Organizações divulgam nota de repúdio a declarações do Itamaraty que desacreditam a ONU e a CIDH
Visita de Relatora da ONU, Victoria Tauli-Corpuz, aos Guarani e Kaiowá (MS). Foto: Phil Clarke Hill/ONU
Dezenas de organizações do Brasil divulgam uma nota de repúdio ao posicionamento do Ministério das Relações Exteriores que qualificou como infundadas as preocupações expostas em comunicado conjunto emitido por três relatores especiais das Nações Unidas (ONU) e um relator da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Os relatores declararam que “os direitos dos povos indígenas e o direito ambiental estão sob ataque no Brasil” e denunciaram os retrocessos impostos pelo país “na proteção institucional e legal dos povos indígenas, assim como dos quilombolas e outras comunidades que dependem de sua terra ancestral para sua existência cultural e material”.
Leia a nota de repúdio na íntegra:
Nota de Repúdio
09 de junho de 2017
As organizações que assinam o presente documento consideram como equivocada e descolada da realidade a atitude do Ministério das Relações Exteriores (MRE) de qualificar como “infundadas” as preocupações expostas em comunicado conjunto emitido por três relatores especiais das Nações Unidas (ONU) e um relator da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Os especialistas afirmaram que “os direitos dos povos indígenas e o direito ambiental estão sob ataque no Brasil” e denunciaram os retrocessos impostos pelo país “na proteção institucional e legal dos povos indígenas, assim como dos quilombolas e outras comunidades que dependem de sua terra ancestral para sua existência cultural e material”.
Ao contrário do que se afirma na nota do governo brasileiro, os conflitos causados por disputas territoriais e a má gestão das áreas protegidas estão plenamente instalados, sendo sua face mais cruel os episódios de violência contra trabalhadores e trabalhadoras rurais e comunidades indígenas, envolvendo chacinas e mortes, como o ataque ocorrido em abril contra os Gamela no Maranhão, perpetrado por fazendeiros e capatazes, e que resultou em 22 feridos.
Também é real a ameaça de violação do princípio do não retrocesso pelo avanço de diversas pautas que enfraquecem a legislação socioambiental no país, apoiadas por grupos de interesse ligados ao grande agronegócio e à grilagem de terras instalados no Congresso Nacional e no Executivo. Como denunciado pelas relatorias, a aprovação do relatório da CPI da Funai é um exemplo concreto de medida legislativa que visa intensificar a criminalização de lideranças indígenas e rurais, organizações de defesa dos povos indígenas, procuradores da República, funcionários públicos e antropólogos, além de provocar mudanças negativas no marco normativo de demarcação de terras indígenas e da reforma agrária.
No lugar de reconhecer a gravidade do atual cenário e apontar medidas concretas, dentro do sistema de freios e contrapesos, preferiu o Estado brasileiro criticar a divulgação da situação pelos mecanismos internacionais, em sucessão de argumentos genéricos. Esquece o governo brasileiro, convenientemente, que a ação de entes subnacionais, como é o caso do Poder Legislativo, também é atribuível ao Estado brasileiro no plano internacional.
A nota do Brasil deixa de enfrentar o mérito das violações de direitos humanos e ambientais apontadas pelas relatorias da ONU e da CIDH, bem como o risco de agravamento desse quadro caso as medidas em debate no Congresso Nacional sejam aprovadas.
Está cada vez mais evidente que, nas questões envolvendo violações de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais e direitos ambientais, torna-se insustentável para o governo evitar constrangimentos internacionais e manter uma linha de discurso meramente defensiva. A comunidade internacional e os órgãos internacionais de proteção da pessoa humana e de promoção do direito ambiental têm cobrado do país, com razão e responsabilidade, explicações para os retrocessos.
Em setembro de 2016, a relatora especial da ONU sobre povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, após visita ao país, anotou que houve “retrocessos extremamente preocupantes” na proteção dos direitos dos povos indígenas. A relatora criticou a interrupção dos processos de demarcação; a incapacidade de proteger as terras indígenas contra atividades ilegais; os despejos em curso; os efeitos negativos dos megaprojetos em territórios indígenas ou em áreas adjacentes; e a violência, os assassinatos, as ameaças e intimidações contra os povos indígenas perpetuados pela impunidade. Em resposta, o governo afirmou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU que não enfraqueceria a Funai mas, pelo contrário, fortaleceria.
Em março deste ano, a CIDH e o Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) denunciaram a impunidade prevalente em casos de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos e conclamaram as autoridades brasileiras a garantir que sua atuação seja livre de violência, ameaças e intimidações.
No último dia 5/6, a secretária executiva da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), Cristiana Paşca Palmer, enviou carta ao governo registrando estar “apreensiva” com a possível sanção das Medidas Provisórias 756 e 758, que retiram a proteção de cerca de 598 mil hectares de Unidades de Conservação (UCs) em Santa Catarina e, principalmente, no Pará. As duas MPs foram aprovadas pelo Congresso e podem ser sancionadas ou vetadas pela Presidência da República a qualquer momento.
