Artigo | AGU mais uma vez na berlinda: o Parecer 303/12 e a Portaria 001/17 dispensam delação
Com base na relação dos interesses de classe que permeiam a política institucional do país, não há nada de novo no front: a AGU comumente sistematiza interesses menores e privados, atrelados a aliados de ocasião de governos de ocasião, em pareceres e portarias
O depoimento do ex-diretor da Agência Nacional das Águas (ANA) Paulo Vieira, acusado de comandar uma quadrilha que vendia pareceres em órgãos federais, coloca em maus lençóis a atual ministra-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Grace Mendonça, conhecida dos povos indígenas pelo Parecer 001/17, e o ex-ministro, Luís Inácio Adams, presente na memória recente da questão indígena pela invenção da Portaria 303/12.
As informações foram veiculadas nesta quinta-feira, 29, pelo jornal Folha de S. Paulo, que teve acesso exclusivo ao vídeo da oitiva realizada por uma comissão sigilosa da AGU no último dia 22 de fevereiro. O órgão abriu um processo interno com base na Operação Porto Seguro, realizada pela Polícia Federal. Grace e Adams foram associados aos operadores do grupo que negociava pareceres e despachos.
Um destes operadores, conforme revela a reportagem da Folha, seria o ex-senador Gilberto Miranda (MDB/AM). O político teria conseguido despachos após tratar com a atual ministra e Adams. Ambos negam as acusações que envolvem pedidos pessoais de interesse do ex-senador – contando ainda, conforme o depoimento de Vieira, com a ajuda de José Sarney no apoio político.
Em 2012, Adams, então chefe da AGU, quase deixou o cargo por conta da Operação Porto Seguro. A Polícia Federal indiciou o auxiliar direto de Adams, José Weber de Holanda, sob a acusação de ter recebido propina para elaborar pareceres que beneficiaram um empresário de São Paulo.
Em tempos de delações e vazamentos públicos, se faz necessário ressaltar o caminho que há entre o depoimento de Vieira e a comprovação do que nele está relatado (se houve propina ou outro ilícito). No entanto, podemos concluir, com base na relação dos interesses de classe que permeiam – no caso em tela – a política institucional do país, que não há nada de novo no front: a AGU comumente sistematiza interesses menores e privados, atrelados a aliados de ocasião de governos de ocasião, em pareceres e portarias.
Tomemos o caso da questão indígena.
Aos fatos: o então ministro Luís Inácio Adams esteve umbilicalmente atrelado ao interesse de ruralistas em medidas da AGU convergentes às condicionantes impostas à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ligando os pontos, o conteúdo da Portaria 303, publicada no dia 16 de julho de 2012, é todo voltado a estender às demais terras indígenas do país as tais condicionantes. Sob forte pressão do movimento indígena, organizações indigenistas, juristas e opinião pública, Adams suspendeu a portaria semanas antes do Supremo Tribunal Federal (STF) votar oito embargos de declaração apresentados à decisão da Corte que considerou constitucional a demarcação de Raposa Serra do Sol.
O ex-ministro afirmou que ela voltaria a valer assim que o STF julgasse os embargos, sendo três deles envolvendo questionamentos às 19 condicionantes – uma delas abordando a tese do marco temporal. Ardil que repercute até hoje: independente da decisão da Corte Suprema, a Portaria 303 teria validade e a tese do marco temporal se manteria apta a ser utilizada pelo lobby da bancada ruralista nos Três Poderes, e por seus aliados bem posicionados no Executivo e Judiciário.
Para os povos indígenas, o melhor seria a queda das condicionantes, mas a decisão do ministro relator Luís Roberto Barroso, proferida no dia 23 de outubro de 2013, acabou sendo uma vitória na batalha que se estabelece na atual conjuntura: no acórdão, as condicionantes se aplicam exclusivamente à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A semente da confusão plantada por Adams, em 2012, no entanto, associada ao ímpeto ruralista respaldado pelo Executivo, chefiado por Dilma Rousseff, e a atuação decisiva do ministro Gilmar Mendes em sentenciar o fim de demarcações com base no marco temporal, fez de um ponto pacífico no acórdão o início de uma nova guerra.
De 2014 para cá, a Segunda Turma do STF anulou as demarcações, com base nas condicionantes de Raposa, mais especificamente o marco temporal, das terras indígenas Guyraroka, do povo Guarani e Kaiowá, Limão Verde, do povo Terena, ambas no Mato Grosso do Sul, e Porquinhos, do povo Kanela Apanyekrá, no Maranhão. As decisões seguem sendo usadas como jurisprudência por juízes de primeira instância para deferir reintegrações de posse Brasil afora.
