28/02/2018

Indígenas denunciam falta de consulta e direcionamento político em editais da Sesai

Além do direcionamento político, organizações e povos apontam falta de transparência e consulta prévia para a elaboração dos editais. Apib afirma que movimento indígena não aceitará modelo

Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins protesta por melhores condições na saúde indígena. Crédito: Arquivo/Cimi

Por Renato Santana, Ascom/Cimi

Um ofício do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Maranhão e a abertura de inquérito pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar o chamamento público da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) no Mato Grosso do Sul trouxeram de volta à pauta dos povos indígenas a ampliação da terceirização do Subsistema de Saúde Indígena. Na semana passada, representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirmaram ao secretário Marco Antônio Toccolini, indicado do PMDB à Sesai, que o movimento indígena não aceitará o modelo adotado, sem consulta aos povos.

Sônia Guajajara integra a coordenação da Apib e no Maranhão tem como atividade profissional a saúde indígena. Ela afirma que um documento foi protocolado na 6ª câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciando a publicação dos chamamentos como “violação de direitos”. Outro caminho definido pelo movimento indígena, conforme Sônia, é a deflagração de mobilizações regionais e em Brasília, elencando a pauta como uma das prioridades para o Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, que deverá ocorrer no final do semestre na Capital Federal.

Os Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI´s) já contemplados com os chamamentos publicados no Diário Oficial da União (DOU), mas sem definição das terceirizadas vencedoras do certame, são: Maranhão, Mato Grosso do Sul e Litoral Sul. A situação do DSEI Amapá e Norte do Pará está definida e o Instituto Ovídio Machado venceu a concorrência. Porém, os órgãos de controle social questionam o fato da empresa nunca ter trabalhado com saúde indígena. Nos editais seguintes foi suprimida a exigência de experiência pregressa em trabalhos com a questão indígena. Por essa razão, o DSEI-MA pediu ao MPF o cancelamento do chamamento.

“A saúde não pode ser entregue nas mãos de empresas sem que nossas argumentações sejam levadas em consideração”, diz trecho do ofício assinado pelo presidente do Condisi/MA, Cry’cry Krikati. Conforme denuncia o indígena, o Instituto Ovídio Machado, com sede em São Luís, se trata de uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que possui ligações com parlamentares do PMDB, sobretudo aqueles atrelados à família Sarney. O partido de Michel Temer e Romero Jucá tem dado as cartas na Sesai com indicações políticas, caso do atual secretário.

Em dezembro, os chamamentos para os distritos do Maranhão e Mato Grosso do Sul foram publicados e retificados. Para Cry’cry Krikati essa mudança ocorreu justamente para melhor adequar o edital ao perfil desejado pelo lobby político hegemônico na Sesai. O descontentamento é generalizado. “Nós sabíamos que o chamamento público tinha que acontecer até porque foi uma demanda do controle social e do movimento indígena. A elaboração dos editais é que não foi correta, pois deveria ter a participação do controle social e não teve. Fizeram entre a Sesai e o Ministério da Saúde sem passar pelo controle social”, afirma Paulo Tupiniquim, coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas gerais e Espírito Santo (Apoinme).

“A saúde não pode ser entregue nas mãos de empresas sem que nossas argumentações sejam levadas em consideração”, diz Cry’cry Krikati

“O maior problema é a entrada de OSCIP’s sem nenhuma experiência com a saúde indígena, o que coloca em risco todos os avanços que tivemos desde a criação da Sesai”, diz Paulo Tupiniquim. “Outra coisa é que nesse governo a Sesai e a Funai (Fundação Nacional do Índio) viraram moeda de troca para políticos e uma preocupação é que estes chamamentos favoreçam a OSCIP de algum político. Isso agravaria muito a situação”. Conforme o orçamento para este ano, a Sesai dispõe de mais de R$ 1 bilhão para dar conta do Subsistema de Saúde Indígena. Recursos até então distribuídos para três instituições que atendem usuários em 34 DSEI’s espalhados pelo Brasil.  

