28/07/2017

A negligência após o contato: mais um esteio da memória indígena Awá Guajá que tomba


Amakaria (no chão) e sua companheira de resistências nas políticas de contato. Foto: Cimi Maranhão

Por Rosana de Jesus Diniz Santos, do Cimi Regional Maranhão

No dia 17 de julho morreu Jakỹxia Awá Guajá. O indígena vivia na aldeia Awá, Terra Indígena (TI) Caru, município de Bom Jardim (MA). É o sétimo Awá Guajá que morre em 10 anos, decorrentes da negligência das políticas do Estado. Ele deixa filhas, netos e bisnetos.

 “Por quê estamos morrendo sem que nossos cabelos fiquem branco?”, questiona Tatuxa’a. A indignação da liderança Awá Guajá foi alimentada pelo descaso: faltou a Jakỹxia o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). A carência desta tarjeta rotineiramente penaliza os indígenas.

Uma assistente social do Polo Base de Saúde, em Santa Inês, informou que “o índio passou mal”. Ele tinha dores no estomago, iniciadas no dia 07 de julho. Fez exames, incluindo uma endoscopia. Foi liberado, contudo, uma semana depois sentiu dores e retornou ao hospital. “Seu pulmão estava estragado”, diziam ao classificar como grave o seu estado. Morreu enquanto aguardava ser removido do hospital da rede municipal para o hospital estadual. Foi vítima da demora e da burocracia. A causa da morte, informou-me a assistente social segundo o que constava no laudo médico, foi insuficiência respiratória, pneumonia e outras.

Memória dos que tombaram

A memória que tomba remete a de Myrakexa’a, que partiu em 2007 – tempo recente. Era a indígena mais velha do grupo que resistiu às doenças do contato e à severidade da política de ocupação, expansão e violência no territórios Awá (Hakwa). Dois anos mais tarde, em 2009, morre Xipaxa’a, esposo de Mirakexa’a. Pereceu após chegar do hospital, em Santa Inês (MA). Foi até o local para acompanhar seu filho diagnosticado com pneumonia. Já havia perdido um rebento há pouco tempo pela mesma doença do contato. Após regressar do lugar de saúde, deitou-se, cantou e em algumas horas estava morto.


Myrakexa’a,  indígena mais velha do grupo que resistiu às doenças do contato e à severidade da política de ocupação e violência. Foto: Cimi Maranhão

Em 2013 morreu Ajrua (na foto ao lado). Ela passou a apresentar febre e indisposição. Definhava. O diagnóstico da doença não saia, ou se saia, à comunidade não chegava – o que ocorre com frequência no trato com a saúde Awá. A comunidade pressionou e fez com que a equipe de saúde a retirasse para o hospital. Ajrua foi levada para a cidade de Santa Inês. Foi e voltou sem diagnóstico.Víamos seu definhamento enquanto sua mãe preparava banhos com raízes, na esperança de ver sua filha curada. Sem êxito. A indígena cessou de leishmaniose visceral, doença tratável. O parecer clínico saiu depois que a indígena já havia morrido.

2015 foi o ano da partida de Hapaxa’a, remanescente de um grupo Awá Guajá, também sequelado pela tuberculose. Seu corpo apresentava características da doença, além de artrose e artrite. Mal alimentado, Hapaxa’a tossia ao longo das noites geladas das serras do Tiracambu. Com demora foi encaminhado para a cidade de São Luiz (MA), após constantes questionamentos e pressão da equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da comunidade.

Permaneceu internado no hospital Presidente Vargas, especializado no tratamento de tuberculosos. O hospital foi seu lar. Permaneceu longe de seu mundo e de sua gente. Ao seu redor, pessoas estranhas e em estados físicos bem pior que o seu. Com sua morte, apagou-se a memória do grupo que resistiu e conseguiu, por meses, despistar a equipe de atração da Fundação Nacional do Índio (Funai) ao abrigarem-se em uma moita de cipó.

Ano de 2014. Duas mulheres e um jovem Awá Guajá fazem contato com o mundo branco. Foi um evento que movimentou a alta cúpula de indigenistas da Funai que atuam com indígenas isolados. Jakarewỹj adoeceu uma semana após a chegada na aldeia. O mau que a desestabilizou é o mal do contato: pneumonia seguida de tuberculose. Abriu-se uma celeuma entre os especialistas em isolados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Funai: retirar ou não a indígena para o hospital de São Luís?

Em internação forçada, Jakarewỹj foi levada. Amakaria, sua companheira de resistências nas políticas de contato, a acompanhou. Visitas foram vedadas a pessoas que não fossem da Sesai ou Funai. Aos missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) foi ordenado manter distância das indígenas. O cuidado que se tinha é para que somente funcionários dos órgãos governamentais tivessem informações sobre as recém contatadas.

As indígenas permaneceram por seis meses nesse mundo de “gente estranha”, espaço em que tudo era diferente para elas. Existem relatos da Casa do Índio (CASAI, em São Luiz) de que se automedicavam a partir da ciência Awá Guajá. Na esperança de curar as doenças adquiridas no contato, catavam formigas para fazerem seus remédios. Retornaram para a comunidade ao estabilizarem o quadro clínico.


Foto: Arquivo Cimi

Por opção, a dupla regressou para a floresta. Na primeira quinzena de junho Jakerewỹj tombou na floresta. Quem contou para os demais Awá Guajá sobre a morte foi sua fiel amiga, Amakaria. Que filme se passou naquele instante? Regressaram para a floresta, deixando para traz o contato forçado e apostando na capacidade de viver sem serem molestadas. As indígenas protagonizaram uma longa história de resistência e superação, de fidelidade ao seu mundo. Duas senhoras, que por dezenas de anos tiveram como lar a floresta de serras e árvores da Amazônia maranhense, rompem os laços mais íntimos. Outra vez, ali está, uma anciã Awá Guajá morta devido a incapacidade ocidental de perceber sua insuficiência. Uma assiste o fim da outra.

