22/06/2018

Contra o genocídio e o Parecer 001 da AGU: os saldos do ATL 2018

A mancha vermelha que contornou a Esplanada dos Ministérios no dia 26 de abril é o símbolo do Acampamento Terra Livre (ATL) 2018; e também da conjuntura indigenista. A tinta fez parte de um protesto que terminou no Ministério da Justiça

Bandeira do Brasil foi substituída por faixa pedindo o fim do genocídio dos povos indígenas. Foto Christian Braga/MNI

Por Renato Santana, Ascom/Cimi*

A mancha vermelha que contornou a Esplanada dos Ministérios no dia 26 de abril é o símbolo do Acampamento Terra Livre (ATL) 2018; e também da conjuntura indigenista. A tinta fez parte de um protesto que terminou no Ministério da Justiça, onde a bandeira do Brasil foi substituída por uma faixa pedindo o fim do genocídio dos povos indígenas. Era o último dia de atividades do acampamento, que recebeu pouca atenção de um governo ilegítimo até mesmo para muitos dos antigos apoiadores da desventura ainda em curso. Este foi o ambiente da 15ª edição de uma mobilização que ganhou ares de grande evento, reunindo este ano 4 mil indígenas, conforme números consolidados pela Articulação Nacional dos Povos Indígenas (Apib).

Fora a mobilização com este ato simbólico representando a violência sofrida pelos povos indígenas, o ATL 2018 colocou cerca de 3 mil indígenas no prédio da Advocacia-Geral da União (AGU) contra o Parecer 001/2017, na tarde do dia 25 de abril. Em vigor desde julho de 2017, o documento determina que toda a administração pública federal adote as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol nos processos de demarcação de terras indígenas. Um dos principais pontos do parecer é o Marco Temporal, tese ainda em discussão nas instâncias do judiciário e que condiciona o direito à terra tradicional somente para as ocupadas pelos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.

Há 11 procedimentos administrativos, em estágios avançados do processo de demarcação, conforme a Fundação nacional do Índio (Funai) informou ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que foram aviltados e paralisados por argumentos governamentais baseados no Parecer 001 da AGU.

Pressionada pelo prédio tomado, a ministra Grace Mendonça recebeu uma comissão de lideranças e afirmou não ter autonomia para revogar o Parecer 001. “Não temos autonomia para decidir aqui e bater o martelo por conta própria”, afirmou a ministra da AGU. Depois de admitir que a AGU não teria autonomia para revogar a portaria, indicando que ela depende do aval político do governo, a ministra comprometeu-se a convocar uma reunião para o dia seguinte com representantes do Ministério da Justiça, da Funai, do Ministério Público Federal (MPF) – que já pediu a anulação do parecer, por considerá-lo inconstitucional – e lideranças indígenas. Os indígenas aceitaram a reunião, sem deixar de questionar o fato de que o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), que deveria ser consultado sobre ações que afetam os povos indígenas, teve apenas uma plenária realizada durante o governo Temer, mas que sequer chegou ao fim.

Há 11 procedimentos administrativos que foram aviltados e paralisados por argumentos governamentais baseados no Parecer 001 da AGU

“Fica claro que o setor do agronegócio está influenciando diretamente nas decisões do governo e da Advocacia-Geral da União. Esse “parecer do genocídio” ele tem autoria, e essa autoria é do Congresso Nacional”, afirma Dinamã Tuxá, membro da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Sobre as consequências desta medida, um momento na região da AGU foi marcante: “Levante a mão quem tem parentes aqui que já morreram na luta pela terra”, pediu o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski. Com quase todas as mãos indígenas da sala erguidas, ele prosseguiu: “É isso, ministra, que está acontecendo. A cada imbróglio que tem, as milícias no campo agem”.

Cerca de 3 mil indígenas marcharam até a AGU pedindo o fim do Parecer 001 da AGU. Foto: Matheus Alves/MNI

Abril Indígena e o governo Temer

No contexto onde há 836 terras indígenas a serem demarcadas no Brasil, e com mais um presidente da Funai imposto e deposto pela bancada ruralista, em pleno Abril Indígena, mês do ATL 2018, a publicação do Relatório Circunstanciado da TI Pankará e a homologação da TI Baía do Guató não melhoraram a imagem de um governo que em dois anos aprofundou a crise da política indigenista estatal com marco temporal, cortes orçamentários, loteamento da máquina pública a partidos aliados e precarização do direito à terra.

