomeu Melià, jesuíta e antropólogo espanhol.

Hakolo hexowa: a aldeia é fruto da comunidade. A organização comunal se estende desde a alimentação, com as roças coletivas, até a construção das casas. Vicente Canãs, missionário jesuíta que viveu com o povo e se fez Enawenê Nawê, sob o nome de Kiwxi, escreveu sobre a dimensão comunitária do povo em seus diários. “O feitio das danças segue o toque de Yawkã: uns fazem as casas dos outros. As casas, uma vez concluídas, são ritualizadas mediante o toque de instrumentos musicais e dança”, narra Kiwxi em seu diário numa segunda-feira, 5 de janeiro de 1985.

A vida na aldeia é um constante Ser com o outro, segundo Vicente. Dança, ritual e trabalho se entrelaçam. Na terça-feira, 6 de janeiro de 1985, as flautas tocam antes dos primeiros raios de sol, próximo às 5 horas. “O pessoal começa a trabalhar nas casas, cobrindo com palhas de palmito. Durante os trabalhos, os donos das casas oferecem para o pessoal chicha de milho e batata assada”.  O hakolo hexowa evidencia uma característica do povo: dormir logo após o cair do dia e acordar ainda com a madrugada alta.

Hakolo hexowa: a aldeia é fruto da comunidade. A organização comunal se estende desde a alimentação, com as roças coletivas, até a construção das casas

No centro da  única aldeia, hoje formada por 19 hakolone (malocas), está uma fogueira acesa durante os rituais. Ao redor das madeiras em chamas, reúnem-se gerações para trocar histórias, cantar e em comunhão pouco habitual na sociedade envolvente cuidar uns dos outros. Mata li kiati: brincam não somente as crianças. Próxima da fogueira está a casa das flautas, instrumentos sagrados para o povo. A prática de encontrar-se é repetida todo fim de tarde e início de dia. Os rituais do povo – Yakairiti, Yãokwa, Lerohi, Salumã, Kateokõ, Enorenawê – centram-se na partilha e regem o calendário de plantio e pesca. A vida é reciprocidade e o segredo da vida comunitária tem o cerne na educação para a igualdade.

Os Enawenê Nawê consideram habitar um nível intermediário dos três universos existentes. Estão localizados hoje entre o mundo dos espíritos celestes e o mundo dos espíritos subterrâneos. Assim, para manter o equilíbrio das forças no mundo dos humanos e a comunidade da vida social, é necessário a realização sistemática de uma sequência de rituais – sempre dedicados aos espíritos. São eles que determinam as práticas produtivas que organiza o calendário econômico-ritual, dividido em quatro fases dispostas em um ciclo de aproximadamente um ano.

O “calendário Enawenê-Nawê” determina as práticas de plantio, colheita e pesca. Por exemplo, o ritual que mais se estende, e que dura aproximadamente quatro meses, apenas cessa quando uma pequena planta começa a nascer na mata. Direcionam a vida na bússola dos  rituais e pela natureza. Através do cronograma espiritual, organizam a rotina de trabalho com o propósito de produzir alimentos para o consumo cotidiano e que serão oferecidos em banquete aos espíritos. O ano inicia com um longo culto destinado aos seres subterrâneos e celestes – Iakayreti e Enore-Nawe. Nele, os Enawenê Nawê cantam, dançam e oferecem comida.

A vida comunitária Enawenê ocorre de forma risonha e alegre, respeitando o calendário de rituais que perpassa o ano todo. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Xiré: o primeiro contato com os Enawenê Nawê

Os Enawenê Nawê foram contatados há 44 anos. Um xiré (cesto) foi o primeiro utensílio encontrado pelo grupo de missionários e indígenas que buscou proximidade nos primeiros anos da década de setenta. Picadas de madeireiros eram vistas na mata, motivo pelo qual o mínimo contato com o povo se tornou uma decisão para que os indigenistas pudessem colaborar na resistência dos Enawenê Nawê diante aos invasores. O xiré encontrado na beira do lago tinha sinal de que era utilizado para guardar a pesca. Um achado bastante simbólico. Trançado pelas mulheres, o xiré é a marca da vida do povo, que tem no peixe a única carne como alimentação. Em troca, no lugar do cesto, foi colocado um facão, um machado, uma faca, batata doce e alguns capuchos de urucum – tinta para pintura. Os materiais deixados pela expedição de contato servia como presente e sinal de amizade.

