Pataxó denunciam retirada de madeira no Parque Nacional do Descobrimento, incidente sobre terra indígena
Fotos de madeira no interior do Parque Nacional do Descobrimento, registradas pelos Pataxó.
Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação
Desde o dia 11 de março, os Pataxó ocupam o Parque Nacional do Descobrimento, unidade de conservação sobreposta à Terra Indígena (TI) Comexatibá, no extremo sul da Bahia, município de Prado. Os Pataxó decidiram ocupar o Parque para reivindicar o andamento da demarcação da TI Comexatibá, que aguarda a publicação da Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça desde 2015, e exigir que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão da unidade, retire a ação de reintegração de posse movida contra suas comunidades.
Enquanto os Pataxó são perseguidos pela gestão da unidade e sofrem com a possibilidade de uma reintegração de posse, situações graves parecem passar despercebidas ao órgão ambiental. Durante a ação, os indígenas encontraram estacas e pranchas de madeira serrada pelo parque e, na base avançada do ICMBio depararam-se com cadeiras de madeira recém-produzidas e materiais de serraria.
“Com a nossa ocupação, vimos que a problemática está muito mais grave, porque praticamente os chefes do Parque estão com uma marcenaria montada dentro da base avançada do ICMBio, onde estavam desfiando madeira verde na produção de cadeira, mesa, tiraram muita prancha de macanaíba e outras árvores para fazer coisas que a gente não sabe ainda a dimensão”, denuncia Mandỹ Pataxó, uma das lideranças da TI Comexatibá que participam da ocupação.
Registro dos Pataxó dos materiais encontrados na base avançada do ICMBio durante a ocupação
Os Pataxó encontraram pilhas de madeira no parque, identificada por eles como oriundas de árvores típicas da Mata Atlântica – muitas em extinção e bastante cobiçadas por madeireiros. Os achados foram registrados em fotos.
“Descobrimos esse madeiramento todo serrado, com pranchas de braúna, inhaíba e macanaíba, madeira de lei, árvores que não se encontra mais como havia 20 ou 30 anos atrás”, afirma.
O parque e a terra indígenas são cercados por fazendas, onde sobressaem-se especialmente o cultivo de gado, eucalipto e café, com muita pressão sobre a mata da região. Por isso, as estacas de madeira encontradas no interior do parque intrigaram os indígenas.
“Tem estacas também, que acreditamos que podem ser passadas para fazendeiros. Muitos não têm cerca com a mata do parque e acabam entrando, e eles [direção do parque] fazendo vista grossa e deixando isso acontecer”, critica o Pataxó.
Indígenas na ocupação do Parna Descobrimento. foto: Domingos Andrade/Cimi Leste
Reintegração de posse
Um ano atrás, no mês de março, a tensão tomou conta da TI Comexatibá. Policiais federais e militares já estavam reunidos em Prado para executar a reintegração de posse em favor do ICMBio e despejar cerca de 300 indígenas da área de sobreposição com o parque.
Sob pressão e com a memória recente de um despejo violento na mesma terra indígena, na aldeia Cahy, os Pataxó afirmaram que resistiriam e se prepararam para a guerra. No último instante, com base numa ação do Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) suspendeu a execução da reintegração de posse.
Apesar disso, a liminar da Justiça Federal de Eunápolis em favor do ICMBio continua valendo. A decisão do TRF-1 apenas suspendeu sua execução até que o mérito da ação do MPF, que pede a suspensão definitiva da reintegração de posse, seja julgado.
“Ainda temos a assombração da liminar da reintegração de posse feita pelo ICMBio. E tem muito crime ambiental no entorno da unidade, como plantio de eucalipto, desmatamento da Mata Atlântica do parque e descargas de agrotóxico na região”, explica Mandỹ Pataxó.
A ação de reintegração de posse do ICMBio tramitou por cerca de dez anos até a decisão liminar, e o órgão não aceitou abrir mão dela nem depois que o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (Rcid) da TI Comexatibá foi publicado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 27 de julho de 2015.
Em entrevista ao ISA, em 2016, o então presidente do ICMBio, Cláudio Maretti, afirmou que o a TI Comexatibá ainda não poderia ser reconhecida como terra indígena, pois seu processo administrativo não estava concluído.
Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta que essa é uma interpretação equivocada.
“A Constituição Federal diz que são reconhecidos os direitos dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas”, explica. “Trata-se do reconhecimento de um direito originário, pré-existente, de modo que o trabalho administrativo cuida apenas de identificar e formalizar os limites dessas áreas, com a finalidade de preservar os direitos desses povos. O reconhecimento independe da formalização ou de atos constitutivos, portanto não é só a partir da homologação que uma terra indígena passa a ser reconhecida como tal”.
Indígenas denunciam a presença de armadilhas nas trilhas de animais e de um mirante construído com madeira nativa em um santuária. Fotos: indígenas Pataxó
Mirante em santuário e armadilhas pelo parque
Em suas rondas pelo parque durante a ocupação, os Pataxó encontraram um mirante construído num local que, para seu povo, é um santuário.
