26/04/2017

Lideranças Munduruku e Yanomami denunciam violações na ONU e se encontram com indígenas de Standing Rock


Lideranças Munduruku (à esquerda) e Yanomami (à direita) com Todadaho Sid Hill, do povo Onondaga. Foto: Fernanda Moreira/Cimi


Por Fernanda Moreira, Cimi Regional Norte II – De Nova York (EUA)

Em mais uma incidência internacional para denunciar violações de direitos cometidas pelo governo brasileiro, povos indígenas participam do Fórum Permanente de Assuntos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU). O encontro teve início no dia 22, em Nova York (EUA), e segue até o dia 1º de maio. Os povos Munduruku e Yanomami fazem parte da delegação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) do Brasil.

A delegação da Repam, composta ainda por organizações e povos indígenas de países da Amazônia latino-americana, chegou ao Fórum com o objetivo de "Amazonizar o mundo" e logo cuidou de marcar presença na abertura do encontro, que ocorreu nesta terça-feira, 24. Para Juarez Saw Munduruku foi "muito importante um parente indígena falar em sua língua e trazer a espiritualidade de seu povo" na abertura do Fórum, onde estavam representantes de governos de todo o mundo que vêm destruindo lugares sagrados de vários povos indígenas.

Para a liderança Yanomami Armindo Góes, chamou a atenção a fala de Lakshmi Puri, membro da Direção Executiva da ONU Mulheres, por lembrar que pensar direitos indígenas exige pensar o direito e a participação das mulheres, já que para os Yanomami "não há divisão ou exclusão de qualquer pessoa. Todos são importantes para a comunidade, como as mulheres mais velhas – sábias muito respeitadas e ouvidas", conforme Góes.

Na terça-feira, dia 25, as lideranças encontraram-se com indígenas norte-americanos e com representantes do Comitê das ONGs para os povos indígenas das Nações Unidas e partilharam experiências, espiritualidades e perspectivas de lutas. Esteve presente Chase Iron Eyes, importante liderança de Standing Rock, Lakota, que se emocionou com a força dos cantos das lideranças Sul-americanas que abriram o evento.

"Enquanto vocês cantavam, eu ouvia pássaros por todos os cantos dessa sala. Nós temos a mesma cosmovisão, a mesma conexão com as estrelas, com os lugares sagrados e nós consideramos a água o sangue de nossos espíritos ancestrais. É por isso que colocamos nossa vida em risco para proteger nossos rios", disse Eyes. Os indígenas de Standing Rock lutam contra a construção de um grande empreendimento dentro do território do povo.

Estiveram presentes diversas lideranças dos Estados Unidos e do Canadá e, assim como os indígenas do Peru e Brasil, reforçaram o imperativo de estabelecerem alianças entre os povos e de conectarem-se para gritar com uma só voz contra a destruição de seus territórios, de suas vidas e de todo o planeta.

Depois de contar sobre os planos do governo brasileiro para construir 43 hidrelétricas na Bacia do Tapajós, e a violência inerente a estes projetos, militarizando o território Munduruku, cacique Juarez Saw conclui sua fala chamando os indígenas presentes para "lutarem juntos". "Nós viemos aqui para ouvir os parentes dos EUA e para que eles abracem nossa causa também e assim fazermos da luta uma só".

Muitos dos presentes concordaram e aclamaram a fala de Armindo Góes Yanomami, que confronta a identificação de mudanças climáticas por parte da ciência dos brancos e o que os Yanomami sabem ser a reação da Terra: "É a Terra que está sentindo dor e que está reagindo, não são mudanças climáticas, é a reação da natureza que está querendo se defender".

Na sexta-feira, dia 28, os representantes Munduruku e Yanomami terão um encontro com a Relatora Especial das Nações Unidas (ONU) para os Direitos dos Povos Indígena, Victoria Tauli-Corpuz. Durante o ano passado, no mês de março, a Relatora esteve no Brasil, onde visitou aldeias no Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará. Em setembro, publicou um relatório com recomendações ao governo brasileiro. No mesmo período, recomendou o protocolo de consulta feito pelo povo Munduruku aos demais povos com territórios na rota de grandes empreendimentos.

Os Munduruku levaram à ONU e entregarão à Victoria uma carta redigida pelo povo por intermédio da Associação Indígena Pariri e do Movimento Ipereg Ayu.

Leia a carta na íntegra:




Carta do povo Munduruku

Nós, o povo Munduruku, queremos fazer chegar até vocês, das terras distantes, o nosso pensamento e nossas palavras. E fazer ecoar o grito de socorro (Odaxijom!) da floresta, nossa mãe, e de todos os povos indígenas que vivem no Brasil.