Nos passos dos indígenas, o grupo encontrou cinco malocas com as portas fechadas. O lugar estava silencioso. Os que ali estiveram haviam partido pela madrugada, deixando rastos frescos em direção à beira do córrego. Esse foi o primeiro “cenário” encontrado por Thomaz Lisboa e Vicente Canãs, que sempre estavam acompanhados de indígenas Myky ou Rikbáktsa. “Logo deduzi que era uma simples aldeia de caça e pesca, uma aldeia de passagem e, tendo percebido a presença de outra gente em suas terras, seguiram para aldeia grande, indo avisar os demais”, descreve Jaúka no diário de bordo ao constatar casas pequenas e mal acabadas. A expedição continuou.

Os Enawenê Nawê foram contatados há 44 anos. Um xiré (cesto) foi o primeiro utensílio encontrado pelo grupo de missionários e indígenas que buscou proximidade nos primeiros anos da década de setenta

Dia 14 de julho de 1974, domingo. Às 15h30 o grupo chegou no pátio de uma aldeia grande, também abandonada. Oito casas em péssimo estado, rodeadas de mato. Contudo, sinal de fogo e rastros recentes indicavam a presença de um pequeno grupo. Deduziu-se que o lugar era também uma aldeia de passagem. Por ter em seus hábitos econômicos a coleta e a pesca, os Enawenê Nawê andam muito e constroem pontos de permanência passageira. Nessa ocasião, dois indígenas Rikbáktsa acompanhavam o grupo e ajudavam a identificar traços comuns entre o seu povo e os utensílios dos indígenas até então isolados. Acreditava-se que pertenciam ao povo contatado em 1971 e que eram famílias que optaram por “continuar livres”.

O contato foi estabelecido por processo de partilha. Primeiro o cesto e como contrapartida as ferramentas. Depois, indígenas deixavam biju de farinha de mandioca coberto com uma maraloise (panela) de barro. “Isso nos animou a prosseguir a caminhada, tentando atingir a aldeia”, relata Jaúka.

O terreiro cercado pelos malocões é o local das conversas e correrias das crianças. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Mulheres conversavam no roçado

Após duas semanas no acampamento, tempo suficiente para descansar, arrumar o motor do barco, que quebrava frequentemente, o grupo reiniciou a expedição. Saíram de manhã. A tarde corria quando atingiram uma área de plantação, uma roça de mandioca que ainda não tinham visto. Os indígenas que estavam com os missionários ouviram algumas mulheres que conversavam próximo ao roçado. Não compreenderam o que elas diziam. Assim, descobriram que não se tratava de indígenas Myky tampouco Rikbáktsa. Os isolados pertenciam a outro povo. Caminharam pela picada que ligava o roçado a uma, o que se supunha ser, aldeia.

-Boa tarde! –  disse Jaúka, enquanto se aproximava do centro da comunidade.

Uma correria se seguiu às primeiras palavras de contato. Na aldeia, somente mulheres e crianças, que dispersaram em direção à mata. “Prosseguimos em direção ao pátio e encontramos um índio aleijado, de meia idade, que não conseguia fugir”. Entregaram os presentes enquanto o primeiro indígena contatado falava e gesticulava, sem ser entendido. Uma palavra marcou a ocasião: Salumã! Foi assim que o grupo ficou conhecido por dez anos.

