Povo Karipuna vive iminência de genocídio em Rondônia
Por Ana Aranda, Especial para o Cimi Regional Rondônia
A Terra Indígena (TI) Karipuna, localizada nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré, com 153 mil hectares, homologada em 1998, fica no centro de uma região onde é grande e crescente a pressão sobre a floresta. Mal comparando, poderia se dizer que a TI estaria no olho de um furacão, devido à pressão de madeireiros, pescadores e grileiros que estão adentrando na mesma em todos os seus quadrantes. Ultimamente, a ocorrência de loteamentos aumentou a preocupação dos indígenas.
O procurador do Ministério Público Daniel Azevedo Lobo, que desde o início deste ano passou a acompanhar a difícil situação da etnia, considera a situação dos karipuna como de extrema vulnerabilidade. “Eu acho que se pode falar em uma pretensão de genocídio do povo karipuna, com o objetivo de invadir a TI, tirar os índios e ocupar a área. Para mim pode não ser um genocídio propriamente pela Lei Penal, mas é uma forma de genocídio do ponto de vista de direitos humanos. E também não afastamos a possibilidade de um genocídio do ponto de vista da lei penal, porque estas pessoas madeireiros e grileiros têm armas e muitas vezes são violentas. Então, pode haver genocídio, morte, violência”.
Além do medo de serem atacados e mortos dentro da TI pelos invasores, os indígenas também enfrentam grandes dificuldades para a sua subsistência. A coleta da castanha, importante fonte de renda para os Karipuna, foi interrompida pelo temor de ameaças feitas pelos invasores. O medo impede que eles transitem livremente pelas suas terras. Eles também encontram dificuldades para escoar a produção agrícola, porque a estrada de acesso está em precárias condições e fica intransitável durante o período das chuvas, situação que se agrava com o trânsito das dezenas dos pesados caminhões carregados de toras de madeiras nobres que deixam sulcos profundos no frágil leito de terra da via.
Área derrubada no interior da TI Karipuna para loteamento com acesso pela Linha 15 de Novembro. Foto: Cimi Regional Rondônia
Em maio deste ano, a Fundação Nacional do Índio (Funai) desocupou um posto de fiscalização localizado na entrada da TI. A estrutura financiada com recursos de compensação ambiental da obra da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio virou um elefante branco no meio da floresta. O gerador de energia elétrica do posto de fiscalização foi roubado e até mesmo os marcos da TI foram arrancados.
O procurador Daniel Azevedo Lôbo estranha “a coincidência” da desativação do posto da Funai com o início do chamado verão amazônico, caracterizado pela estiagem, que facilita as ações de retirada de madeira e desmatamentos.
Fotos de satélite enviadas à Funai comprovam invasões
Segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (Prodes), até o ano 2000, a área de desmatamento da TI era de 342 hectares. Até 2014, somava um acumulado de 1.279 hectares. Neste ano, a grande cheia do rio Madeira, cuja bacia inclui o Jaci-Paraná, na divisa da TI Karipuna, cessou a extração de madeira na região, mas em 2015 foram desmatados 123 hectares, de acordo com dados coletados a partir de fotografias de satélites pelo Serviço de proteção da Amazônia (Sipam). Boletins com estes dados são enviados sistematicamente para a Funai e outros órgãos de fiscalização. Em 2016, o desmatamento disparou, com um acumulado de 586,26 hectares, e 1.045,76 hectares de floresta foram derrubadas no período de 1º de janeiro a 13 de agosto de 2017.
Parte da floresta completamente destruída a apenas uma hora da aldeia. Foto: Cimi Regional Rondônia
As imagens também mostram uma linha bem definida que caracteriza uma estrada, crescendo da divisa para o interior da TI, nas linhas 15 de Novembro e 1º de Maio, na região de União Bandeirante. Em uma investigação feita juntamente com lideranças Karipuna, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) percorreu uma trilha feita na floresta a cerca de 7 horas de caminhada da aldeia Panorama. A entidade também localizou e fotografou “uma imensa clareira/derrubada em uma área de barreiro, importante ponto de caça dos indígenas, localizado à uma hora de caminhada da aldeia”.
Moradores da Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná – localizada na margem oposta à TI Karipuna, alertam que está aumentando a retirada de madeira na terra dos karipuna. “De madrugada a gente ouve a zoada dos caminhões saindo, carregados de madeira”, diz um morador. Ele fala de forma anônima, com medo de represálias, obedecendo a ordem de silêncio imposta na região.
Equipe do Regional Rondônia do CIMI também identificou loteamentos na região do rio Formoso e rio Jaci-Paraná e nas Linhas 1º de Maio e 15 de Novembro. Fundos de fazendas localizadas na divisa da TI estariam sendo usadas para acesso a mesma. Moradores denunciam que uma serraria clandestina estaria trabalhando na região.