Ou seja, todo este imbróglio causador de sofrimento e insegurança jurídica para os povos indígenas, bem como para os ocupantes e invasores de suas terras, gerando conflitos e massacres, tem origem na cama de gato feita pelo ex-ministro Adams. O que não se podia imaginar com exatidão, à época, é que a situação política do país iria se deteriorar a ponto de Dilma Rousseff sofrer um impeachment articulado, inclusive, pelos principais interessados na atuação de Adams na questão indígena, que por pouco não é feito ministro do STF pela vontade da presidente.
Michel Temer então chega ao poder com uma dívida a ser paga para os fiadores de sua escalada à Presidência, com destaque para a bancada ruralista. Com medidas administrativas, ameaças de decretos e loteamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), o governo tenta de todas as formas atender seus aliados: inviabilizar por completo as demarcações de terras indígenas. O mecanismo mais eficaz, acima de qualquer ideia antes utilizada, novamente veio da Advocacia-Geral da União tomando por base a Portaria 303.
A manobra foi simples: a ministra-chefe Grace Mendonça concluiu “de forma inédita” que a Portaria 303 causava controvérsia institucional, ainda mais depois de suspensa, em 11 de maio de 2016, até que estudos solicitados em 2014 à Consultoria-Geral da União (CGU) fossem conclusivos quanto a sua adequação. Alguns órgãos do governo seguiram afirmando sua eficácia, caso da Procuradoria Federal Especializada, e outros insistiam que ela estava com os efeitos suspensos, caso da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Grace Mendonça decide então elaborar o Parecer 001/2017, estendendo – mais uma vez – todas as condicionantes impostas à Terra Indígena Raposa Serra do Sol para todos procedimentos de demarcação do país.
“Em razão de todos os problemas relacionados à forma da Portaria AGU n. 303/2012, faz-se premente e necessário que o seu conteúdo normativo, que simplesmente reproduz a decisão do STF na PET n. 3.388/RR, seja incorporado por parecer jurídico emanado desta Advocacia-Geral da União, o qual, uma vez aprovado pelo Presidente da República, possa ter os devidos efeitos vinculantes em relação a todos os órgãos da Administração Pública Federal”, conforme texto do despacho da ministra-chefe (leia na íntegra).
A argumentação de Grace Mendonça é ilustrada por falas do ministro Gilmar Mendes, entusiasta do marco temporal – na Segunda Turma do STF, Mendes sustentou a tese nos casos de anulação de demarcações. Para entender o caso Raposa Serra do Sol, a ministra-chefe lembra que “como ressaltou o Ministro Gilmar Mendes” a decisão deveria também “estar voltada para o futuro”, deixando “fundadas as bases jurídicas para o contínuo reconhecimento aos povos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam”. A colocação é a armadilha de um refinado mecanismo de obliteração dos dispositivos constitucionais: garantir o direito dos povos indígenas às terras “que tradicionalmente ocupam” a partir de 5 de outubro de 1988, sendo esta a tese do marco temporal, entre outras condicionantes.
Os fios da trama iniciada por Luís Inácio Adams, no governo Dilma Rousseff, tecem também nas mãos de Grace Mendonça, agora no governo Michel Temer, uma AGU explicitamente associada a interesses menores e privados. Sobre isso há prova – e ela não é oriunda de delação. Em um vídeo veiculado pela Frente Parlamentar do Agronegócio, o deputado federal ruralista Luiz Carlos Heinze (PP/RS) diz: “Nós acertamos um parecer vinculante em decorrência do qual mais de 700 processos envolvendo a demarcação de áreas indígenas serão atingidos, suspendendo essa demarcação”.
Heinze afirma que a Frente Parlamentar do Agronegócio vinha cobrando “qual a postura do governo Michel Temer sobre a questão indígena”.
O jurista Dalmo de Abreu Dallari resume de tal forma o Parecer 001: “O Presidente da República não solicitou esse parecer e ele não é expressão de uma análise jurídica, mas de uma conjugação de interesses manifestamente ilegal. Por essas razões, o parecer que for encaminhado ao Presidente da República com a chancela da Advocacia Geral da União, como referido no site da Frente Parlamentar do Agronegócio, não atende aos requisitos legais para ser vinculante, ou seja, para ser legalmente obrigatório”.