Desaprender para aprender: encontro discute experiências regionais de articulação dos povos e comunidades tradicionais
Por Ingrid Campos (CPP) e Tiago Miotto (Cimi), no blog da Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais
fotos: Guilherme Cavalli (Cimi) e Ingrid Campos (CPP)
A terceira manhã do Encontro Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, na quarta (24), foi de troca de experiências. Depois dos cantos rituais e de uma mística em torno da terra e da água, os participantes da atividade dividiram-se em grupo para conhecer as experiências regionais de articulação entre povos e comunidades tradicionais da Teia do Maranhão e da Teia da Bahia.
Experiências de luta, articulação, unificação e fortalecimento mútuo entre povos e comunidades que têm na luta em defesa de seus territórios e na construção do Bem Viver um horizonte em comum.
Teia do Maranhão: Território livre tecendo o Bem Viver
A Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão tem como símbolo uma mandala de pano, costurada com vários tecidos diferentes. O colorido da mandala representa a diversidade, e a costura remete à união que se tece no dia a dia das lutas e comunidades de indígenas, quilombolas, pescadores e pescadoras artesanais, ribeirinhos, quebradeiras de coco, gerazeiros e sertanejos.
A organização da Teia já vem de um processo de mais de dez anos, envolvendo representações quilombolas e indígenas de sete estados. “Numa das reuniões, cada um de nós levou uma varinha e a quebrou. Depois, juntamos todas elas e tentamos quebrar, era impossível. Então entendemos que a gente lutando sozinho, nunca conseguiríamos avançar em nossos processos”, conta a quilombola Emília ,do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom).
A espiritualidade e a mística perpassam e constituem a Teia dos Povos do Maranhão. “A aranha tece fios. Cada comunidade que está na teia é um fio, e a teia tem um fio que é super resistente. Mesmo o Estado brasileiro dizendo que é para a gente sair, que a gente não existe, continuamos afirmando, lutando por nossos territórios e mostrando que estamos vivos”, explica a quilombola do município de São Luís Gonzaga.
“A unificação que a Teia propôs foi muito importante”, explica o quilombola Edmilson Reis, integrante do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom) e da Teia do Maranhão. “Vivia cada qual lutando para um lado, e agora a gente ficou muito mais forte. Passamos a conhecer muito mais situações, muito mais problemas, mas também a ter muito mais companheiros. Estão juntos o quilombola, a pescadora, a marisqueira, o indígena e todos os demais. Temos mais possibilidade de defender o nosso território, a gente se sente muito mais fortalecido ao lutar juntos e não separados”.
Desaprender para aprender
Além de discutir a busca por autonomia, com a realização de encontros nas comunidades e discussões conjuntas em assembleia, sem hierarquias, o espaço de apresentação da Teia do Maranhão acabou levando também para outro tópico: a descolonização.
“A construção do Bem Viver é diária. Para trabalhar com a ideia de descolonização, primeiro temos que aceitar que a gente é colonizado. Nós discutimos que a colonização entra pela nossa cabeça, e a gente tem que descolonizar pelos nossos pés”, conta Carla Pereira, agente voluntária da CPT no Maranhão e integrante do Moquibom. “É o processo de entender que não é normal não ter espaço para plantar. Não é normal uma cerca avançar sobre a tua casa, e não ter nem espaço para enterrar seus mortos”.
“A descolonização se inicia com a autonomia do território, nossa maneira de relação com a natureza, tirar de nossa cabeça esse modelo de desenvolvimento em que o Brasil é formado. Isso é algo que viemos tirando de nossas mentes. Estamos fazendo esse movimento de desaprender para aprender, de acordo com nossas realidades, territórios e especificidades, até porque não temos a ideia de que somos todos iguais. Somos todos diferentes, mas com o mesmo ideal”, reflete Emília.
“Temos trabalhado muito a questão das nossas raízes, da nossa identidade. Esse trabalho profundo da pessoa se empoderar e de fortalecer a autonomia da comunidade”, relata Cao Gamela. Os Gamela são um dos povos que integram a Teia, e contam com o apoio das demais comunidades na luta pela autonomia e pela retomada de seu território tradicional.
“Não há nenhuma comunidade ou povo mais importante que outro, precisamos de políticas que abranjam a todos. Nossa experiência permite quebrar esse paradigma de ficar esperando do governo a desintrusão, esperando a cesta básica, dependendo dessa política enganosa do governo que vem matar a nossa força, a nossa cultura e a nossa luta. A gente traz esses processos para dentro da Teia para que eles sirvam para a teia indígena, para a teia quilombola, para todos”, conclui o indígena.
