25/06/2018

Desmonte da política indigenista e militarização de abrigos para indígenas migrantes são denunciados na ONU

Comunicação ao Conselho de Direitos Humanos da ONU foi feita por Cimi e Franciscans International. Em resposta, Brasil novamente mascara passivo de demarcações

Manifestações de estudantes indígenas e quilombolas contra corte de bolsa permanência em Brasília. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Manifestações de estudantes indígenas e quilombolas contra corte de bolsa permanência em Brasília. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Tiago Miotto/Ascom do Cimi

Mais uma vez, as políticas anti-indígenas do governo brasileiro e as violações aos direitos destes povos foram denunciadas na Organização das Nações Unidas (ONU). Em manifestação conjunta durante a 38ª sessão regular do Conselho de Direitos Humanos, Franciscans International e Cimi chamaram atenção para a paralisação das demarcações de terras, para o sucateamento da Funai e para a militarização dos abrigos para povos indígenas em situação de migração na Amazônia brasileira.

As denúncias foram feitas durante o Diálogo interativo agrupado com o Relator Especial sobre pobreza extrema, Philip Alston, e a Relatora Especial sobre Deslocados Internos, Cecilia Jimenez-Damary, nesta sexta (22), em Genebra, Suíça.

A declaração das organizações no Conselho de Direitos Humanos apontou que o Parecer 001/2017 da AGU, chamado de Parecer Antidemarcação, “torna impraticável o processo de demarcação de terras indígenas”. A afirmação, presente em constantes denúncias feitos pelos povos indígenas do Brasil, é corroborada pelo Ministério Público Federal (MPF), para quem o Parecer da AGU é inconstitucional e deve ser anulado.

“O empobrecimento adicional dos povos indígenas no Brasil anda de mãos dadas com o sucateamento da Funai, colocando as comunidades indígenas em risco iminente”

Austeridade e desmonte

As organizações também criticaram a atual política de austeridade e desmonte do Estado, materializada por meio da Emenda Constitucional 95. A medida congela os gastos não financeiros do Estado brasileiro por 20 anos, priorizando a remuneração de especuladores do capital financeiro, que hoje consome cerca de metade de toda a arrecadação do país.

As denúncias ecoam as declarações do próprio relator especial da ONU sobre extrema pobreza, que recentemente criticou as chamadas “políticas de austeridade”, alinhadas com a perspectiva neoliberal de diminuição da proteção estatal aos mais pobres e idealizadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

“Se há pretensão de responder efetivamente nos anos futuros aos desafios de um mundo em que tanto a globalização quanto as democracias liberais continuam a ser atacadas, o FMI precisará de uma mentalidade diferente”, afirmou Philip Alston, para quem a Emenda Constitucional 95 é uma “medida radical, carente de toda nuance e compaixão”.

O desmonte da política indigenista no Brasil, sustentaram as organizações, baseia-se nesta mesma diretriz e traz graves consequências aos povos indígenas, especialmente aos que ainda lutam pela demarcação de suas terras.

“medidas específicas, consentidas e efetivas são urgentes em virtude da crise humanitária que afeta os povos indígenas na Amazônia transfronteiriça, em vez de uma solução militarizada”

Mulheres Warao em Pacaraima (RR). Foto: Elaine Moreira

Mulheres Warao em Pacaraima (RR). Foto: Elaine Moreira

Povos transfronteiriços

Outro tópico trazido à reunião do Conselho foi a situação dos povos indígenas que migraram da Venezuela ao Brasil, concentrando-se especialmente no estado de Roraima, onde enfrentam a militarização dos espaços em que estão sendo acolhidos.

A situação, que afeta cerca de 700 adultos, crianças e idosos dos povos Warao e E’ñepa, tem gerado conflitos e já foi denunciada por um conjunto de organizações da sociedade civil, em maio.

“O Brasil não pode militarizar os espaços de recepção e coagir as famílias a se separarem, sob o pretexto da Segurança Nacional, violando as leis da migração, o devido processo e a organização social autóctone”, ressaltaram as organizações.

No caso dos povos indígenas, foi destacado que as medidas de acolhimento precisam ser consentidas, por meio de mecanismos de consulta prévia, livre e informada, e levar em consideração as suas especificidades socioculturais.

Os dados apresentados pelo Brasil deixam de fora o enorme passivo de demarcações existente. Há pelo menos 530 terras indígenas sem nenhuma providência e outras 300 estagnadas em alguma etapa da demarcação

Mais uma vez, Brasil mascara dados

O governo brasileiro reagiu às denúncias feitas no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Em uma réplica, defendeu a Emenda Constitucional 95 e disse que a Funai “permanece sólida e capaz de continuar cumprindo sua missão constitucional de promover e proteger os direitos humanos fundamentais” dos povos indígenas.

Em relação às demarcações, o Brasil afirmou que “462 terras indígenas demarcadas cobrem 13% do território brasileiro, uma área maior que França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Holanda combinados”.