Ao contrário da aparente neutralidade que se pretende transmitir frente a todas essas disputas e conflitos, é extensa a lista de fatos que reforçam a percepção de que o governo escolheu estar do lado de espoliadores dos direitos de povos indígenas e dos grupos de interesse que pretendem enfraquecer o nosso arcabouço de proteção ambiental.
Um exemplo foi a nomeação de Osmar Serraglio para o Ministério da Justiça (MJ), relator da proposta de emenda constitucional que visa transferir poderes de demarcação de terras indígenas no Brasil para o Congresso, além de permitir a instalação de empreendimentos no interior dos territórios já demarcados e a anulação de processos de demarcação concluídos (PEC 215). Ao longo de sua gestão, o ex-ministro proferiu publicamente frases com conteúdo pejorativo e marcadas pelo desprezo aos direitos territoriais, culturais e econômicos constitucionalmente garantidos aos povos indígenas. O mesmo MJ se fez ausente em audiências e sessões que tratam de violações aos direitos indígenas na ONU e a OEA.
Não menos importante é o cenário de graves retrocessos na discussão sobre uma nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental, em trâmite no Congresso Nacional, que pretende isentar diversas atividades potencialmente poluidoras do licenciamento, promover uma “corrida” pela flexibilização do licenciamento nos Estados, eliminar o aspecto locacional e tornar não-obrigatória a análise e manifestação de órgãos como a Funai, o ICMBio e o IPHAN, entre outros aspectos.
Em 2016, o Conselho Nacional de Direitos Humanos aprovou Relatório do Grupo de Trabalho sobre Direitos dos Povos Indígenas e das Comunidades Quilombolas da Região Sul, constatando um quadro “adverso de conflitos fundiários, violência policial e aprisionamento de lideranças, agressões e declarações públicas racistas pronunciadas por autoridades, desatenção e negligência dos órgãos públicos quanto ao atendimento à saúde, à educação escolar diferenciada e bilíngue, moradia, segurança alimentar, regularização fundiária, dentre outras violações”.
A postura de enfrentamento do Ministério das Relações Exteriores (MRE) aos órgãos internacionais de proteção da pessoa humana tem se intensificado, como se vê pela manifestação oficial ora repudiada e pela nota divulgada após a emissão de comunicado conjunto da CIDH e do ACNUDH em 26/5. Os órgãos haviam condenado o uso excessivo da força em manifestações e em conflitos agrários, fazendo menção à morte de dez pessoas durante um despejo violento realizado pelas polícias civil e militar em uma fazenda no estado do Pará. Tal postura indica desconsideração aos princípios tradicionalmente conferidos à política externa brasileira, como o multilateralismo e a valorização do direito internacional.
Membro da mais alta instância de direitos humanos da ONU desde janeiro de 2017, o Brasil não tem conseguido ser coerente com seus próprios compromissos e agrava tal posicionamento com ataques aos órgãos de direitos humanos da ONU e da OEA.
Diante disso, reiteramos nosso apoio às relatorias especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre direitos de povos indígenas e direito ambiental, autoras do comunicado conjunto de 8 de junho de 2017, o qual corroboramos integralmente.
Reiteramos, por fim, a importância primordial da necessidade do Estado brasileiro de respeitar os direitos assegurados pela Constituição Federal do país e por tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, interrompendo e revertendo a ofensiva contra direitos humanos e proteção socioambiental em curso no país.
Assinam:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib
Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil
Artigo 19
Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente – ABRAMPA
Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre – AMAAIC
Associação Terra Indígena Xingu – Atix
Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins
Centro de Cooperativas Unisol Brasil
Centro de Trabalho Indigenista – CTI
Comissão Pró-Índio do Acre – CPI-AC
Comissão Pró-Índio de São Paulo – CPI-SP
Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina
Conselho Indígena de Roraima – CIR
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo
Conectas Direitos Humanos
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
CUT – Central Única dos Trabalhadores
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – Foirn
Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento – Formad
Greenpeace Brasil
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – Gpea
Hutukara Associação Yanomami – HAY
International Rivers – Brasil
Instituto Caracol – Icaracol
Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH
Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé
Instituto Socioambiental – ISA
Ministério Público do Estado da Bahia – MP-BA
Movimento dos Atingidos por Barragens
Movimento Nacional de Direitos Humanos – RS
Operação Amazônia Nativa (Opan)
Organização dos Professores Indígenas do Acre – Opiac
Organização Geral Mayuruna – OGM
Plataforma Dhesca Brasil
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC
Projeto Saúde e Alegria Rede Brasileira pela Integração dos Povos – Rebrip
Rede de Cooperação Amazônica – RCA
Rede Mato-grossense de Educação Ambiental – Remtea
Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca
União dos Povos Indígenas do Vale do Javari – UNIVAJA
WWF – Brasil