Incidência política: a força indígena na defesa dos direitos
Rose, Rosilene e Roberto Kanamari: lideranças em incidência junto ao poder público. Crédito das fotos: Fábio Pereira/Cimi-Tefé
Por Ligia Kloster Apel, da Assessoria de Comunicação – Cimi/Tefé
“O diálogo precisa acontecer e ser permanente. Os órgãos públicos precisam ouvir o povo indígena, conhecer as necessidades e assumir sua responsabilidade de criar e implementar políticas públicas específicas para nós”. Essa foi a principal reivindicação das lideranças dos povos Deni e Kanamari na reunião de incidência política que aconteceu na sede do CIMI, no município de Itamarati (AM), no dia 29 de março de 2017.
A reunião em Itamarati foi convocada pelas parceiras Associação do Povo Deni do rio Xeruã (Aspodex) e Associação do Povo Tâkuna do Rio Xeruã (Aspotax), do povo Kanamari, e recebeu o apoio do projeto “Garantindo a defesa de direitos e a cidadania dos povos indígenas do médio rio Solimões e afluentes", realizado pela Cáritas de Tefé e Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Tefé) e apoiado pela Agência Católica para o Desenvolvimento no Exterior – CAFOD-Brasil, da Inglaterra e País de Gales, e da União Europeia. Também, a organização indigenista Operação Amazônia Nativa (OPAN) apoiou e se fez presente no encontro.
Por parte do poder público estavam presentes o Secretária de Meio Ambiente do município de Itamarati, Natanilson Lopes, e o Gerente da Unidade Local do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM) em Itamarati, José Artemio.
Foram várias as reivindicações dos povos Deni e Kanamari durante a reunião e mesmo antes dela. As assembleias das associações Aspodex e Aspotax acontecem anualmente desde as suas criações (2006 da ASPODEX e 2009 da ASPOTAX). Em todas elas, as reivindicações de cumprimento das políticas públicas para os indígenas são feitas e encaminhadas aos órgãos competentes.
Em todas elas, os problemas são apresentados, as violências contra os direitos indígenas denunciadas e as necessidades apresentadas. Mas, apesar das Terras Indígenas destes dois povos, no município de Itamarati, estarem demarcadas e homologadas, ainda existe desrespeito ao seus territórios e seus modos de vida. A ausência de políticas específicas de educação escolar diferenciada, de assistência a saúde, de incentivo à produção, entre tantas outras ausências, promovem um distanciamento das instâncias de poder para além da distância geográfica que se encontram.
Tais distanciamentos tornam o acesso às secretarias municipais e suas respectivas funções, mais difícil, até pelo desconhecimento das responsabilidades de cada uma, como afirma Ton Antônio Alexandre Kanamari, professor da aldeia São João do Kurabi: “muitas vezes os Kanamari chegam na cidade e solicitam apoio aos representantes da prefeitura, mas cada vez que chega em uma secretaria, dizem que aquilo não é função dela, é função de outra. E como nós não conhecemos as funções certas de cada uma, nós não conseguimos o apoio que precisamos”.
As reivindicações dos indígenas ao poder público se estende, inclusive, para esses esclarecimentos.
Associação: o jeito não índio de se organizar para produzir
Em relação à produção, os indígenas afirmam que o que plantam lhes dá garantia de subsistência, mas existe a necessidade de melhoramentos e agregação de valor em seus produtos para poderem comercializar e, assim, possibilitar recursos para outras necessidades que têm. Para isso, é imprescindível o apoio do poder público.
Ton Kanamari comenta as dificuldades que seu povo têm para escoar, por exemplo, a produção de banana, abacaxi e o peixe: “É difícil vender nossa produção de banana e abacaxi porque não conseguimos acondicionar para não estragar até chegar na cidade. Mesma coisa é o peixe. Precisamos de estrutura para acondicionamento e certificação também. A Secretaria de Meio Ambiente e o IDAM podem ajudar nisso aí. Porque aí podemos agregar valor nessa produção e melhorar nossa renda”, afirma o professor.
Outras produções, como cana de açúcar, extração de açaí e óleos de andiroba e copaíba, também precisam de incremento, de apoio técnico e de maquinário. “Tudo isso podemos produzir, mas precisamos de apoio e estamos dispostos a oferecer contrapartida no que for possível”, afirma o líder Kanamari, na expectativa de que os órgãos assumam suas atribuições e contribuam com a produção.
Esse depoimento, assim como os depoimentos do presidente da Aspodex, Marizanu Makhuvi Deni, e do líder Saravi Makhuvi Deni, revelam as diferenças que os costumes e conhecimentos tradicionais, assim com a forma de organização social, em muito se destoam da forma da sociedade não indígena se organizar.
Marizanu diz que o trabalho conjunto faz parte da natureza indígena e demonstrou, durante o debate, que é com essa natureza coletiva que os Deni querem trabalhar o associativismo. Essa é a “forma dos não índios se organizar”, afirma, mas se dispuseram a aprender e organizaram as associações: “Estamos trabalhando e organizando as comunidades do jeito não índio de se organizar. São conhecimentos novos, mas estamos lutando pra fortalecer a Aspodex. Ainda temos dificuldades e desafios, mas, aprendemos e estamos lutando pra fortalecer a associação. As dificuldades podem ser superadas com a ajuda da prefeitura. É só a gente trabalhar junto”.
