Audiência no Senado discute autonomia de indígenas e ameaças a seus direitos
Com o tema “Aliança dos Povos Indígenas, fortalecendo a autonomia”, audiência pública foi realizada na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado
A primeira atividade pública do Acampamento Terra Livre (ATL) 2018 ocorreu na manhã desta segunda-feira (23). Enquanto, no Memorial dos Povos Indígenas, delegações vindas de todo o Brasil instalavam suas tendas e barracas, na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado ocorria uma audiência pública com o tema “Aliança dos Povos Indígenas, fortalecendo a autonomia”.
Indígenas de diversos povos acompanharam a sessão, enquanto lideranças, parlamentares e representantes de organizações de apoio se revezavam na mesa, falando sobre as perspectivas dos povos indígenas no Brasil e as ameaças que rondam seus direitos.
A presença e a voz de indígenas em uma comissão do Senado contrasta com o dia-a-dia do poder Legislativo, dominado por iniciativas anti-indígenas que pretendem retroceder os direitos firmados na Constituição – especialmente o direito à demarcação das suas terras, visadas pelo agronegócio, a mineração e os grandes empreendimentos.
“A Constituição brasileira tem mais de cem artigos. Nós só temos dois, conquistados com muita luta por nossos avós, nossos pais, e por esses dois artigos nós somos capazes de morrer e dar nossas vidas”, afirmou Kretã Kaingang, um dos representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Demarcações paralisadas
Grande parte das falas demonstrou preocupação a paralisia total das demarcações de terras no governo Temer, que não homologou nenhuma terra em seus quase dois anos de governo.
“Hoje vemos muito forte a falência total da política indigenista”, afirmou Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
“Isso só faz com que nossos territórios venham sofrer com os impactos dos empreendimentos e do agronegócio, e tem consequências no nosso modo de viver, na nossa alimentação e nas nossas crianças”.
“O pacto assinado entre o Estado e os povos indígenas, consagrado na Constituição Federal há 30 anos, está sendo rasgado por aqueles que se alçaram ao poder após o golpe de 2016”, afirmou Gilberto Vieira dos Santos, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Durante sua fala, foi exibido o vídeo em que, em 2013, o deputado ruralista Luís Carlos Heinze (PP-RS) afirma em uma audiência no Rio Grande do Sul que “índios, gays, lésbicas e quilombolas” são “tudo que não presta”.
“Parecer do Genocídio”
Além da paralisação das demarcações, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 e o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU) foram citados como algumas das principais ameaças aos direitos constitucionais dos povos indígenas.
Chamado pelos indígenas de “Parecer do Genocídio” e “Parecer antidemarcações”, o parecer da AGU obriga a administração pública a aplicar às terras indígenas do país condicionantes que o STF estabeleceu para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tendo como consequência a inviabilização das demarcações.
Considerado inconstitucional pelo Ministério Público Federal (MPF) e comemorado pelos ruralistas, a medida também obriga a administração pública a aplicar o marco temporal. Segundo esta tese, os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
“A demarcação das terras indígenas é um direito originário. E mesmo se não estivesse na Constituição, independe de estar escrito em algum lugar para ser direito nosso. A terra vem da nossa ancestralidade, e nós já estávamos aqui muito antes de 1988”, criticou Paulo Tupiniquim, da coordenação da APIB.
Direito à consulta e licenciamento
Outro tópico presente durante toda a discussão, presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS), foi a pressão de empreendimentos como hidrelétricas e estradas sobre as terras indígenas, muitas vezes implementados sem respeito ao direito dos indígenas à Consulta Livre, Prévia e Informada.
A consulta é uma garantia assegurada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Muitos povos indígenas, como os Munduruku, já criaram protocolos indicando como querem ser consultados – mas eles raramente são respeitados.
“O Brasil cria empreendimentos sem ouvir as comunidades afetadas, ignorando nosso direito de consulta livre, prévia e informada”, denunciou Nara Baré. “A Convenção 169 e os protocolos de consulta dos povos precisam ser respeitados, seja em empreendimentos grandes ou pequenos”.
Licenciamento ambiental
Se a situação já é grave com as atuais garantias, pode se tornar ainda mais severa caso os projetos de lei que pretendem flexibilizar o licenciamento ambiental de empreendimentos sejam aprovados.
Atualmente, três projetos que pretendem “agilizar” o processo de licenciamento de obras como estradas e hidrelétricas tramitam na Câmara e no Senado, explicou o advogado do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta,.
Segundo dois desses projetos – o PLS 168/2018, no Senado, e o PL 3729/2004, na Câmara – apenas comunidades indígenas com a terra homologada teriam direito a ser ouvidas.
“Ou seja, os povos que aguardam que o Estado pare de violar seus direitos e cumpra com a obrigação de demarcar suas terras não serão ouvidos. É uma dupla violação de direitos, totalmente inconstitucional”, afirmou o advogado.
Além destes, o PLS 654/2015, de autoria de Romero Jucá (PMDB-RR), pretende implementar o “licenciamento a jato” para obras de infraestrutura.
Em busca de paz
“Esperamos que o ATL tenha uma repercussão no sentido de que os direitos indígenas sejam escutados pelo governo e pelo legislativo”, afirmou Lia Zanotta Machado, presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Ela também denunciou a criminalização de lideranças e de profissionais da antropologia, perseguidos por iniciativas como a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e do Incra, criada, presidida e relatada por ruralistas, no ano passado.
“Como nós vamos sonhar com o que queremos para nossos territórios, se nós ainda não temos garantidos esses direitos?”, questionou Alberto Terena, da coordenação da APIB. “É só cumprir o que está na Constituição. Será que vamos continuar demarcando os nossos territórios com o sangue dos nossos jovens? Enquanto não se resolver a questão territorial em nosso país, nós não vamos dormir em paz”, concluiu.