31/03/2017

Grupo Kaingang preso no norte do RS é solto por ordem do STJ; Cimi denuncia arrendamentos


Terra Indígena Kandóia: na quarta, 29, pistoleiro atacou aldeia. Crédito das fotos: Renato Santana/Cimi


Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi


Depois de quase cinco meses de detenção, os indígenas Kaingang Marcelina da Silva, Adamor Franco, Ereni Adimo Franco, Laerte Franco, Davi  Feixe, Elias da Silva e Elizeu dos Santos foram soltos nesta quinta-feira, 30, e poderão responder ao processo em liberdade. Outros três indígenas seguem detidos, envolvidos em outras situações de criminalização. O ministro-relator Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concedeu habeas corpus a favor de medida alternativa à prisão preventiva que vinha sendo cumprida pelos Kaingang no Presídio de Lagoa Vermelha.

Na madrugada de 23 de novembro de 2016, uma operação de guerra acordou a comunidade da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, em Sananduva (RS). Despachados pela Justiça Estadual, mandados de prisão foram cumpridos pela Polícia Federal sob a acusação de que o grupo Kaingang incendiou lavouras privadas e ameaçou cometer o mesmo crime contra a população local. Assista aqui.

"(…) na leitura da decisão de primeiro grau não houve menção a nenhum ato específico que pudesse demonstrar a efetiva participação dos pacientes nos eventos criminosos", afirma o ministro-relator do caso, cujo voto foi acompanhado pela Sexta Turma do STJ em unanimidade. O ministro ressaltou que acompanha a alegação da Subprocuradora-Geral da República, Mônica Nicida Garcia, que diz:

"No caso, verifica-se a falta de fundamentação concreta da conduta, de cada um dos pacientes, tanto nas representações quanto nas decisões que decretaram as priões preventivas, que narraram, de forma genérica, sem delimitação e individualização, os atos praticados pelos acusados". A Justiça Estadual limitou-se a dizer que os indígenas estariam constrangendo os agricultores "mediante violência ou grave ameaça".

Para o Ministério Público Federal (MPF), se tratou de detenção “ilegal em massa, abuso de autoridade, violência, segregação e exposição vexatória”, acompanhando relatório organizado pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O coordenador do Cimi Regional Sul, Roberto Liebgott, salienta que "o inquérito foi conduzido pela Polícia Civil e os mandados de prisão feitos por uma juíza estadual a pedido da PF. Uma aberração jurídica".

A advogada Caroline Dias Hilgert, da Assessoria Jurídica do Cimi, entidade que impetrou o habeas corpus junto ao STJ, fez a sustentação oral em defesa dos Kaingang, na Sexta Turma do STJ. Caroline sustentou aos ministros, entre os argumentos da linha de defesa, que o caso deveria ser alçado à esfera federal, mas o relator decidiu não abordar a questão em sua decisão.



O norte do Rio Grande do Sul se tornou tão perigoso aos indígenas quanto áreas no Mato Grosso do Sul

Norte do Rio Grande do Sul: arrendamentos e o crescimento da violência contra os povos indígenas

 

Os Kaingang postos em liberdade vivem no norte do Rio Grande do Sul, região que registra crescente onda de violações e violências contra os povos indígenas. Nos últimos anos, conflitos fundiários têm repercutido na vida das aldeias e acampamentos com criminalização. Caciques e lideranças são envolvidos em crimes sem provas, sofrendo acusações vagas e subjetivas, além de campanha difamatória na mídia local. Conforme apuração do Cimi Regional Sul, a negativa em arrendar terras tradicionais está por trás da ofensiva.   

Na noite desta quarta-feira, 29, a família de Deoclides Kaingang recebeu uma visita inesperada no acampamento da Terra Indígena Kandóia, município de Faxinalzinho. Um homem branco, não identificado, esmurrou a porta da casa do indígena exigindo que ele saísse. A esposa de Deoclides comunicou que ele não estava, então o homem ameaçou matá-la. Aos gritos, a indígena o obrigou a fugir temendo a chegada de outros Kaingang.  

O Cimi Regional Sul orientou os Kaingang a registrar Boletim de Ocorrência, ao passo que informou o episódio ao Conselho Estadual de Defensores de Direitos Humanos. Deoclides Kaingang é atendido pelo Programa de Defensores; está entre os 111 indígenas protegidos pelo Estado brasileiro. "As câmeras instaladas na casa do Deoclides estão sem funcionar. Solicitamos a manutenção porque se elas estivessem operando, o pistoleiro teria sido identificado", diz Liebgott.

Oito lideranças da comunidade encontram-se no programa de proteção do governo Federal. A comunidade está criminalizada desde 2014. Atribui-se a seus membros crimes de organização criminosa e, além disso, 19 homens da comunidade foram denunciados por duplo homicídio e roubo. A terra que a comunidade reivindica é de 2000 hectares, mas o procedimento de demarcação foi paralisado no ano de 2013.

A Farsul

“Considerando que o clima tenso e hostil provocados pelos atos dos indígenas, beirando as vias do conflito, o que pode resultar em eminente risco à segurança e a vida dos envolvidos, bem como da população sananduvense”, diz um trecho do decreto assinado pelo vice-prefeito de Sananduva, Leovir Fidêncio Antunes Benedetti, horas depois do incêndio cuja autoria recaiu sobre os Kaingang postos em liberdade nesta quinta, 30.

