“Galdino é uma pessoa que se foi para resolver a vida de muita gente”
A morte de Galdino foi parte de um longo percurso de luta dos Pataxó Hã-Hã-Hãe pela reconquista e demarcação de seu território tradicional no sul da Bahia. Reconhecida oficialmente em 1926, a “Reserva Caramuru” passou, ao longo do século XX, por um longo e duro processo de esbulho
Galdino vive! A frase, repetida em coro por dezenas de pessoas presentes na Praça do Compromisso, em Brasília, expressou o sentimento compartilhado no ato inter-religioso em memória de Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, na noite de quinta-feira, 20 de abril. Na madrugada de outro 20 de abril, vinte anos atrás, Galdino foi assassinado naquele local, queimado por jovens da classe média brasiliense enquanto dormia no abrigo de uma parada de ônibus, numa das vias centrais de Brasília.
Na Praça, renomeada em homenagem a Galdino, indígenas de vários povos e não indígenas compartilharam orações, poesias, músicas e o toré, dança tradicional dos povos indígenas do nordeste do Brasil. Velas foram acendidas em torno da escultura do artista goiano Siron Franco, que homenageia o Pataxó Hã-Hã-Hãe assassinado em 1997.
“Toda vez que a gente chega aqui, a gente lembra do que aconteceu, foi um sofrimento grande. Ver ele daquele jeito, da forma que mataram ele, queimado, fica na memória para sempre. Quando chegamos aqui, parece que a gente se transforma, que a presença dele está no meio da gente, nos tocando”, afirma Wilson Jesus de Sousa Pataxó Hã-Hã-Hãe, sobrinho de Galdino que participou do ato em Brasília.
A atividade foi organizada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rede Ecumênica da Juventude, Conselho Indígena do Distrito Federal, Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, Comissão Brasileira Justiça e Paz e pelo Fórum Ecumênico ACT – Brasil.
Houve falas e orações de lideranças indígenas e religiosas – além da Igreja Católica, participaram da atividade representantes da Igeja Episcopal Anglicana do Brasil, da Igreja Metodista, da Igreja Síria Ortodoxa de Antióquia, do Templo Butista Terra Pura, da Comunidade Bahá’í e da Iniciativa das Religiões Unias – e de membros de movimentos sociais, como o movimento de quilombolas, de moradores de rua e de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Após um primeiro momento de falas e orações, todos reuniram-se em torno de uma fogueira e dançaram em volta dela o toré, comandado pelos indígenas. Enquanto ardiam as chamas, “Galdino vive!” ressoou em grito coletivo pela Praça do Compromisso.
Galdino e a luta por Caramuru-Catarina Paraguassu
A morte de Galdino foi parte de um longo percurso de luta dos Pataxó Hã-Hã-Hãe pela reconquista e demarcação de seu território tradicional no sul da Bahia. Reconhecida oficialmente em 1926 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a “Reserva Caramuru” passou, ao longo do século XX, por um longo e duro processo de esbulho (leia aqui um dossiê publicado na plataforma Caci).
Os Pataxó Hã-Hã-Hãe sofreram com a violência constante e o arrendamento de suas terras para fazendeiros e, além de serem confinados em áreas diminutas, lideranças chegaram a ser enviados ao Reformatório Krenak e à Fazenda Guarani, campos de concentração e tortura para indígenas mantidos pela Ditadura Militar em Minas Gerais.
Em 1982, a luta dos Pataxó Hã-Hã-Hãe pelo seu território tradicional se intensificou e uma Ação Cível Ordinária (ACO) no Supremo Tribunal Federal (STF) pediu a nulidade dos títulos de fazendas concedidos pelo estado da Bahia sobre a terra indígena.
Ao longo dos 30 anos que a ação demorou para ser julgada, as pressões e a violência continuaram intensas. Em 1988, a Fundação Nacional do Índio (Funai), então presidida pelo atual senador Romero Jucá (PMDB-RR), chegou a remover cerca de 50 famílias Pataxó Hã-Hã-Hãe para uma área de 308 hectares comprada no município de Camamu, a mais de 230 quilômetros de Caramuru/Paraguassu. Segundo Wilson Jesus de Sousa, muitas das famílias que foram para lá retornaram pouco depois para lutar pelo território perdido.
