14/08/2017

STF poderá sustar o “marco temporal”?


Mobilização contra o Marco Temporal em Fortaleza (CE). Crédito da foto: Renato Santana/Cimi


Por José Afonso da Silva e Manuela Carneiro da Cunha*

Para coroar uma campanha enganosa, a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu um parecer que o presidente Michel Temer logo aprovou, publicado no dia 20 de julho. Trata-se de ressuscitar, pela terceira vez, a portaria 303 de 2012 da AGU, tão controvertida que por duas vezes teve de ser suspensa.

Não é por acaso que ela ressurge agora: faz parte do pacote de concessões de Temer aos interesses da frente ruralista. Os índios estão novamente sendo rifados para garantir a sobrevivência provisória do presidente no cargo.

O parecer obriga toda a administração pública federal a cumprir as "condicionantes" que constaram do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a célebre demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009.

Para fundamentá-lo, a AGU atribuiu ao STF o propósito de, naquele julgamento, ter tido a "deliberada intenção" de definir a interpretação dos artigos da Constituição Federal que tratam da demarcação das terras indígenas.

Dessa forma, tal entendimento deveria ser aplicado "para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil".

Isso é um engano: em várias ocasiões, ministros do Supremo que haviam participado do julgamento de 2009 afirmaram que as condicionantes da terra indígena de Raposa Serra do Sol eram específicas daquele caso e não vinculantes.

Em fevereiro deste ano, o ministro Marco Aurélio reiterou esse mesmo entendimento e foi seguido pela primeira turma do STF. A "deliberada intenção" de generalizar as condicionantes da Raposa Serra do Sol, apregoada pela AGU, não pode, portanto, se sustentar.

O que ocorre é que a segunda turma do STF, sob a liderança do ministro Gilmar Mendes, tem dado grande publicidade a decisões que tomou baseadas em uma interpretação a que se convencionou

chamar de "marco temporal".

Trata-se de interpretar abusivamente que os direitos territoriais dos índios assegurados pela Constituição de 1988 só se aplicam aos que estavam em suas terras no dia da promulgação de nossa lei maior, 5 de outubro de 1988.

Em parecer circunstanciado, um de nós, José Afonso da Silva, refutou por inconstitucionais esse "marco temporal", a proibição de revisar terras demarcadas para corrigir erros, e uma outra tese que se acrescentou às demais: a exigência imposta àqueles índios que tivessem sido expulsos de suas terras.

Para fazerem valer um direito de retorno, teriam de comprovar ter resistido pela via judicial ou pela força. Como, até 1988, os índios não podiam entrar em juízo, e como não tinham meios de enfrentar quem os despossuía, essa condição era simplesmente impraticável.

É significativo que tenha sido a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) a propor em 2010 ao STF a edição de uma súmula vinculante para "afirmar que as terras ocupadas por indígenas em passado remoto… são especialmente aquelas que, em 5 de outubro de 1988, não apresentavam mais ocupação por índios e que o processo de demarcação deve atentar para a necessidade de comprovação da posse da área nesta data".

Também é eloquente a decisão da comissão de jurisprudência do STF que arquivou a proposta porque a "súmula a respeito do assunto dependeria da existência de uma inequívoca consolidação jurisprudencial da matéria no exato sentido pretendido pela CNA". O esforço da segunda turma do STF foi precisamente de tentar construir essa jurisprudência.

No próximo dia 16 de agosto, é plausível que o tribunal pleno do STF venha a se pronunciar sobre o "marco temporal". Esperamos que o plenário tenha a sabedoria de restabelecer a justiça para com os povos indígenas.

JOSÉ AFONSO DA SILVA é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga e professora titular aposentada da Universidade de Chicago e da USP


Fonte: Jornal Folha de S. Paulo, Opinião, publicado no dia 13/08/2017
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