“Fazíamos com a boca – tu, tu, tu, tu – indicando que íamos descer o rio de barco a motor, e, apontando para o céu com a mão em círculo”, escreveu Jaúka

Jaúka e Kiwxi não desejavam desfazer o processo respeitoso estabelecido pelas trocas iniciadas com o xiré. Estava dando os melhores resultados o novo tipo de presença missionária: a não interferência  [como fizemos ] na vida Myky”, escreveu Thomaz. Tinham o cuidado de respeitar o tempo e pretendiam que os indígenas os compreendessem como presença aliada – e conseguiram ao ponto dos Myky batizarem Thomaz como Jaúka e Vicente como Kiwxi. Já não eram iñoti (brancos), na língua Enawenê Nawê. Deixaram algumas ferramentas ao homem com deficiência física e retornaram ao acampamento. No dia seguinte, enquanto se preparavam para retornar à aldeia, o grupo foi surpreendido por três indígenas Enawenê Nawê. Já não eram eles que buscavam contato, senão, os próprios indígenas que os viam como presença confiável.

“Fazíamos com a boca – tu, tu, tu, tu – indicando que íamos descer o rio de barco a motor, e, apontando para o céu com a mão em círculo”, escreveu Jaúka. “Demos a entender que voltaríamos na outra lua. Isso foi repetido diversas vezes, ao que parece, foi entendido”. Foi assim que se encerrou a expedição de julho de 1974. Notuitama – voltariam.

A descrição de Jaúka feita no diário da expedição após o primeiro encontro estende-se por décadas e pode ser compreendida como o extrato de um povo ainda hoje com pouco contato. Os Enawenê Nawê têm interações com a sociedade envolvente, algumas delas consideradas negativas pelo povo, caso dos peixes para os rituais que muitas vezes precisam solicitar à Fundação Nacional do Índio (Funai) por conta da degradação dos rios causada por pequenas hidrelétricas e demais intervenções dos iñoti. Por outro lado, é evidente o uso que fazem de tal troca: os celulares, por exemplo, tocam a todo momento os rituais gravados.

Outros relatos encontrados nos diários de Jaúka ainda podem ser vistos na aldeia. “Cabelo comprido caído nas costas e aparado na região temporal, acima das orelhas. Boa estatura, mais brancos que escuros, trazendo no peito adornos de algumas penas encastoadas em peças arredondadas e trabalhadas, de coco de tucum, tendo tiras finas de algodão apertando o bíceps e a barriga da perna e, nos tornozelos, fitas mais largas. O pênis embutido em palinha amarrada. Nas orelhas, traziam argolas brancas de forma triangular”.

O tradicional, a “modernidade” levada pela sociedade que os envolve e as dissociações arroladas neste processo, envolvendo a luta pelo território e o ódio disseminado por fazendeiros nos municípios do entorno da terra indígena, são fios tramados pelo próprio povo formando o xiré dos Enawenê Nawê neste início de século XXI.

 

 

Kiwxi: memória e presente Enawenê Nawê

Vicente Canãs, irmão jesuíta, nasceu em Albacete, Espanha, em 1939. Se nacionalizou brasileiro, inculturou-se e morreu como um Enawenê Nawê, povo que contatou em 1974. Foi batizado pelos Myky com o nome de Kiwxi. Este, porém, não foi o primeiro trabalho de Kiwxi envolvendo uma perspectiva que se diferenciava do indigenismo estatal: o contato não servia para retirar o povo do caminho do “progresso”, uma contradição de termo; era, todavia, para colaborar da melhor maneira possível com a resistência destes povos isolados com o intuito de que não saíssem de seus territórios cobiçados.

Como um dos primeiro trabalhos, em 1969, Vicente Cañas integrou a equipe em uma segunda tentativa de contato com o povo Tapayúna, conhecidos na época como Beiço de Pau. Antes, um contato mau executado pelo órgãos indigenistas do governo tinha condenado o povo ao extermínio: sobraram apenas 41 indígenas em poucos meses de contato. De outubro de 1969 até abril de 1970, Cañas dedicou-se a uma íntima convivência com estes resistentes Tapayúna. Na época, a política indigenista operava para deslocar o povo em vulnerabilidade para outra comunidade indígena. Os “beiço de pau” foram levados para conviver com o outros Tapayúna, no Xingu. Vicente e Thomaz foram pioneiros nas práticas de não retirar o povo do seu território. Assim, junto a outros missionários, buscavam uma nova forma de indigenismo e missão.