Recomendação do MPF exige ação da FUNAI
Uma Recomendação do Ministério Público Federal assinada no dia 4 de setembro determina que a FUNAI elabore um plano emergencial de ação e autorize a liberação de recursos “para assegurar a proteção do povo Karipuna e a integridade de sua área demarcada” em um prazo de 10 dias úteis a partir da emissão do documento. O MPF também requer a elaboração e execução de um plano continuado de proteção à TI e seu povo. Os planos devem integrar as equipes da FUNAI com agentes do Batalhão da Polícia Ambiental do Estado de Rondônia e, como se trata de uma área federal, com reforço da Força Nacional de Segurança, do Exército Brasileiro e do IBAMA.
Estrada aberta por madeireiros no interior da TI Karipuna com acesso pela Linha 1 de Maio. Foto: Cimi Regional Rondônia
A Recomendação cita a ocorrência de oitenta e oito áreas da TI com retirada da cobertura vegetal (corte raso) captadas com imagens de satélite LANDSAT-8, de acordo com informações do SIPAM no âmbito do Programa de Monitoramento de Áreas Especiais (ProAE).
Segundo a Recomendação, “o processo de ocupação da TI Karipuna tem ocorrido por meio de loteamento, por não índios, principalmente em sua porção ocidental, inclusive com desmate e corte raso, abertura de linha e carreadores, fixação de marcos e plantio inicial de pasto e outras culturas, objetivando a ocupação paulatina da terra pública, processo que vem se aprofundando, desde 2016, conforme demonstram dados obtidos a partir de imagens de satélite e relatos de servidores da FUNAI e do Batalhão de Polícia Ambiental – BPA”.
A TI Karipuna é citada no Boletim de Desmatamento da Amazônia Legal produzido pelo IMAZON em julho de 2017, a partir de imagens de satélite do sistema MODIS, como a segunda terra indígena mais desmatada na Amazônia Legal.
O acesso à Terra Indígena Karipuna a partir da BR-364, no trecho da estrada que liga Rondônia ao Acre é feito pela RO-101, no distrito de Jaci-Paraná. Esta estrada dá acesso ao distrito de União Bandeirantes, na Capital, e segue até a RO-421, onde está localizado o município de Buritis e o distrito de Jacinópolis de Nova Mamoré, que estão localizados no entorno da TI Karipuna e desenvolvem uma intensa atividade madeireira.
Picada aberta por madeireiros no interior da TI Karipuna. Foto: Cimi Regional Rondônia
Neste mês de setembro, grandes nuvens de fumaça encobrem a região e comprovam o uso intensivo do fogo para abertura de novas áreas e a preparação da terra para a lavoura e a pecuária. A maior parte das propriedades é coberta de pasto. Pequenas propriedades cultivam café, mandioca, cacau, cupuaçu, abacaxi e banana, entre outros produtos. Caracterizadas pelo uso de maquinário pesado, áreas preparadas para a produção de soja e milho são cada vez mais freqüentes e já começam a substituir a criação de gado.
Madeira é retirada de Terras Indígenas e outras áreas protegidas
A madeira que transita livremente pelas estradas, localidades e cidades estaria sendo “esquentada” por concessões de planos de manejo emitidos pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam). Moradores da região denunciam que a madeira vem sendo retirada das TIs e áreas de preservação ambiental da região (TIs Karipuna e Karitiana, Floresta Nacional do Bom Futuro, Resex Jaci-Paraná e Parque Estadual de Guajará-Mirim).
O procurador Daniel Azevedo Lôbo ratifica esta informação “União Bandeirantes é uma área federal, da União e pela Lei Complementar 140 qualquer retirada de madeira em área federal é de atribuição do Ibama e não da Sedam. Muitas vezes, o pessoal apresenta um contrato de posse, de compra e venda entre particulares, não apresenta o domínio da terra e simplesmente a Sedam vem autorizando estes planos de manejo. Então é uma vertente que a gente pretende trabalhar, juntamente com o colega de Guajará-Mirim. Isto acontece no Estado todo e até em outros Estados do Brasil, esta criação de Planos de Manejo nas proximidades de Terras Indígenas”.
Placa indica a operação de um Plano de Manejo não-indígena no interior da TI Karipuna. Foto: Cimi Regional Rondônia
O coordenador do Departamento de Desenvolvimento Florestal da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam), Huérique Charles Lopes Pereira, informa que a Sedam aprovou três Planos de Manejo no entorno da TI Karipuna, localizados a 20,6430, 21.0100 e 13,4170 quilômetros da divisa da mesma.
O coordenador se comprometeu em tomar providências com relação à denúncia do povo Karipuna e do CIMI. “Em todos os projetos aprovados no entorno (da TI Karipuna) será feito um monitoramento via imagem de satélite e o acompanhamento da movimentação de saldo. Constatado a incongruência ou divergência no movimento, ou indício ou não indício de exploração, já é designada uma equipe para ir In loco, é feito um bloqueio do projeto e o sistema DOC e é feita vistoria in loco. Constatado [o ilícito] são tomadas todas as medidas, auto de infração, embargo, incremento para os órgãos de controle. E também pode ser feita através de denúncia. Feita uma denúncia de um objeto específico em um local específico também é mandada diligência [ao local]”.