A TI Baía do Guató foi homologada com 20 mil hectares no Pantanal matogrossense. Já a TI Pankará teve a demarcação de 15 mil hectares no Sertão pernambucano. “A felicidade foi muito grande porque em 2003 sequer éramos reconhecidos enquanto povo indígena, vivíamos fazendo ritual escondido… atrás da pedra, como papai costuma dizer, mas a gente sabe que ainda não é garantia porque o governo é fraco em proteger nosso direito”, afirma Manoelzinho Limeira Pankará. O indígena brinca: “Agora mais 15 anos pra homologar”.

Para os povos indígenas, as duas boas notícias sobre a regularização territorial, comemoradas timidamente em rituais nas aldeias, se perdem na extensa lista de notícias ruins e incertezas. “Além das invasões territoriais, o objetivo dos ruralistas, apoiado pelo governo Temer, é reverter até homologações. A terra Potiguara de Monte Mor já sofreu dois pedidos de revisão”, diz o cacique Sandro Potiguara, da Paraíba.

No dia 26 de abril, a homologação da TI do povo Guató foi anunciada por um representante do Ministério da Justiça (MJ) presente no segundo dia de reuniões com lideranças indígenas na Advocacia-Geral da União (AGU). Em pauta o Parecer 001/2017, que no dia anterior foi alvo de protestos por parte dos 3 mil indígenas presentes no Acampamento Terra Livre (ATL) 2018. Este parecer impõe à administração pública do Poder executivo, em termos concretos, o marco temporal como parte das condicionantes da TI Raposa Serra do Sol, tese onde só teriam direito às suas terras aquelas comunidades que estavam em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

“Acreditamos que é uma estratégia. Por que não homologou antes? Então teve o protesto na AGU, a pressão, a negativa do governo em anular o Parecer 001 e como uma forma de não ficar tão ruim oferecem uma homologação. O nosso direito acaba sendo usado como barganha, moeda de troca, jogada pra mídia”, pontua Kretã Kaingang, da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul). Conforme revelou o Instituto Socioambiental (ISA), a TI Baía do Guató era uma das quatro demarcações que aguardam apenas a assinatura do presidente da República para serem homologadas.

Mais cedo, na ensolarada manhã do mesmo 26 de abril, penúltimo dia do ATL 2018, os indígenas protocolaram um documento no MJ no qual repudiam a paralisação das demarcações de terra durante o governo Temer. Os indígenas foram recebidos pela Polícia Federal, as informações sobre a presença do ministro Torquato Jardim se desencontraram neste dia, e somente após uma longa negociação permitiram o protocolo do documento levado em nome da marcha – simplesmente a mais importante do país no âmbito da questão indígena.

O ministro Jardim se tornou um articulador importante para impedir que as engrenagens constitucionais estejam em pleno funcionamento para os povos indígenas. Muito embora tenha assinado as portarias declaratórias de apenas duas TIs: Tapeba (CE), que já está sofrendo duras investidas políticas e judiciais, e a Jurubaxi-Téa (AM). Por outro lado, revogou a portaria declaratória que revisou os limites da TI Jaraguá (SP) de menos de dois hectares, então a menor do país, para cerca de 532 hectares. Uma decisão liminar da Justiça Federal suspendeu a medida do ministro.

“É preciso ressaltar que tudo faz parte de uma estratégia (do governo Temer) com ares democráticos para cometer o arbítrio de períodos de exceção”

De tal forma que governo de Michel Temer publicou duas portarias declaratórias, suspendeu outra e homologou uma demarcação. Este é o pior desempenho nos dois primeiros anos de um governo desde a redemocratização. Neste meio tempo, ratificou a Portaria 001 e entregou a Funai para o PSC, partido evangélico e da base da bancada ruralista. “O governo Temer resolveu fazer o que nunca havia sido feito, que é o processo inverso de demarcação, a ‘desdemarcação’, que retira um reconhecimento que já havia sido feito”, comenta David Karai Popyguá, liderança Guarani da TI Jaraguá, em São Paulo.

Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), conforme a carta final do ATL 2018, “completados 30 anos da Constituição Federal de 1988, que consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro, os povos indígenas do Brasil vivem o cenário mais grave de ataques aos seus direitos desde a redemocratização do país. Condenamos veementemente a falência da política indigenista, efetivada mediante o desmonte deliberado e a instrumentalização política das instituições e das ações que o Poder Público tem o dever de garantir”. Conforme declaração da indígena Sônia Guajajara, durante o ATL, o governo possui tendências genocidas alimentadas por uma conjuntura de baixa democracia.

Uma das marcas do ATL 2018 foi o protagonismo da mulher indígena, que só deve aumentar nas próximas edições. Foto: Oliver Kornblihtt/MNI

“É preciso ressaltar que tudo faz parte de uma estratégia com ares democráticos para cometer o arbítrio de períodos de exceção, caso dos regimes militares. O CNPI (Conselho nacional de POlítica Indigenista) era um canal de diálogo e participação dos povos indígenas junto ao governo federal que simplesmente não é mais convocado. Nele discutimos inclusive as terras em fase de demarcação e homologação. Evidente que não demarcar as terras indígenas é parte de uma ação maior”, pontuou durante o ATL o assessor político da Apib, o indígena Paulino Montejo.

Em dois anos de gestão Temer, três presidentes esquentaram a cadeira da Funai. Antonio Costa, um pastor evangélico, foi o primeiro. O segundo foi o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Indicados pelos ruralistas, nenhum dos dois agradou o exigente apetite pela refeição mais comum no cardápio da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA): as terras indígenas. Paralisar não basta. Costa e Freitas foram depostos atirando, apontando a ingerência ruralista no órgão indigenista.

A intenção dos ruralistas é atingir um objetivo antigo: as diretorias da Funai envolvidas nos procedimentos demarcatórios, acreditam as lideranças da Apib

Um empresário na Funai

Para tentar matar a fome insaciável pelos territórios tradicionais, desta vez a bancada escolheu um empresário do ramo alimentício que tem no currículo cargos de segundo e terceiro escalão em ministérios, autarquias e agências federais variadas; em nenhum deles envolvendo a questão indígena ou assuntos correlatos. Wallace Moreira Bastos foi nomeado pelo ministro Torquato Jardim tendo no currículo a profissão de pregoeiro e investimentos em franquias como a lanchonete Girafas, a Casa do Pão de Queijo e outros estabelecimentos do ramo.

“Não conhecemos essa pessoa, nunca ouvimos falar, mas o principal é que a indicação vem de políticos contrários ao que a Funai tem como missão: atender aos interesses dos povos indígenas garantidos pela Constituição. Para gente, se trata da desarticulação completa do órgão indigenista”, afirmou Dinamã Tuxá, da coordenação da Apib. Para a liderança indígena, a intenção dos ruralistas é atingir um objetivo antigo: as diretorias da Funai envolvidas nos procedimentos demarcatórios.

A bancada parlamentar do agronegócio voltou-se, em 2013, à tomada de cargos da Funai. Missão dificultada durante a gestão de Dilma Rousseff, apesar da relação de proximidade de seu governo com o agronegócio. “O que temos de acabar é com aquele papelucho”, disse o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), na época, durante debates da Comissão de Constituição e Justiça sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215.

O “papelucho” referido pelo ruralista é o instrumento dos estudos que embasam os relatórios administrativos de demarcação das terras indígenas. São esses documentos, conforme procedimento previsto na Constituição e no Decreto 1775/1996, que definem se há ou não ocupação tradicional do território reivindicado por um povo, bem como o tamanho da terra. “De alguma forma é para comemorar muito esta homologação e esta demarcação. Parece que se tornarão cada vez mais raras. Só nos resta continuar retomando, autodemarcando”, diz Kleber Karipuna.

