“Nós já estamos morrendo através do marco temporal”
Por Guilherme Cavalli e Tiago Miotto, da assessoria de comunicação do Cimi
Em Brasília, as mobilizações do Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, foram encerradas com uma grande reza Guarani e Kaiowá em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os indígenas estão preocupados com o risco da corte adotar a tese do marco temporal em julgamentos sobre demarcação de terras indígenas no dia 16 de agosto. Os Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, são um dos povos que podem ser mais duramente afetados por esta medida.
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“Esse marco temporal é um assassino para nós, povos indígenas. Por isso que estamos aqui, para pedir para os ministros para não aprovar isso”, afirma Leila Rocha Guarani Nhandeva, liderança do tekoha Yvy Katu/Porto Lindo.
Leila integra a delegação de Guarani e Kaiowá que, junto a indígenas dos povos Kaingang, Jaminawa, Apolima-Arara e Apurinã participaram de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) que debateu as recomendações recebidas pelo Brasil na Revisão Periódica Universal (RPU) da Organização das Nações Unidas (ONU). Em maio, 29 países manifestaram preocupação com violações de direitos indígenas por parte do Estado brasileiro.
Apesar de terem sido convidados para a atividade, os indígenas foram barrados pela segurança, que não queria permitir o ingresso com maracás, e esperaram muito tempo até terem sua entrada liberada, numa situação que já se tornou praxe em Brasília. Ao fim da audiência, todos se juntaram aos rezadores Guarani e Kaiowá que já faziam um ritual em frente ao STF.
Rezadores Guarani e Kaiowá em frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi
“Esperamos que aqueles onze ministros pensem para assinar esse papel contra a raiz deles. Se precisar, eu me ajoelharia na frente da ministra Cármen Lúcia, pedindo por favor para não aprovar esse marco temporal”, afirma Leila, explicitando a preocupação dos Guarani e Kaiowá com a possibilidade de que os ministros do STF adotem a tese do marco temporal nos julgamentos do dia 16 de agosto, quando a corte deverá julgar, em plenário, três ações envolvendo a demarcação de terras indígenas.
Os indígenas estão mobilizados em todo o país contra a adoção desta tese, defendida pelos ruralistas, segundo a qual os indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 1988.
“Antes, nós fomos expulsos dos nossos tekoha [lugar onde se é]. Nós fomos trazidos numa reserva, que é um chiqueiro. Porque a gente não está cabendo mais. Por isso que nós, indígenas Guarani Kaiowá, estamos saindo daquele chiqueiro e indo novamente cada um pro seu tekoha”, reage a liderança Guarani. “Nós sabemos onde morreu nosso antepassado, nosso tataravô, nosso bisavô, nosso pai. Nós estamos indo de novo lá e lá nós vamos morrer”.
A morte, para os Guarani e Kaiowá, não é apenas uma figura de linguagem. Dos 891 assassinatos de indígenas contabilizados pelo Cimi entre 2003 e 2015, 426, quase metade, ocorreram no Mato Grosso do Sul. A perspectiva de não demarcação de suas terras, uma consequência direta da aprovação do marco temporal, traz o risco do agravamento dos conflitos e da violência.
“Através daquele marco temporal, nós já estamos morrendo bastante. Indígena que morre pela mão do ruralista não foi punido até hoje. Então, esse marco temporal para nós é um assassino de verdade”, lamenta Leila.
Reza Guarani e Kaiowá em frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Sua preocupação reflete o processo de judicialização generalizada de processos de demarcação de terras indígenas, por parte de fazendeiros, que já ocorre naquele estado. “O marco temporal ainda não foi consolidado, mas já está valendo como lei no Mato Grosso do Sul”, explica Eliseu Lopes Guarani Kaiowá.
Mesmo contrariando o STF, que ainda não tem uma posição definitiva sobre o assunto, muitas demarcações estão sendo suspensas em primeira e segunda instâncias da Justiça com base nesta tese, como é o caso da Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipeguá I, dentro da qual ocorreu o massacre de Caarapó, em junho de 2016.
A própria TI Yvy Katu/Porto Lindo, no município de Japorã (MS), onde vive Leila, chegou a ter sua demarcação questionada na Justiça, com base no marco temporal, por um fazendeiro que pedia a suspensão do processo demarcatório, alegando que os indígenas não estavam de posse da área em 5 de outubro de 1988. O recurso foi rejeitado pelo pleno do STF em 2016, num importante precedente contra o marco temporal.
O tekoha também não escapa da realidade de violência extrema e vulnerabilidade vivenciados pelos Guarani e Kaiowá em todo o Mato Grosso do Sul. No início de agosto, dois corpos foram encontrados enterrados na fazenda Dois Irmãos, no município de Iguatemi, próxima de Yvy Katu, e identificados pelos indígenas como pertencentes a Gabriel Martins e Fabio Vera, desaparecidos da área há mais de um ano.
Apesar da situação de confinamento e de extrema violência contra os indígenas, são recorrentes os discursos ruralistas de que os indígenas querem demarcar o Mato Grosso do Sul inteiro. “Eu sei que o Mato Grosso do Sul inteiro é nosso, mas nós não queremos todo. Nós queremos só um pedacinho de terra, nossos tekoha”, rebate Leila Guarani.
Reza em frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Em frente ao STF, os rezadores e rezadoras permaneceram concentrados, executando suas rezas e cantos até o sumiço dos últimos raios de sol. O marco temporal representa, para os indígenas, algo muito mais grave e muito mais profundo do que uma simples tese política.
O pássaro pousa nos galhos da árvore, explica Leila, mas para que eles possam servir de pousada, a árvore precisa ter raízes firmes. “Nós somos a raiz de vocês. Se nós morrermos, vocês também vão morrer, porque nós somos a raiz”, prevê. Com semblante sério, a indígena questiona: “Dia 16 vai ser o julgamento aqui. Se for aprovado, quem vai se responsabilizar por essas crianças que vão ficar órfãs?”
Foto: Guilherme Cavalli/Cimi