Evocamos nosso deus Karosakaybu, Karodaybi, nosso guerreiro maior,  a força dos nossos guerreiros, guerreiras, pajés, cantores, cantoras, caciques, cacicas e dos mais de treze mil de nós que desenham as linhas da Mundurukânia. Essa é a terra de onde viemos e a que pertencemos – todo o rio Tapajós, o nosso Idixidi, que corre ameaçado junto às águas do Jamanxim, Teles Pires e Juruena.

Somos lideranças homens e mulheres, guerreiros e guerreiras.

Nós, mulheres Munduruku, estamos nos fortalecendo a cada dia.

Onde o governo planta as sementes da destruição, nós mulheres geramos e cultivamos a vida. Nós somos as guardiãs de nosso território e sustentamos nossa luta.

Realizamos grandes reuniões onde nossas cacicas, parteiras, professoras e outras mulheres discutem, ao lado dos homens, nossos planos de vida.

Para sermos ouvidos, nós, homens e mulheres, sempre saímos de nossas aldeias e viajamos longos dias e horas. Já estivemos em muitas cidades e muitos países. Quando viajamos, deixamos nossas roças, nosso peixe, nosso povo, para mostrar para o governo brasileiro e para o mundo todo que nós somos os resistentes.

Nesse fim de abril, estamos indo a Brasília, no Acampamento Terra Livre, onde estarão muitos povos indígenas. Dois grandes caciques estão indo para Nova Iorque, no fórum da ONU, para reunir com outros parentes dos vários continentes, ouvir eles e mostrar o que se passa aqui.

Agora também mandamos nossa mensagem para esse jornal.

Vemos uma grande fumaça de Djurupari (espírito ruim) que chega às nossas terras e vai acabar com tudo e também com os pariwat (brancos) que a estão provocando.

Acordamos todos os dias com novos alertas de morte. Todos os dias nascem nossas crianças e não sabemos onde e como vão viver, porque já não cabem nos mapas que os governos e os donos do dinheiro querem desenhar e nem mais nas leis que querem reescrever.

Enquanto dormimos, prepara novas leis para paralisar de vez a demarcação de terras indígenas e reduz áreas protegidas, entregando tudo na mão dos empresários e dos saqueadores – garimpeiros, madeireiros, palmiteiros, grileiros – que nos intimidam e ameaçam dentro de nossas próprias casas. Ao mesmo tempo, o governo ataca também os nossos parceiros que nos ajudam a lutar pelos nossos direitos.

O governo Brasileiro está desmontando de vez a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Corta os recursos, demite funcionários e ainda nomeia para FUNAI um presidente que quer converter nossas terras em fontes de dinheiro, plantação grãos, criação de gado, tirando madeira e minério. Ainda coloca no Ministério da Justiça, que decide sobre as demarcações de terras indígenas, um político ligado aos ruralistas, que faz lei contra nós e diz que “terra não enche barriga”.

Esse governo, que deveria proteger nossas terras e nossa vida para construir outro futuro, diz que Sawre Muybu não é terra tradicional do povo Munduruku. Isso coloca em risco a nossa vida, os nossos antepassados, os nossos lugares sagrados, as nossas aldeias e a nossa alimentação.

Os pariwat querem apagar a nossa história, que é muito mais antiga que a história dos brancos aqui. Ele nega que fomos nós que construímos a floresta e não entende que fomos nós que fizemos a terra preta (katõ).

As cachoeiras do rio Tapajós nos protegeram dos pariwat por muito tempo. Mas o governo brasileiro quer construir mais 40 hidrelétricas na bacia do Tapajós, uma hidrovia e outros grandes projetos. Isso vai destruir as cachoeiras.

Elas são também as nossas bibliotecas, guardam a nossa história. Se construírem as hidrelétricas de São Luiz, Jatobá e Chacorão, as cachoeiras, ilhas e pedrais não vão mais existir e não teremos mais memória e nem proteção.

Esse desastre já aconteceu uma vez em Teles Pires, onde o governo e as empresas explodiram a nossa cachoeira, Sete Quedas. Isso deixou os espíritos de nossos mortos sem rumo, matou a mãe dos peixes e provocou muitos acidentes e doenças entre nós. O que vocês diriam se explodíssemos os seus cemitérios, o Vaticano ou Jerusalém?

O governo e as empresas dizem que essas hidrelétricas são energia limpa. Mas limpa elas nunca serão, porque só podem ser construídas se forem misturadas com o sangue do povo Munduruku e de nossos vizinhos e amigos ribeirinhos.   