Seu tio, Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, viajara a Brasília com uma delegação naquele abril de 1997 para pedir às autoridades que a demarcação da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu tivesse andamento e fosse devolvida aos indígenas. Foi durante esta missão que acabou sendo assassinado na capital federal: com sua morte, explica o sobrinho, já somavam-se 17 lideranças Pataxó Hã-Hã-Hãe assassinadas desde 1982 em função da luta pela terra.
“Quando aconteceu isso com o Galdino, o mundo inteiro se sensibilizou. Galdino foi um marco que fortaleceu o movimento indígena a nível nacional, não só local, tanto é que hoje está aí: uma celebração envolvendo vários povos do Brasil. Uma comoção que ainda existe até hoje. Galdino é uma pessoa que se foi para resolver a vida de muita gente”, explica Wilson.
Os Pataxó Hã-Hã-Hãe seguiram em luta pela sua terra e, em 2012, decidiram empreender uma grande ação de recuperação territorial. Nos dois primeiros meses daquele ano, retomaram 48 fazendas incidentes sobre a terra indígena, com a finalidade de fazer valer seu direito e pressionar o STF pelo julgamento que se arrastava há três décadas. Em maio daquele ano, veio a decisão: os títulos foram considerados nulos e a tradicionalidade da ocupação Pataxó Hã-Hã-Hãe foi referendada pelo STF.
Ao contrário do acontece com a maioria dos casos de assassinatos de indígenas no Brasil, que costumam permanecer na impunidade, os assassinos de Galdino foram logo identificados e julgados, graças a um chaveiro que, tendo presenciado o crime, anotou a placa do carro dos autores antes que eles fugissem. Também ao contrário do que ocorre com a maior parte da população carcerária brasileira, majoritariamente pobre e preta, os cinco autores do crime conseguiram rapidamente a progressão de suas penas – antes, inclusive, do que a lei determina, segundo matéria do jornal Metrópoles – e se reinseriram com facilidade em seu círculo social após o cumprimento das sentenças. Segundo a reportagem, quatro dos autores do crime são hoje funcionários públicos com alta remuneração e um deles trabalha num grande escritório de advocacia em Brasília.
“Galdino sofreu na pele o que nós sofremos a todo instante”, afirmou Dinamã Tuxá, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante o ato na Praça do Compromisso. “As violações que os povos indígenas no Brasil vivem, e continuam vivendo, são latentes. Nós sofremos isso diariamente, estamos em constante batalha para sobreviver. Ele acabou demarcando esse território com o sangue dele. O índio Galdino morreu por uma causa justa”.
Leia abaixo a entrevista com Wilson Jesus de Sousa, concedida após o ato em memória dos 20 anos do assassinato de seu tio Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Qual foi a relação de Galdino com a luta dos Pataxó Hã-Hã-Hãe com a luta pela demarcação da Terra Indígena Caramuru-Paraguassu?
Wilson Jesus de Sousa: Ele fazia parte da liderança e naquela época eu era o cacique da comunidade. Nós tínhamos perdido uma ação da Justiça Federal de Ilhéus e recorremos daquela decisão no STF. Naquela época nós vivíamos em 1079 hectares de terra e cinco fazendas que nós havíamos ganhado aqui no STF iriam dar uma folga para a gente, porque estávamos em mais de 2000 índios e confinados num pedacinho de terra.
E naquela época, veio essa comissão a Brasília para falar com as autoridades para que a gente pudesse voltar para essas cinco fazendas. Formamos uma equipe, veio ele, o pai dele, mais três lideranças, encontraram com outras que já estavam aqui em Brasília, com essa missão de brigar pelo nosso retorno a essas cinco fazendas. Foi quando aconteceu essa tragédia com ele aqui em Brasília.