“Aquela experiência amarga de ver um povo destroçado e, ao mesmo tempo, poder experimentar a verdade da vida desse mesmo povo, nos marcou profundamente. Eu me senti, desde então, convertido à vida indígena e o Vicente também”, relata Thomas Jaúka no livro sobre os Enawenê, o qual dedicou um capítulo ao “melhor amigo Vicente”.

Notuitama

Em fins de 1975, Vicente apresenta o desejo de viver junto aos Salumã, como eram conhecido na época os Enawenê Nawê. Notuitama – voltariam. Segundo ele, era urgente a presença diante do processo de contato. “Achamos muito necessário que alguém acompanhasse esse povo, orientando-o no contato com a população envolvente, preocupando-se em garantir a terra e cuidado da saúde dos índios, preventiva e curativa, tornando-os mais resistentes às doenças do branco”, escreve Thomaz Lisboa.

Se passaram dois anos até o permanente contato, que consumiria mais de dez anos da vida de Kiwxi. Enquanto se preparava, permaneceu com Jaúka junto aos Myky. Depois, de julho de 1979 a julho de 1983, chegou aos Enawenê Nawê e não saiu da aldeia. Se fez um deles e pela sua presença, da vida e história com o povo, encaminhou-se o pedido de demarcação da terra tradicional. “Vicente era um homem à frente do seu tempo, da Igreja do seu tempo, do Cimi e de sua congregação”, caracteriza Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Era um homem de periferia que  rompeu com as missões coloniais”, diz.

Este envolvimento e compromisso com os Enawenê Nawê custou a vida Vicente Cañas, em um martírio previamente calculado naqueles tempos de massacres e genocídios. Seu corpo, quase mumificado pela floresta, foi encontrado no dia 16 de maio de 1987 por missionários do Cimi e dois indígenas Myky, próximo ao barraco que ele mantinha à beira do rio Juruena, a 130 quilômetros da aldeia Enawenê Nawê. A situação que foi encontrado o barraco de Vicente, onde ele mantinha um aparelho de radiofonia, remédios e combustível, indica assassinato. Próximo à sua rede, foram encontradas uma lente de seu óculos de sol quebrada. Do lado de fora, a um metro do barraco, o corpo de Vicente Canãs, nu.

À época, o secretário de Segurança do Mato Grosso, Otto Sampaio, declarou ser
praticamente impossível chegar aos assassinos. Afirmou que dificilmente a morte tinha
ocorrido em consequência de conflito de terra. Nos pés da cruz cravada onde Vicente foi assassinado e enterrado, como um Enawenê Nawê, 30 anos depois, sobrinhos do jesuíta, missionários do Cimi e indígenas fizeram memória ao Kiwxi dias após o segundo julgamento de seu assassinato, em novembro de 2017. Ronaldo Osmar, condenado neste último julgamento, era delegado da polícia de Juína, responsável por investigar o assassinato de Vicente. O júri popular o condenou a 13 anos e quatro meses de prisão por agenciar a morte de Kiwxi.

“Aqui podemos compreender o que aconteceu com nosso tio. O nosso coração está mais forte agora. É resposta para todos o que não puderam vir, para minha mãe, que era sua irmã. Por mais que ele nos contava, hoje conseguimos viver o que ele viveu. É preciso ver para compreender”, expressa Maria Canãs, sobrinha de Vicente.

Caracterizado por aqueles que o conheciam como um temperamento resoluto, rebelde, renitente, Kiwxi assumiu a radicalidade da opção pela vida dos povos indígenas. “Ele foi plantado e germinou e por isso os povos Myky e Enawene vivem”, diz Fernando Lopes, jesuíta membro da equipe do Cimi que trabalha com indígenas isolados. Lembra de Vicente como um sujeito que percorre desde a aldeia até as “selvas de pedra”. “Cañas nos desafía a transitar. Ele andava entre povos indígenas, Cimi, Jesuítas, e outras instituições. Seu esforço era para juntar todos em defesa da vida dos povos indígenas”, lembra o missionário espanhol. “Hoje ele continua a nos desafiar para que possamos fazer florescer a vida em todas as selvas onde a morte ameaça sobretudo os mais vulneráveis e fracos”.

