20/11/2017

Integracionismo à vista: a violência contra os povos indígenas e o golpismo no Brasil

A situação de violações e violências contra os povos indígenas foi profundamente agravada em 2016, agregada a elementos políticos que interferiram diretamente na relação do Estado brasileiro com os povos originários

Guarani e Kaiowá em manifestação em Brasília. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Guarani e Kaiowá em manifestação em Brasília. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Cleber César Buzatto, secretário executivo do Cimi
Artigo publicado no Relatório de Violência contra os povos indígenas no Brasil – Dados 2016

A situação de violações e violências contra os povos indígenas foi profundamente agravada em 2016. Aos dados de violência propriamente ditos, foram agregados elementos políticos estruturantes que interferiram diretamente na relação do Estado brasileiro com os povos originários e subverteram as determinações Constitucionais vigentes no país. Voltou com muita força a tentativa de se implementar a teoria da unicidade absoluta do Estado. Com o golpe político-jurídico-midiático que levou Michel Temer à Presidência da República, a ideologia do ‘Um só país para um só povo’ foi turbinada e começou a exalar pelas janelas do Poder Executivo brasileiro.

Às forças político-econômicas e ideológicas antiindígenas que já estavam instaladas no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministério dos governos anteriores, associaram-se grupos ainda mais conservadores, fundamentalistas e financistas. Temer assumiu junto com estes a mais importante cadeira da República e levou consigo todos os compromissos acordados com os mesmos. Como sujeito e objeto no processo, Temer radicalizou a opção governamental em prol dos interesses do Capital contra os direitos dos brasileiros e contra o interesse nacional.

Neste ambiente, os direitos indígenas também fizeram parte do pacote golpista. Às vésperas da votação do impeachement, a bancada ruralista e cerca de 40 associações de envergadura nacional e regional do agronegócio, representantes de produtores de commodities agrícolas destinadas fundamentalmente à exportação, acertaram os ponteiros em torno do documento “Pauta Positiva – Biênio 2016-2017 ”*. Cumpre destacar que, dentre os muitos itens demandados pelos ruralistas, constaram o “Respeito ao marco temporal e condicionantes do STF oriundos do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388/STF). Republicação da Portaria 303 da AGU”; a “PEC 215/2000…”; e a “Revisão das recentes demarcações de áreas indígenas/quilombolas, bem como de desapropriações para fins de reforma agrária…”(Sic). Temer reiterou o compromisso com o ruralismo e com essa pauta regressiva em diferentes ocasiões ao longo do ano 2016.

Nesta mesma direção, o orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) aprovado para o ano 2017 foi o menor dos últimos 10 anos. Colocar a Funai em estado vegetativo via  estrangulamento orçamentário é parte da estratégia governo-ruralista no ataque aos direitos indígenas em curso no país. Os ruralistas sabem que, com um orçamento extremamente reduzido, o órgão indigenista do Estado brasileiro perde as condições mínimas necessárias para dar seguimento às suas tarefas institucionais. Criação de Grupos de Trabalhos (GTs) para estudos de identificação e delimitação de terras indígenas; indenização a ocupantes de boa fé de terras demarcadas, proteção das terras indígenas contra invasores, presença de servidores junto a comunidades indígenas atacadas por milícias armadas ou abandonadas à própria sorte em beiras de rodovias, proteção a povos isolados e de recente contato e  investimento nas terras demarcadas são algumas das ações inviabilizadas com o estrangulamento orçamentário do órgão indigenista.

Ainda em 2016, para atender os setores financistas, o governo Temer enviou e o Congresso Nacional  aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016, que agravou ainda mais a situação. Na prática, com a aprovação da PEC 241/2016, o orçamento da Funai ficará estagnado num patamar extremamente baixo pelos próximos 20 anos. A referida PEC estabeleceu um teto de gastos com despesas públicas não-financeiras. A regra não se aplica para as despesas com juros e amortizações da dívida pública. Ou seja, o governo cortou na carne de mais de duzentos milhões de brasileiros para garantir o pagamento a uma meia dúzia de grandes investidores.  Uma iniciativa flagrantemente parcial em benefício dos financistas, já que quase 50% das despesas correntes do Estado brasileiro são exatamente de cunho financeiro.