Na quarta-feira, dia 21, lideranças da Apib estiveram reunidas com Toccolini na sede da Sesai, localizada no prédio do Ministério da saúde. Conforme o secretário, os chamamentos precisam ser finalizados ainda neste primeiro semestre. O cronograma já faz parte de um adiamento, pois a ideia do governo era ter concluído o processo em dezembro. Desta maneira todos os editais deverão ser publicados até o meio do ano. Sobre a falta de consulta, Toccolini afirmou que o Fórum de Presidentes de Condisi sabia dos chamamentos. “Saber todo mundo sabia, o negócio é a participação que não ocorreu e não está acontecendo. O secretário disse ainda que os presidentes dos distritos estão participando da análise de documento e contagem de pontos, porém de que adianta participar se não podem opinar?”, questiona Paulo Tupiniquim.

O DSEI Leste de Roraima se manifestou em 22 de fevereiro,  por meio de nota pública, demonstrando “inconformidade em relação ao Chamamento Público anunciado pelo Ministério da Saúde para assinatura de novos convênios para as ações complementares de atenção à Saúde Indígena em todo o país. Não aceitamos a forma como este Chamamento Público está sendo realizado, sem um processo adequado de consulta aos povos indígenas, em flagrante desrespeito ao Artigo 231 da Constituição Federal e aos dispositivos da Convenção 169 da OIT da qual o Brasil é signatário”(SIC).  

“Outra coisa é que nesse governo a Sesai e a Funai viraram moeda de troca para políticos e uma preocupação é que estes chamamentos favoreçam a OSCIP de algum político. Isso agravaria muito a situação”, afirma Paulo Tupiniquim

Para o presidente do Condisi do Leste de Roraima, Adelinaldo Rodrigues da Silva, o processo é realizado “sem a devida transparência e participação das instâncias de controle social, em um período de final de governo e próximo ao processo eleitoral que vai acontecer no segundo semestre de 2018”.

MPF questiona mudanças

O MPF em Mato Grosso do Sul instaurou inquérito civil público (ICP) sobre processo seletivo com o objetivo de apurar alterações e retificações promovidas pela Sesai no edital de chamamento público. Em representação protocolada junto ao MPF, o Condisi/MS destaca que “as sucessivas alterações e retificações promovidas no referido edital diminuem o peso dos critérios de pontuação que levam em consideração a expertise na prestação do serviço de saúde nas áreas indígenas, direcionando assim o certame à contratação de uma entidade sem experiência na atuação em questão”.

“Estamos muito preocupados porque se trata da tentativa de aparelhar a saúde indígena no estado em benefício de organizações ligadas a políticos e partidos. A vida dos nossos povos é que está em jogo”, pontua Lindomar Terena. No Mato Grosso do Sul, entre 2016 e 2017, políticos ligados às bancadas ruralistas estadual e federal tentaram uma intervenção no DSEI. A intenção era fracionar o movimento indígena local, criando espaços para ingerências políticas. Em outras regiões do país a situação é semelhante.

O cacique Marcos Xukuru é taxativo: “O movimento indígena de Pernambuco é contra o novo modelo”. O indígena explica que nos fóruns de saúde vêm sendo discutidas formas de realizar a contratação da mão de obra. “Tanto o MPF quanto o Ministério Público do Trabalho questionam o atual formato quanto aos direitos trabalhistas. Existe inclusive a discussão de que o novo modelo deve ser o do concurso público. Estamos acompanhando e debatendo a discussão. Num Grupo de Trabalho aqui em Brasília tiramos conclusões”, aponta o cacique. A principal delas é que por conta das dificuldades de se fazer o concurso público, inclusive por empecilhos orçamentários auferidos pelo Ministério do Planejamento, o modelo atual das conveniadas pode servir.

“A Sesai começa discutir que já que as conveniadas têm um prazo, novos chamamentos deveriam ser realizados. Não há, portanto, problemas quanto a isso. Questionamos o fato de como os editais foram feitos, ou seja, sem nenhuma consulta aos povos e ao controle social. Quem discutiu? Ninguém sabe”, defende o cacique Xukuru. Para os indígenas a participação de universidades na fiscalização da política pública também traz preocupação. “Temos controle social para isso. Sem contar que conforme a Sesai as universidades poderão realizar pesquisas nos territórios sem a anuência dos povos. Nada disso foi discutido”, critica.