Daniel Lobo alerta que “o estado de Rondônia passou e continua passando por um processo de avanço muito agressivo da exploração madeireira, acompanhada pela grilagem de terras públicas. Ocupar a terra pública em si é uma atividade ilegal, mas como isso tem sido feito com tanta freqüência no Estado de Rondônia é aceito como se fosse normal, as pessoas não olham como se fosse uma situação ilícita”, considera ele.
No caso das Terras Indígenas, ele diz que existem dois tipos de processos, aquele em que o objetivo é de exploração da madeira, minérios e outros produtos da floresta, com [a participação de] pessoas que têm interesse no valor comercial da madeira. E outro processo com interesse de ocupar terras públicas a fim de pleitear a regularização, posteriormente. Para o procurador, este último caso, que caracteriza a invasão (esbulho possessório) propriamente, ocorre atualmente nas Terras indígenas Uru-Eu-Wau-Wau e Karipuna.
Posto de fiscalização da Funai na TI Karipuna: desativado. Foto: Cimi Regional Rondônia
O procurador participou da Operação Jurerei, desencadeada pela Polícia Federal em 2 de agosto deste ano, quando foi desarticulada uma organização criminosa que loteava terras dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau e afirma que organizações criminosas agem de forma análoga para a invasão das duas TIs. Para ele, fazendeiros com propriedades lindeiras de áreas protegidas que querem expandir suas terras juntamente com madeireiros agem em conjunto com “aventureiros” que pleiteiam a posse e posterior legalização de terras públicas.
“Os processos dialogam, muitas vezes estas associações que reivindicam terras já trabalham junto com os fazendeiros. Alguns ficam na área e isto ficou bem caracterizado na Operação Jurerei, feita recentemente na TI Uru-Eu-Wau”, afirma Daniel Lobo.
A coordenadora do Cimi Regional Rondônia, Laura Vicuña, avalia que “a invasão, o desmatamento e o esbulho possessório verificado contra os Karipuna têm uma relação estreita com a política indigenista e ambiental do governo brasileiro e com as diversas iniciativas da bancada ruralista no Congresso Nacional que visam a desconstrução da Constituição Federal.
A tramitação da PEC 215/00, a tese do Marco Temporal e o Parecer 001/2017 da AGU aprovado pelo presidente Temer em julho são exemplos de iniciativas que tem sido usadas como instrumentos para ‘justificar’ as ações ilegais em questão e, por isso, servem como estímulo às mesmas”.
Organização criminosa comanda invasões
A liberdade com que os madeireiros e grileiros agem no local está baseada em uma logística montada pelo que o procurador Daniel Lôbo define como “uma perigosa organização criminosa”.
Olheiros permanecem em locais estratégicos e avisam sobre qualquer movimento estranho à rotina do lugar e principalmente sobre a presença de representantes de órgãos de fiscalização. Eles usam uma eficiente rede de comunicação com aparelhos de rádio-amador, que cobrem toda a região.
Cena é comum por toda a TI Karipuna: árvores marcadas, estacas para definir lotes e toras, muitas toras. Foto: Cimi Regional Rondônia
Um levantamento feito pelo CIMI baseado em depoimentos de moradores, que só falam de forma anônima, listou pontos de observação dos olheiros em restaurantes, bares, casas particulares e até mesmo em igrejas.
Ameaças impedem trânsito dos indígenas dentro do território
O medo de um ataque tem impedido a extração de castanha e as dificuldades de escoamento da produção desestimulam a agricultura na TI Karipuna. Uma das lideranças da etnia, André Karipuna afirma que tem medo de um ataque para o extermínio do seu povo, “que vive uma situação extrema de risco de vida”, segundo o MPF. A presença de estranhos dentro da TI intimida os indígenas e impede que eles transitem livremente no local. O acesso à aldeia pelo rio Jaci-Paraná até o distrito homônimo requer de quatro a seis horas de barco, dependendo do tipo de embarcação e das condições do rio. Já a estrada é precária e fica intransitável durante o período das chuvas.
Adriano Karipuna, outra liderança da etnia, diz que a principal reivindicação do seu povo é a fiscalização e retirada dos invasores. “Já fizemos muitas denúncias, mas até agora não foi tomada nenhuma medida”, lamenta. Ele também cita a necessidade de um projeto agrícola para melhorar a renda e a segurança alimentar. Outra necessidade é o fornecimento de energia elétrica. Os indígenas utilizam um motor para o fornecimento de energia durante poucas horas da noite. Em setembro, o motor utilizado no poço artesiano queimou e o abastecimento passou a ser feito com a água bruta do rio. A aldeia Panorama tem uma escola com as quatro primeiras séries. A ampliação do ensino na aldeia impediria que crianças e adolescentes tivessem que ir para a cidade, onde vivem em situação de vulnerabilidade, afirma Adriano.