Sabemos também que sob nossos pés há grande riqueza para o pariwat: ouro, minerais e diamantes – estes, especialmente, levam o sofrimento do nosso povo para terras distantes. Empresas australianas e brasileiras, como Vale S/A, farão qualquer coisa para extrair esses minerais de nossas terras. Eles só pensam em seus lucros e contam com políticos que estão prestes a aprovar uma lei para autorizar a mineração em Terras Indígenas.

A extração de diamantes em Sawre Muybu já está ameaçando outro dos nossos mais importantes locais sagrados, Os Fechos (Dajekapap). Esse lugar não deveria ser frequentado. Ele conta sobre nossa origem e guarda a pegada do nosso deus Karosakaybu.

Os projetos de extração de madeira estão acontecendo e estão destruindo os lugares que os pariwat chamam de Florestas Nacionais, mas que são as nossas terras, onde nós já vivíamos muito antes de inventarem essas Florestas Nacionais. Estão cheios das nossas agũkabuk, as aldeias abandonadas que são os sítios arqueológicos. Foi por isso que nossos guerreiros do Médio Tapajós, junto com os ribeirinhos, impediram o governo de fazer audiência pública para discutir essa exploração que não aceitamos, no início do mês de abril.   

Temos o nosso governo, a nossa forma de ensinar e aprender e, principalmente, de cuidar da floresta. Fazemos isso tudo há mais de 500 anos. Mas temos que lembrar os brancos sobre as leis deles também. Existe um capítulo para os povos indígenas na Constituição Federal de 1988, o Brasil assinou a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU para o Direito dos Povos Indígenas.

Essas são somente palavras mortas?

Nós queremos que essas leis sejam cumpridas. Nunca fomos consultados sobre as hidrelétricas que o governo brasileiro construiu e está construindo no rio Teles Pires com ajuda de empresa chinesa. Nunca nos perguntaram sobre os portos que Cargill, Bunge e outras empresas levantaram bem em frente às nossas aldeias, que vêm acabando com nosso sossego, empurrando nosso peixe para longe e servindo para exportar a soja que devasta o Mato Grosso e seus povos indígenas e comunidades tradicionais.

Tivemos que fazer a autodemarcação do nosso território quando cansamos de esperar o governo cumprir com seu dever. Temos também o nosso Protocolo de Consulta, para explicar para os brancos como conversar com os Munduruku com respeito. Exigimos que isso seja cumprido.

Contamos com o apoio de pessoas e entidades que constroem dia a dia outros mundos possíveis.

Clamamos à sociedade civil internacional que deixe de consumir produtos agropecuários, madeira, diamante, ouro e tudo que vem do Brasil e derrama sangue indígena, saqueia nossas terras e viola os nossos direitos. Que a China, os países da Europa, a Austrália, o Canadá e outros países não coloquem mais seu dinheiro e suas máquinas para ajudar o governo brasileiro e as empresas do Brasil a triturarem nossos corpos, espíritos e todas as formas de vida que existem na Amazônia.

Denunciamos o governo brasileiro, que é um governo da morte.

Mesmo com todo o esforço para nos exterminar, nós, povos indígenas, estamos mais fortes e seguimos juntos nossos diversos caminhos.

Desviamos do único caminho para que tentam nos empurrar os colonizadores desde que invadiram nossas terras. Estamos aqui para dizer que não deixaremos que acabem com as nossas vidas e que nos matem também por dentro.

Nós somos o povo Munduruku. Estamos prontos para impedir que o governo acabe com nosso pen okabapap iat (nosso modo de ser, nosso corpo, nosso estômago). Nós somos conhecidos e temidos como cortadores de cabeça.

O sangue dos nossos antepassados corre em nossas veias. Em sua memória e por nossos filhos NÃO ADMITIREMOS QUE OS PARIWAT CONTINUEM EXTERMINANDO INDÍGENAS. NÃO SEREMOS CALADOS E ATROPELADOS DIANTE DE TANTA VIOLAÇÃO DE NOSSOS DIREITOS!

Há muitas gerações nos preparamos para defender nossas terras e nosso povo e declaramos de novo: RESISTIREMOS ATÉ O ÚLTIMO MUNDURUKU!

Desde o rio Tapajós, Pará, Amazônia.

Sawe,

Associação Indígena Pariri

Movimento Ipereg Ayu

http://www.aipariri.org/

[email protected]

[email protected]

Fonte: Por Fernanda Moreira, Cimi Regional Norte II - De Nova York (EUA)
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