Foi uma tragédia que, no calor da revolução, a gente conseguiu voltar para as cinco fazendas e cnquistar os 54.100 hectares da nossa terra, que é o que exigimos desde 1982. A morte de Galdino em Brasília só fez mais ainda reforçar para que o povo Pataxó pudesse honrar sua memória e fazer com que a missão que ele veio fazer em Brasília fosse cumprida. Para nós é uma revolução justa, na qual conseguimos nosso território, embora a gente perdeu o Galdino, sua vida. Isso também trouxe consequências para a família. Em seguida o pai dele, que viu toda a cena, faleceu em consequência da morte dele. A mãe dele também faleceu, o irmão mais novo dele, com 25 anos, também morreu em decorrência da morte dos pais, então a família sofreu grandes perdas, e a conquista nossa foi o território, que é um momento sagrado.
Hoje se falou muito essa frase, “o Galdino vive”. O que significa dizer isso para o povo Pataxó Hã-Hã-Hãe?
Wilson Jesus de Sousa: É que ele vive mesmo. Ele está presente o tempo todo. Nessa luta pela terra, sentimos que todos os guerreiros que perderam a vida na luta pelo território – nós perdemos 17 lideranças assassinadas de 1982 até a morte dele, assassinadas em função da luta pela terra. Já tínhamos perdido 16, com ele 17. E todos eles para nós são guerreiros que estão aí com a gente, vivendo entre nós. Por isso citar: Galdino vive.
Essa luta pelo território, então, acabou incorporando a presença do Galdino também?
Wilson Jesus de Sousa: Com certeza. Nos nossos rituais, são invocados os que já se foram. E para conseguir uma vitória, a gente sempre tem nossos rituais, chamando eles presentes ali, em seus espíritos, dando a linha para onde nós devemos seguir, nos fortalecendo, dando força aos nossos guerreiros, à gente que está aí na frente. No ritual sagrado da comunidade indígena, a presença deles está ali sempre para nos direcionar e nos proteger dos inimigos, que são fortes.
Nós tiramos 400 fazendeiros da terra da gente. Não foi a Justiça não. 400 fazendeiros desde 1997, quando ele foi falecido. Em função disso, o Supremo julgou, no dia 2 de maio de 2012, uma ação que estava aí há trinta anos parada, dando ganho de causa aos Pataxó Hã-Hã-Hãe. Mas já não tinha mais nenhum fazendeiro dentro da terra indígena. Não fez mais do que simbolizar o julgamento, para dar o entendimento à sociedade de que o Supremo agiu, em função de toda essa peleia que a gente teve e pela luta também.
Veja na plataforma Caci a lista de assassinatos registrados no interior da TI Caramuru-Paraguassu a partir de 1985. A base de dados não compreende todos os casos citados por Wilson.
Houve o toré em volta da fogueira e se falou aqui de dar um novo sentido para o fogo. Isso tem algum significado para os Pataxó Hã-Hã-Hãe também?
Wilson Jesus de Sousa: Todo índio tem isso na mente. Se você vai fazer o toré, tem a fogueira. Você não faz um toré se não tem a fogueira, igual a essa que está aí. Se você vai para a retomada, lá assim que você acaba de ocupar a fazenda, tem que ter a fogueira. Tudo isso faz parte da cultura indígena. O fogo realmente é um meio de buscar também a fortaleza dos nossos antepassados. A gente não encarou o fogo como uma tragédia não. A gente encarou como uma forma de dar vida a Galdino.
Toda a vez que a gente chega aqui a gente lembra do que aconteceu, foi um sofrimento grande. Ver ele naquele jeito, da forma que mataram ele, queimado, fica na memória para sempre. Toda vez que a gente chega aqui, parece que a gente se transforma, que a presença dele está no meio da gente, tocando a gente, e se sente que ele está ali.
Quando aconteceu isso com o Galdino, o mundo inteiro se sensibilizou. Recebemos na nossa comunidade muita gente do exterior. Galdino foi um marco que fortaleceu o movimento indígena a nível nacional, não só local, tanto é que hoje está aí: uma celebração envolvendo vários povos do Brasil. Uma comoção que ainda existe até hoje. Galdino é uma pessoa que se foi para resolver a vida de muita gente.