Para parar o genocídio contra os povos indígenas, ATL 2018 manteve a principal pauta do movimento: Demarcação Já! Foto: Mobilização Nacional Indígena

ATL em perspectiva

Kretã Kaingang lembra da primeira edição do ATL, em 2004. “Não éramos tantos quanto hoje e ficávamos em barracos, na Esplanada dos Ministérios, mas fazíamos muitos protestos e discussões políticas”. Passadas 15 edições, o ATL se tornou um grande evento. Em 2011, por exemplo, o ATL reuniu 700 indígenas, com a presença de quase 100 povos. Naquele ano, a Esplanada chegou a ser fechada e o governo recebeu lideranças indígenas com mais de cinco ministros de Estado e o gabinete da Presidência da República. Durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, o ATL 2012 concentrou no Aterro do Flamengo 1.500 indígenas de 90 povos. Durante todos os dias de ATL ocorreram atos públicos na capital Fluminense, com destaque para uma ação de ocupação no BNDES e protestos na Rio + 20 (que foi debelada pelo Exército). No ano seguinte, em 2013, o ATL teve um caráter histórico: cerca de 700 indígenas realizaram uma ocupação inédita ao Plenário Ulysses Guimarães, da Câmara Federal, contra a PEC 215, e outra no Palácio do Planalto.

No ano da Copa do Mundo do Brasil, em 2014, 600 indígenas fizeram do ATL um ponto de resistência aos grandes empreendimentos que comumente afetam as terras tradicionais, mas que naquele ano atingiram a vida de populações pobres de todo o país com despejos forçados e toda sorte de violações de direitos humanos para a construção de estruturas para receber o evento da Fifa. Um protesto do ATL, que se dirigia para o Estádio Nacional de Brasília, onde a taça da Copa estava em exposição, foi duramente atacado pela Polícia Militar. Uma batalha campal se estendeu durante cerca de duas horas, com indígenas presos e feridos.

A partir de 2015, o ATL passa a contar com mais indígenas de forma sequencial: 1.500 naquele ano. Já no ano seguinte, 2016, o do impeachment de Dilma Rousseff, estiveram em 1.000 e conseguiram a criação do CNPI – antes era apenas uma comissão – e a publicação de cinco portarias declaratórias e quatro relatórios de identificação. Dias depois do término do ATL, o Senado Federal aprovou o pedido de impeachment. No ATL de 2017, 4 mil indígenas estiveram na Esplanada dos Ministérios. Atos mais voltados para a sensibilização das autoridades públicas e da sociedade envolvente aos povos indígenas foram o foco. Nas regiões, estradas foram trancadas como parte das atividades do evento de Brasília.

 

Plenária inédita no ATL trata das demandas das mulheres indígenas

As falas das mulheres indígenas foram duras: exigiram a demarcação imediata das Terras Indígenas e o fim do ataque aos  direitos indígenas. Se os povos indígenas estão entre os mais vulneráveis sob governos que não acolhem às políticas públicas diferenciadas e de garantias constitucionais, é entre as mulheres que os efeitos do problema podem ser piores.

Carolina Rewaptu, cacique da aldeia Madzabzé, da Terra Indígena Marãiwatsédé (MT) – uma das mais desmatadas no Brasil -, frisou a importância das mulheres indígenas ocuparem os espaços de decisão política: “A gente tem que falar na presença dos políticos. Eles querem acabar com a nossa cultura, as nossas religiões, as nossas histórias. A gente tem que falar na presença deles”.

Muitas mulheres fizeram coro à fala de Carolina Rewaptu. Tal desejo se encarna no atual calendário eleitoral em Sônia Guajajara, pré-candidata à co-presidência pelo PSOL, ao lado de Guilherme Boulos, que frisou:
“Não viemos aqui porque gostamos de ficar dois dias no ônibus, deixando nossos filhos. Ou porque gostamos de tomar chuva e ficar acampados. Viemos para ocupar os espaços. Quem mais sofre com os empreendimentos, com esse modelo econômico predador, somos nós mulheres indígenas. Precisamos estar nos espaços que tomam as decisões”, apontou.

 

 

*Texto editado com base em informações da Mobilização Nacional Indígena.

Fonte: Jornal Porantim - Edição 404
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