O líder Saravi Deni, reforça a importância de aprender o funcionamento do mundo não índio lembrando que seu povo enfrentou diversas dificuldades depois do contato com os não índio, por desconhecer esse jeito de viver: “já tem muito tempo que eu tenho buscado aprender junto aos não índios novos conhecimentos. Por isso sou um Deni que vou à cidade estudar. Graças a esse esforço e a contribuição das organizações indigenistas, como o CIMI e a OPAN, as condições socioambientais dos Deni vêm melhorando. Por isso, queremos trabalhar em conjunto e precisamos das políticas públicas específicas pra nós”.
O representante do IDAM, José Artemio, manifesta seu apoio e respeito pelos esforços dos indígenas ao se organizarem nas associações e diz que, o planejamento do órgão está vindo ao encontro das reivindicações e necessidades manifestadas. “Pretendemos ajudar os Deni com viveiros de árvores frutíferas mais precoces para possibilitar a diversificação da sazonalidade de frutas, sem deixar de lado as frutíferas tradicionais. A cana de açúcar será apoiada pelo mesmo motivo da diversificação de culturas”, diz Artemio reforçando a disposição do IDAM em apoiar as decisões dos Deni e Kanamari e oferecendo apoio técnico para culturas diferenciadas.
Exemplifica o apoio com a produção de farinha, que visa a melhoria da sua qualidade: “a proposta do IDAM é fortalecer o plantio e a produção em condições sanitárias e de qualidade que permitam a agregação de valor ao produto”, reitera Artemio, dizendo que os padrões de qualidade, saúde e higiene da produção devem ser rigorosos porque se está produzindo alimentos. Quanto ao escoamento, que também está contemplado no planejamento, diz que “é necessário buscar recursos para estrutura e logística (transporte), por isso é muito importante planejar coletivamente e via as associações”, finaliza.
Merenda regionalizada nas escolas: uma necessidade almejada
Um dos maiores problemas enfrentados pelas comunidades indígenas é a merenda escolar que vem da cidade com alimentos industrializados. Segundo os indígenas, é uma merenda de menor qualidade quando comparado ao alimento tradicional da comunidade, como destaca o indígena Umada Deni, ao concordar que os alimentos produzidos precisam ter qualidade. “Os Deni estão dispostos a se capacitar para alcançar qualidade exigida nos produtos. É isso que queremos. Mas, nosso alimento é diferente. Os alimentos industrializados são pior dos que os nossos, mesmo que digam que o nosso não tem esse padrão exigido”. E destaca que, assim como os “índios respeitam o alimento dos não índios, os não índios devem respeitar nosso alimento”.
Manuel Pima Kanamari também concorda que, quando se trata de compra e venda de produtos, a qualidade deve ser rigorosa, mas “a aquisição local dos produtos locais deve ser feita pelos próprios indígenas, e são eles que determinam a qualidade dos produtos”, enfatiza.
Artemio não discorda e diz que a produção para merenda escolar indígena é uma boa experiência para se alcançar qualidade na produção porque se a ideia é vender é preciso estar atento à qualidade. “Conseguindo fornecer alimentos para as escolas com boa qualidade, as aldeias alcançarão experiência e, aumentando a boa produção, conseguirão no futuro comercializar os produtos para fora das comunidades”.
Para Fábio Pereira, do CIMI Tefé, a discussão sobre a necessidade da merenda escolar ser regionalizada e adquirida nas comunidades pelos próprios indígenas, é uma reivindicação que vem das assembleias realizadas. E, desde lá, a conclusão é que é importante e necessário unir os conhecimentos tradicionais e técnicos para melhorar a qualidade dos produtos. “O ideal é consorciar os conhecimentos para que se possa viabilizar essas produções. Essa reunião de incidência foi bastante feliz, pois está mostrando que as especificidades indígenas vão ser contempladas no planejamento do IDAM. Portanto, o diálogo entre indígenas e poder público precisa ser permanente e constante, para não ficar só no debate e as políticas sejam implementadas de forma eficiente”, enfatiza.
Um documento para que o diálogo não pare
Na perspectiva de que os órgãos públicos presentes levem as discussões, as reivindicações e os encaminhamentos acordados à prefeitura e às demais secretarias e órgãos competentes, os indígenas das comunidades Terra Nova, Boiador, Morada Nova e Itaúba, da Terra Indígena Deni, e Flechal, Santa Luzia e São João do Curabi, da Terra Indígena Kanamari, escreveram e protocolaram junto aos representantes, um Documento de Incidência Política, no qual constam as demandas referentes à economia indígena.
Mecanismos e projetos para melhoramento, potencialidades econômicas e produtivas, transporte para escoamento, formação e acompanhamento técnico para a produção e apoio para a comercialização dos produtos e artesanatos, foram as reivindicações expressas no documento. Ele foi entregue ao Secretário Municipal de Meio Ambiente, Natanilson Lopes, que levará ao prefeito de Itamarati, Antônio Maia da Silva, e ao Secretário de Agricultura e Abastecimento, Raimundo Ferreira Fiesca. O Gerente da Unidade Local do IDAM de Itamarati, José Artemio, levará ao conhecimento do Sr. Hamilton Nobre Casaro, Secretário de Estado de Produção Rural do Amazonas (SEPROR).
Assim, consolida-se que a união dos indígenas, organizações indigenistas e o poder público, em um grande mutirão de defesa dos direitos indígenas, consagrados pela Constituição Federal, confronta o poder que domina e viola os direitos indígenas e é a melhor estratégia de luta em defesa da vida indígena.