Os dados apresentados pelo governo brasileiro, entretanto, deixam de fora o enorme passivo de demarcações que existe atualmente no Brasil. São pelo menos 530 terras indígenas sem nenhuma providência do Estado para proceder com sua demarcação e outras 300 estagnadas em alguma das etapas do procedimento demarcatório, segundo o mais recente relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil.

Além disso, em seus quase dois anos de governo, Temer segue como o presidente que menos homologou terras indígenas: apenas uma, a Terra Indígena (TI) Baía dos Guató, no MT, em abril deste ano.

“Trata-se de uma afirmação cínica do governo brasileiro, que cita terras já demarcadas –todas elas em administrações anteriores ao governo Temer – e mascara o enorme passivo de demarcações, paralisadas pelo Parecer da AGU e por uma Funai com orçamento congelado”, avalia o secretário Executivo do Cimi, Cleber Buzatto.

Para ele, o desmonte da política indigenista promovido pelo governo Temer coloca centenas de comunidades indígenas em situação de vulnerabilidade, sob risco de violência e conflitos.

O loteamento de cargos de direção da Funai para setores das bancadas ruralista e evangélica, inclusive com denúncias de favorecimento de empresas, vem sendo denunciado por servidores e servidoras do órgão indigenista.

Marcha durante o ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Marcha durante o ATL 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Denúncias recorrentes

Em fevereiro deste ano, a violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil já havia sido denunciada no Conselho de Direitos Humanos da ONU pelo Cimi, que detém status consultivo na organização internacional.

Também naquela ocasião, o Brasil apresentou uma réplica às denúncias apresentadas pela entidade, classificando-as como “alegações incompletas e enganosas”. Ironicamente, a grosseira resposta da representação brasileira, que não permite tréplicas, veio na mesma semana em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violar direitos indígenas, no caso Xukuru.

Em abril, Leila Guarani Nhandeva, do Mato Grosso do Sul, e Adriano Karipuna, de Rondônia, também levaram à ONU a preocupante situação de seus povos devido à falta de demarcação e fiscalização de suas terras, durante o Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas.

Nesta terça (22), Franciscans International e Cimi terão novamente espaço para manifestação na 38ª sessão regular do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em um painel sobre os direitos humanos dos deslocados internos.

“As declarações do Brasil na ONU não se sustentam quando comparadas com a realidade dos territórios, das comunidades e do próprio órgão indigenista oficial. Seguiremos denunciando internacionalmente a estratégia de dilapidação dos direitos indígenas no Brasil”, garante o secretário executivo do Cimi.

Confira abaixo a manifestação da Franciscans International e do Cimi:

Brasília, Genebra
22 de junho de 2018

Conselho de Direitos Humanos
38º Período Ordinário de Sessões do Conselho de Direitos Humanos
18 de junho de 2018 a 11 de julho de 2018

Item 3: Diálogo interativo agrupado com o Relator Especial sobre pobreza extrema e o Relator Especial sobre Deslocados Internos

Sr. Alston,

Apoiamos suas fortes críticas às políticas fiscais neoliberais do FMI, que excluí os mais marginalizados. O Brasil seguiu um caminho semelhante através da Emenda Constitucional 95, congelando os gastos públicos pelos próximos 20 anos. A nocividade desta emenda é generalizada e, como você mesmo mencionou, “medida radical, carente de toda nuance e compaixão”. O empobrecimento adicional dos povos indígenas no Brasil anda de mãos dadas com o sucateamento da FUNAI, colocando as comunidades indígenas em risco iminente.

Fundamentada no mesmo mercado e austeridade, um parecer do Governo brasileiro torna impraticável o processo de demarcação de terras indígenas, forçando 47.000 Guarani e Kaiowá a sobreviverem de cestas básicas barganhadas pelo estado e alterando drasticamente seus hábitos alimentares e seus sistemas próprios de produção de alimentos.

Sra. Jimenez-Damary,

Apoiamos os princípios orientadores que fundamentam “reconstruir vidas e restaurar a dignidade” humana das pessoas deslocadas. Reafirmamos que, para os Povos Indígenas, esses fundamentos só são possíveis, quando garantido a posse efetiva de seus territórios tradicionais e a defesa de sua relação particular com a terra. Negligenciar esta realidade é condená-los à miséria sistêmica e, acima de tudo, ao extermínio físico e cultural, vezes irreversível.

Portanto, medidas específicas, consentidas e efetivas são urgentemente em virtude da crise humanitária que afeta os povos indígenas na Amazônia transfronteiriça, em vez de uma solução militarizada. O Brasil não pode militarizar os espaços de recepção e coagir as famílias a se separarem, sob o pretexto da Segurança Nacional, violando as leis da migração, o devido processo e a organização social autóctone.

Muito Obrigado.

Declaração Oral Conjunta do Conselho Indigenista Missionário e da Franciscans International

 

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