Aprofundaram-se também as iniciativas governamentais que apontam para um processo de instrumentalização do órgão indigenista por grupos políticos anti-indígenas. Na nova composição governamental, a Funai foi destinada ao Partido Social Cristão (PSC). De perfil religioso fundamentalista, o PSC é um antigo aliado dos ruralistas na Câmara dos Deputados, se posicionando ao lado destes tanto nos debates e votações sobre a PEC 215/00, quanto no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai/Incra. Em coordenações regionais da Funai, inclusive, passaram a ser nomeadas pessoas indicadas diretamente por deputados ruralistas.

Com isso, o assédio político e o proselitismo religioso junto a lideranças, comunidades e povos indígenas foi e tende a ser ainda mais amplificado. Como resultado dessas iniciativas, é grande o risco de que divisões e conflitos internos sejam potencializados entre os povos nos próximos períodos.

A criminalização de lideranças indígenas e de aliados dos povos na sociedade brasileira alcançou um patamar ainda mais perigoso. Para além de ações locais onde alguns delegados da Polícia Federal conduzem inquéritos persecutórios e trabalham como verdadeiras sucursais das fazendas que costumam pescar nos finais de semana, os ruralistas ampliaram o uso dos instrumentos do Estado na tentativa de incriminar aqueles que cumprem suas responsabilidades institucionais na defesa dos direitos dos povos indígenas. A CPI da Funai/Incra foi a arma principal usada nesta perspectiva em 2016. A CPI foi intensamente usada como palco de reiteradas e requentadas acusações infundadas e de discursos discriminatórios e de incitação ao ódio e à violência contra líderes indígenas, membros do Ministério Público Federal, profissionais da academia, de modo particular da ciência antropológica, além de membros de organizações da sociedade civil que atuam legal e legitimamente em prol dos povos indígenas no Brasil.

A posse de Temer transmitiu ainda mais segurança e perspectiva de impunidade aos ruralistas em todos os níveis. O resultado disso foi a potencialização da agressividade nos ataques desferidos pelos mesmos contra os povos indígenas e seus territórios. No Mato Grosso do Sul, na tentativa de evitar que os Guarani Kaiowá retomem ao menos uma pequena parte de suas terras tradicionais, latifundiários agiram como milicianos e ampliaram o nível de letalidade em despejos extrajudiciais. Foi numa destas ocasiões, que a liderança indígena Clodiodi Guarani Kaiowá acabou assassinada e outras cinco foram feridas por projéteis de arma de fogo.

Em Rondônia, terras indígenas devidamente regularizadas e na posse pacífica de povos originários, além das invasões para retirada ilegal de bens naturais, passaram a ser objeto de loteamento, comercialização e apossamento ilegal de lotes e desmatamento para formação de pastos e lavouras por parte de não-índios. Um nítido indicativo de que foi posta em prática, pelos ruralistas, a estratégia de promover, Brasil a fora, uma nova fase de desterritorialização e ‘esbulho possessório’ contra os povos indígenas.

Cumpre-nos observar que a agressividade aumentada dos ruralistas não se restringe aos povos originários. Também estão na linha de tiro os quilombolas, demais comunidades tradicionais, pequenos agricultores, posseiros e campesinos em todas as regiões do país. Neste ambiente de ampla proteção institucional, é alto o risco de que fazendeiros recorram à prática de chacinas neste movimento de expulsão dos pobres do campo para ampliarem a grilagem e a exploração de terras no Brasil.

O ano de 2016 terminou com a perspectiva assimilacionista e integracionista em alta. Seja pela ação de fazendeiros, à revelia da lei, promovendo despejos extrajudiciais e desterritorialização forçada dos povos por meio de milícias armadas, seja pela ação de ruralistas e religiosos fundamentalistas via espaços institucionais, os direitos constitucionalmente reconhecidos dos povos a sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam…” (Art 231 da Constituição Federal) foram duramente agredidos e estão gravemente ameaçados.

Aos povos indígenas não resta outra alternativa senão continuarem resistindo e lutando em defesa da Constituição brasileira e dos seus projetos de vida e futuro. Aos seus aliados não restam outras alternativas senão continuarmos apoiando a luta dos povos e estando ao seu lado para o que der e vier.

Fonte: Cleber César Buzatto, secretário executivo do Cimi
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