“Kiwxi foi uma pessoa além do tempo dele. Mergulhou de cabeça no trabalho com os povos indígenas. Fez um trabalho novo, levando a fundo a inculturação. Isso inspira a todos os indigenistas e missionários”, relata Rodolfo Oliveira Filardo, missionário do Cimi Mato Grosso e principal entusiasta da reforma do barraco onde Kiwxi entregou tudo o que tinha aos algozes do povo a qual passou a fazer parte. O barraco é o símbolo da memória de Vicente, o notuitama definitivo, e entendido pelos Enawenê Nawê como um local sagrado. As referência ao Kiwxi entre os Enawenê Nawê é sempre no presente, como “presença encarnada”

Povo Enawene-Nawe. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Povo Enawene-Nawe. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Missão Calada: novo jeito de ser Igreja entre os povos indígenas

O magistério latino-americano pós Concílio Vaticano II, em 1961, assume a opção pela presença da Igreja nas periferias. Inaugurou nas comunidades eclesiais um novo modelo de missão. Contudo, muitos missionários e missionárias foram perseguidos e tiveram o  sangue derramado nas mais longínquas periferias por assumirem outro jeito de ser Igreja, encarnados nas realidades concretas das testemunhas do reino. As janelas abertas pelo Concílio Vaticano II provocaram um outro jeito de atuação, inclusive com os povos indígenas; ventos sopraram nos interiores do estado do Mato Grosso, com Elizabeth Rondon Amarante, Vicente Cañas, Thomaz Lisboa, Bartolomeu Meliá, Tere, padre Adalberto e outros e outras missionários e missionárias.

No caso de Beth Myky, como hoje se tornou conhecida, a missionária chegou no Mato Grosso em 1977. Estava adentrando no mundo indigenista, do qual faz parte há 40 anos. “Aos poucos fui entrando em contato com a realidade indígena em Mato Grosso e Vicente foi se tornando um ponto de referência para uma caminhada de interculturação”, escreveu Beth no livro em memória a Vicente Canãs.

“Vicente me disse: escuta, se não quer ir para os Enawenê, porque você não vai para os Myky?”, recordou Beth. No final de 1979, a missionária da Congregação do Sagrado Coração de Jesus chegou aos Myky, após oito anos do contato do povo, e permanece com eles até então, morando na aldeia e contribuindo com a escola indígena, mantendo registros diários sobre a vida do povo, desde os nascimentos e as mortes.

Junto com seus companheiros de peregrinação, precursores de um indigenismo de tipo novo, abandonaram os moldes de missão de retirada dos indígenas de suas áreas e passaram a ser presença junto a eles, fortalecendo a permanência dos povos em suas terras originais e incentivando as cosmologias e crenças espirituais peculiares. “Muita coisa mudou, tanto que Vicente e Thomaz diziam que fazíamos uma missão calada”, comenta Beth. “Ninguém entendia na época. Chegávamos para viver junto aos indígenas, do jeito deles. Não queríamos ficar batizando”.

Em tempos de Papa Francisco, que testemunha uma Igreja pobre para os pobres, torna-se compreensível a presença da Igreja nas periferias, como quem se põe a escutar. Na década de setenta, a ação missionária dava pequenos passos para abandonar as práticas catequizadoras e assumir o modelo debatido em ocasiões como a Conferência de Medellín, em 1968. Se orientava uma pastoral contra as injustiças e de opção preferencial pelos pobres. Ainda assim, aqueles que ousavam semear um Evangelho encarnado na vida das pessoas, foram considerados “gente que não tinha nada a ver com Igreja”. “Tivemos uma reação muito forte de alguns bispos e de suas dioceses devido ao novo modelo de trabalho. Durante muito tempo fomos taxados como loucos”, diz Beth.

Fonte: Jornal Porantim - Edição 404
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