“Fizeram uma torre com um mirante alto na represa do Sonovô, lugar sagrado para os Pataxó. Madeira nativa, todo de macanaíba verde. Também abriram um roçado muito grande por baixo. Ali é um santuário onde ficam os porcos-queixada, muita onça, muita paca. Só que os animais estão acuados, se afugentaram daquela localidade”, relata Mandỹ.
“O nome Sonovô vem de ‘só não vou’, por causa das onças. É um lugar sagrado para nós, porque é uma região antiga de moradia de nosso povo, onde ele vivia equilibrado e em harmonia antes de ser expulso pela [madeireira] Brasil Holanda, em 1970. Então, estamos muito tristes e preocupados”, continua.
Além disso, os indígenas registraram também armadilhas cavadas em áreas que eles apontam como de passagem de porcos-queixada e antas (fotos abaixo).
Eventos no interior da unidade
A ocupação dos Pataxó no Parque Nacional do Descobrimento também resultou no cancelamento de uma atividade do evento Prado Moto Rock 2017 que ocorreria no interior da unidade de conservação. Estavam programados um passeio e um show no Parque.“Até pouco tempo, não existia visitação dentro do parque. Agora, já estão colocando passeios de ciclistas, cavalgadas e até eventos de moto, sem nenhuma preocupação”, afirma Mandỹ.
O Parque Nacional do Descobrimento é uma unidade de conservação cujo regime de proteção é integral. Segundo a definição do próprio órgão, são unidades que tem como finalidade “preservar a natureza, livrando-as o quanto possível da interferência humana”.
Esse tipo de unidade também prevê a “recreação em contato com a natureza, turismo ecológico, pesquisa científica, educação e interpretação ambiental”. Chama atenção, entretanto, a diferença de trato conferida pela gestão do parque a indígenas e não-indígenas.
Nos autos do processo que resultou na liminar de reintegração de posse contra os Pataxó, é citada uma manifestação do então presidente do ICMBio, segundo o qual “a preservação do Parque Nacional do Descobrimento exige o reconhecimento da inviabilidade ambiental de qualquer forma de ocupação humana”.
Gestão compartilhada e guarda indígena
Embora os Pataxó reivindiquem e reconheçam toda a extensão do Parque como parte de seu território tradicional, são 19,6% da área do Parque Nacional do Descobrimento que estão sobrepostos ao perímetro reconhecido à TI Comexatibá pela Funai em 2015.
“Os Pataxó nunca deixaram de reivindicar esta área, mesmo após sua expulsão dela pela empresa madeireira Brasil Holanda, na década de 1970. Eles já lutavam pela demarcação da terra indígena antes da criação do parque e, nos anos 2000, frente à morosidade do Estado, partiram para a retomada de novas partes do território. Aí que veio a reação do ICMBio e de fazendeiros”, explica Domingos Andrade, missionário do Cimi – Regional Leste que atua junto aos Pataxó.
Um decreto de ampliação do Parque, publicado em 2012, previu sua dupla afetação, ou seja, a possibilidade de gestão compartilhada da unidade em caso de sobreposição com terras indígenas. O Ministério Público Federal (MPF), em ação civil pública, também recomendou a gestão compartilhada do parque como forma de garantir os direitos dos povos indígenas e a preservação da Mata Atlântica na região.
Apesar disso, o ICMBio tem mantido a exigência de reintegração de posse contra os indígenas e se negou a discutir o assunto, abandonando inclusive instâncias de negociação com a Funai.
Após a ocupação, os Pataxó estiveram em Brasília apresentando suas denúncias à presidência do ICMBio e à Sexta Câmara da Procuradoria-Geral da República, que ficou de averiguar a situação.
Uma reunião com a presidência do ICMBio e o MPF chegou a ser marcada para os dias 12 e 13 de abril, para discutir uma possível resolução para a questão. Na última semana, ela acabou sendo remarcada para o início de maio. Até lá, os indígenas, que não aceitam mais que a atual direção seja mantida no parque, seguem ocupando a área.
Madeira serrada no interior do parque, registrada pelos Pataxó
“Temos a proposta de criação de uma fiscalização ambiental federal Pataxó, para ter mais autonomia na fiscalização do território”, explica Mandỹ Pataxó. “Eles estão interpretando a gente como praticamente terrorista, criminalizando a nossa luta. Enquanto isso, estão secando nossas veias, que são os rios, matando a nossa carne, que é nossa terra, e destruindo nosso espírito, que é a floresta. Não aceitamos isso mais e não vamos arredar o pé de lá antes do governo reconhecer toda essa situação criminosa e favorecer o que seja de melhor pra unidade e pra vida dos povos indígenas e de todos os seres vivos ali”.
Questionado sobre as denúncias dos Pataxó, o ICMBio não se manifestou até o fechamento da reportagem nem retornou os pedidos feitos pela assessoria de comunicação do Cimi.