Teia da Bahia: Tecendo autonomia
“Estávamos cansados de pedir ajuda para os que estavam de fora. Precisávamos pensar soluções a partir do nosso povo mesmo, porque temos condições de resolver os nossos problemas!”, defendeu o cacique Ramón do Povo Tupinambá da Bahia para explicar as motivações que levaram ao surgimento da Teia dos Povos da Bahia, uma rede que congrega índios, quilombolas, pescadores, marisqueiras, extrativistas, trabalhadores sem-terra, entre outros povos e comunidades tradicionais e universidades, numa única organização, com o objetivo de fortalecer as lutas em comum.
A Teia dos Povos da Bahia começa a ser fomentada em 2009, mas é em 2012, a partir da I Jornada de Agroecologia da Bahia, que a Teia passa a se configurar como um Movimento Agroecológico e um espaço de discussão dos povos e comunidades tradicionais inseridos.
O debate sobre agroecologia e produção de alimentos saudáveis foram os pontos de partida para iniciar a articulação dos “elos” da teia, maneira como são chamadas as organizações e povos que fazem parte da rede. “O objetivo da Teia é fortalecer os povos que estão presentes. Nós vemos onde está a problemática e vamos agir juntos”, explica o cacique Ramon.
Isso tem possibilitado a troca de sementes e de produtos produzidos pelos povos participantes, mas também tem colaborado na luta conjunta pelos territórios das comunidades. “Nós, os Tupinambás, já ajudamos numa ocupação feita pelo Movimento Sem Terra”, relata Ramón.
A autonomia dentro da articulação é outro ponto elencado como um dos princípios da Teia. “Para nós é importante ter autonomia para não dependermos do Estado”, afirma Ramon. Por isso são feitas doações mensais por cada elo da rede, numa conta conjunta, que é usada para financiar a Jornada de Agroecologia e viagens dos membros da Teia quando necessárias.
A Teia tem uma coordenação colegiada que se reúne a cada dois meses. A organização também tem personalidade jurídica para facilitar a colaboração coletiva que é feita pelos elos pertencentes à articulação.
Outro ponto importante dentro da rede é o fortalecimento do protagonismo feminino. Reuniões e espaços para as mulheres são incentivados dentro da Jornada Agroecológica, que acontece uma vez a cada ano. Eventos exclusivos para as mulheres, como a Farinhada das Mulheres, também são realizados e funcionam como um espaço para partilha e discussão das dificuldades enfrentadas, tudo isso vivido a partir da tradicional experiência de produção de farinha.
Dentro dessa perspectiva estão sendo incentivadas práticas que façam parte da tradição dos povos e que dialoguem com o modo de vida deles. “Temos lutado muito por isso, para produzir orgânico, para realizarmos uma medicina própria do nosso povo e temos incentivado o retorno das parteiras, devido ao processo de violência que as mulheres enfrentam nos partos em hospitais”, explica Ramon.
Os resultados já podem ser sentidos no aumento da articulação e enfrentamento feito pelos povos. Na I Jornada de Agroecologia realizada em 2012, houve a participação de 900 pessoas. Na última, realizada em abril de 2017, mais de 5.000 pessoas participaram do evento.
Futuro
Atualmente a Teia estabeleceu a meta ambiciosa de plantar mais de 1 milhão de árvores no estado da Bahia. “A gente quer plantar para dizer que o caminho não é aquele da destruição, que eles fazem. O caminho que queremos é outro”, explica Ramon ao fazer referência ao modelo desenvolvimentista de produção capitalista ao qual os povos se contrapõem.
Criar um selo que identifique os produtos produzidos pelos povos e comunidades tradicionais também está entre os objetivos atuais da Teia. “Já existem selos em outros países da América do Sul, que identificam produtos produzidos por indígenas. Visitamos uma experiência dos índios da Bolívia e queremos fazer o mesmo aqui”, aponta Ramon.
Oficinas para jovens e expansão da Teia também estão entre os desafios futuros para a rede. “Queremos dar ânimo para que a Teia cresça cada vez mais e assim possamos pensar a nossa organização (povos tradicionais) sem pessoas externas!”, ambiciona Ramon.