Em 2016 morre Xipawaha. O motivo da sua morte nos soa estranho: os Awá Guajá chegam a acreditar que ele foi morto por brancos enquanto caçava. Xipawaha era um sobrevivente ao contato de ‘pacificação’ da Funai. Resistiu a tuberculose. Contudo, reclamava de dores no peito e tossia constantemente. Apesar de suas lamúrias, era homem alegre e gentil. A causa da morte não foi esclarecida. O que ficou claro foi a demora no atendimento e na prestação de informação da equipe de saúde à comunidade. A morosidade levou a comunidade a protestos. A família não teve acesso ao laudo que diagnosticaria o porquê do fim de Xipawaha.

2017: realidades de violações

Os Awá Guajá caminham em terras indígenas demarcadas, todavia, continuamente invadidas e depredadas por madeireiros. Com motosserras abrem estradas no interior das Terras Indígenas para o roubo de madeira, o que vulnerabiliza mais os Awá ao massacres, a contaminação por doenças e afetando diretamente os bens naturais que garantem o seu modo de vida.


Foto: Arquivo Cimi/MA

A realidade dos Awá Guajá se entrecruza, em tempos de negligência e genocídio dos povos originários, com outras infinitas realidades de violação dos direitos indígenas. São resultantes das medidas que são tomadas nos espaços de políticas nacionais, onde se abrigam aqueles que dominam o Estado para seu próprio bem-estar. “Representantes” do povo, trabalham para acelerar a morte dos indígenas. O Brasil enfrenta um genocídio planejado e sequenciado pelas políticas do Estado.

Tatuxa’a, a liderança que apareceu no início desta narrativa, oferece mais elementos que caracterizam a política genocida do Estado. Narra a dupla ofensiva de violações. De um lado, o Estado omisso. Do outro, as invasões das TI que lançam fogo criminoso. Pela presença intrusa, indígenas não conseguem mais percorrer a densa mata atrás de alimento, ou de desfrutar dos peixes dos rios. O que comer? Tatuxa’a conta que os anciãos Awá são os mais penalizados pelas doenças adquiridas e pela subalimentação. Apanham anzóis e vão pescar nos igarapés. O que pescam são dois mandis, pequenos peixes.


Foto: Arquivo Cimi

Na cultura Awá Guajá, a prioridade da alimentação é para as crianças. Integram a sociedade que pensa no seu presente e no seu amanhã. Contudo, é um por vir que está ameaçado pelo fogo criminoso que atingiu suas terras, em 2015, além da ação de madeireiros e tantos outros impactos e alterações causadas pela mineradora Vale.

O que as mortes têm em comum?

Tatuxa’a nos questiona ao fazer a conexão dessas mortes com a falta de acesso a comida que os velhos Awá Guajá estão submetidos. Culpa, ainda, a demora no atendimento à saúde. As provocações feitas pela liderança ecoam no tempo e infelizmente se perpetra. Ele exige respostas sobre as mortes do seu povo. De quem é a responsabilidade? O que as mortes têm em comum? A indagação do indígena nos interpela e faz interpelar os responsáveis pelas políticas indígenas. Não há como aceitar essas sequências de morte como se fizessem parte do processo natural da vida dos Awá Guajá. Elas podem e devem ser imputadas ao Estado brasileiro e suas (insuficientes) políticas para os povos indígenas e seus executores penalizados. É urgente mudar esse rumo de abandono e buscar responsáveis.

Os anciãos Awá Guajá exibem as sequelas da tuberculose, presente do contato; exibem a fome em seus corpos magros; exibem tosses e catarros de uma infecção insuportável. Onde estão a Sesai e Funai? Mesmo com uma equipe muldisciplinar de saúde e com um médico assistindo essas comunidades com regularidade, onde estão? Porque ainda se perdem anciãos e crianças Awá Guajá por doenças tratáveis? Porque os anciãos morrem antes dos cabelos esbranquiçarem, como questionam os Awá? O que falta a Funai ou quem estaria impedindo o acesso dos anciãos Awá Guajá ao benefício da aposentadoria? As políticas básicas podem melhorar o acesso a comida. Uma alimentação básica levaria maior longevidade aos anciãos, esteios da memória e do conhecimento do povo. Contudo, a negligência e a falta de cuidado com a coletividade Awá Guajá caracteriza a política de saúde da Sesai.

Presidente, ministros, deputados. Todos defendem abertamente a morte e a integração dos povos indígenas ao “Estado” com preocupações que visam incorporar as terras indígenas ao interesse do capital. Enquanto os anciãos Awá Guajá morrem por negligência das políticas governamentais, nos espaços de poder da política ‘civilizada’, Michel Temer, Rodrigo Maia e Eunício Oliveira, presidentes do Brasil, da Câmara Legislativa e do Senado Federal, armam projetos para saquear o país. Paralelamente, os Awá Guajá padecem enquanto aguardam o cartão do aposentado, a saúde básica, o alimento mínimo.

Assim, segue uma política silenciosa de apagamento do povo Awá Guajá. A realidade é de descuido dos anciãos, onde ignora-se a fome e a subalimentação deles e das crianças. Inexiste o cuidado especial com os deficientes Awá Guajá, que vivem sem o benefício, um direito constitucional. Não se estrutura uma política respeitosa para os indígenas isolados. São desrespeitos de uma realidade que não é mais possível de aceitar.

Fonte: Cimi Maranhão
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