“Questionamos o fato de como os editais foram feitos, ou seja, sem nenhuma consulta aos povos e ao controle social. Quem discutiu? Ninguém sabe”, diz Marcos Xukuru

Cacique Marcos Xukuru comunica que em Pernambuco a decisão é pelo enfrentamento, já que a Sesai demonstra não voltar atrás em sua decisão. Durante esta semana, o Fórum de Presidentes de Condisi ocorre em Brasília, “então vamos esperar as decisões e postura do FPCondisi para saber que tipo de mobilização realizaremos, mas é certo que faremos algo”. Douglas Kaingang ressalta que o sentimento é o mesmo entre os povos organizados na Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul). “É o desmonte das políticas públicas e da política indigenista. Só com mobilização podemos enfrentar este quadro”, salienta.         

Falta de transparência

No atual modelo, em vias de acabar, apenas três empresas administravam R$ 1,5 bilhão de orçamento (Ministério da Saúde, 2017). “Os termos do Chamamento Público são semelhantes aos dos antigos convênios da Sesai. Os principais problemas em minha opinião são a falta de transparência e participação indígena no processo, o que permite o direcionamento político como está sendo denunciado pelo Condisi do Maranhão”, explica uma fonte ouvida pela reportagem e com vasta experiência na saúde indígena, acessando os bastidores da Sesai.

“É um absurdo total a falta de transparência deste processo e a exclusão dos Conselhos Distritais da participação na escolha das organizações que vão assumir as ações complementares e gerir a maior parte do orçamento dos distritos”, diz.

Novas regras estabelecidas pela Lei 13.204, de 15/12/2015, também conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (OSC), está em vigor e determina que os atuais convênios podem continuar se regendo pelas antigas normas até o seu encerramento, mas as novas parcerias não serão mais no formato de convênios, que servem agora exclusivamente para instituições públicas. O modelo então deve ser substituído por contratos ou termos de colaboração nos termos da nova lei. “Será que isto está claro no chamamento público?”, questiona a fonte.

Para os indígenas, há ainda o desrespeito aos princípios da gestão participativa estabelecidos na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. “A situação da saúde indígena está muito complicada em todo o país. As ingerências políticas são generalizadas, e o uso político dos distritos nas próximas eleições vai ser feito em escala colossal”, sentencia a fonte ouvida.

Histórico

Durante o encontro da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi), no começo de setembro do ano passado, uma agenda de mudanças foi apresentada pelo governo federal aos integrantes do órgão de controle social. A Sesai cancelaria até o dia 31 de dezembro de 2017, agora estendido para o meio de 2018, os contratos vigentes com as três entidades prestadoras de serviço nas aldeias dos 34 DSEI’s do país.

Cerca de 10 mil servidores não concursados, entre indígenas e não-indígenas, seriam demitidos. Ampliar a terceirização do Subsistema de Saúde Indígena estava em tela: ao invés de três entidades, a ideia era que o orçamento da Sesai, de R$ 1,6 bilhão (Ministério da Saúde, 2017), fosse executado por uma gama maior de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). A instabilidade é tamanha que em alguns Pólos Base o trabalho tem sido realizado de forma voluntária.    

“A situação de saúde Ka’apor está um caos. Ninguém tem noção de quem promove a saúde no pólo Zé Doca. Um faz de conta só.Cerca de 1.200 indígenas estão sem atendimento. Por isso realizamos a 3a. Ação Solidária de Educação em Saúde e Meio Ambiente no Núcleo de Saúde Tradicional do Ximborenda, entre os dias 13 a 22 de janeiro. Toda equipe voluntária de médicos e enfermeiros  realizaram atendimentos espontâneos”, explica liderança ligada ao Conselho de Gestão Ka’apor.

Cerca de 100 indígenas foram assistidos e os profissionais  identificaram nove casos positivos de tuberculose, dois casos de leishmaniose, além de oito suspeitas e hanseníase. Materiais foram coletados dos pacientes para análise laboratorial. Além disso, foi descoberto 84 casos de malária com oito óbitos “que o pólo base escondeu”, denunciam os Ka’apor.

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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