Um organização ruralista participou ativamente de toda a articulação contra os Kaingang. A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) acusou publicamente os Kaingang e alguns agricultores (que não fazem oposição aos indígenas) pelo fogo. Sem provas ou quaisquer investigações policiais, o vice-prefeito decretou Estado de Calamidade Pública, atendendo à Farsul.

No dia seguinte a  PF já tinha solicitado à Justiça Estadual a prisão de seis indígenas e dois agricultores; no dia 23, a operação de guerra, que em tese levaria tempo a ser mobilizada, fez a invasão e as prisões.

As plantações queimadas pertencem, coincidentemente, aos fazendeiros que não permitiram a Funai realizar o trabalho envolvendo a demarcação física da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, que teve o Relatório Circunstanciado publicado pelo Ministério da Justiça em 25 de abril de 2011, com 1.916 hectares. Os Kaingang, que contam com o apoio dos agricultores, resistem a tentativas de arrendamento e invasões de terras na região.

Em carta, o Cimi Regional Sul alertou nesta quinta, 30, autoridades de direitos humanos sobre as consequências aos indígenas que se opõem aos arrendamentos de terras tradicionais na região – e como os recentes fatos, envolvendo a criminalização dos Kaingang, podem estar envolvidos com tal negativa de participação naquilo que é considerado um crime pela Constituição (o usufruto de uma terra indígena é exclusivo ao povo que a ocupa).

Leia na íntegra:  

Carta do Cimi ao Conselho Estadual dos Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos/RS; ao Programa Nacional de Proteção do Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos; ao Conselho Estadual de Direitos Humanos

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul vem, respeitosamente, apresentar alguns fatos, que no nosso modo de sentir são preocupantes, pois afetam comunidades e lideranças indígenas no Rio Grande do Sul.

Como é de conhecimento público, as disputas pela terra e pelo seu usufruto são uma  constante no Rio Grande do Sul. Os fatos mais graves, envolvendo violências como ameaças, perseguições, criminalização, prisões e assassinatos ocorrem nas regiões norte e noroeste do estado.

Há duas questões bem emblemáticas  e que merecem atenção e cuidado daqueles que lidam com as ferramentas públicas pela defesa dos direitos à vida e pela garantia dos demais direitos humanos:

– Há terras que foram reservadas para comunidades indígenas no século XX e que hoje são cobiçadas por aqueles que pretendem obter lucros através de sua exploração através do plantio de produtos como soja, milho e trigo – e essa exploração se dá através de um esquema criminoso de arrendamento de terras e aliciamento de indígenas;

– Há comunidades indígenas, pelo menos 60,  em todo o estado do Rio Grande do Sul, em luta pela demarcação e reconhecimento de suas terras como sendo de ocupação tradicional e que rompem, na prática, com o esquema dos arrendamentos de terras.

Tendo presente estas duas realidades podemos então adentrar nas questões que envolvem o contexto indígena no Rio Grande do Sul.

No que tange ao primeiro tópico é importante salientar que os fatos criminosos de arrendamento de terras (vedados pela Constituição Federal e Estatuto do Índio) são notórios, ou seja, são de conhecimento público e dos Poderes Públicos.

Não se traz aqui nenhuma novidade política ou jurídica. Há acordos na Justiça Federal, pactuadas com o Ministério Público Federal, de que este processo – de arrendamentos – é ilegal e portanto deveria ser, de imediato, superados juridicamente. Optou-se por um acordo de que até no final ano de 2016 todos os arrendamentos seriam concluídos e, a partir de então, as terras deveriam, como prevê a lei, destinadas ao usufruto exclusivo das comunidades indígenas.

Há, no entanto, que se levar em conta de que o arrendamento de terras indígenas envolve muita gente. Dentre estas gentes, muitas delas importantes do ponto de vista político, jurídico e econômico. Há, pelo que se vislumbra, além do aliciamento de índios, pessoas da sociedade envolvente – autoridades municipais, estaduais, federais e políticos – ganhando dinheiro com o arrendamento de terras. Movimenta-se nas regiões norte e noroeste do RS milhões e milhões de reais oriundos do plantio, colheita e comercialização de grãos, especialmente de soja.

O acordo Judicial certamente não agradou a todos os interessados. O cacique de Serrinha, Antônio Mig, comprometido com o acordo judicial, decidiu estabelecer o acordo como o fim do arrendamento – perante aqueles que arrendavam as terras, passou a não atender mais aos interesses econômicos. Antônio foi assassinado com seis tiros, na semana passada. Os bandidos ainda não foram encontrados.

No que se refere ao segundo tópico salientamos que as comunidades em luta pela demarcação de terras vêm, ao longo dos anos, se posicionando contra o arrendamento das áreas indígenas. No geral as comunidades vivem em acampamentos nas margens das cidades ou rodovias. Cada ação política que desenvolvem, no sentido de cobrar providência para que suas terras sejam efetivamente demarcadas e reconhecidas, as comunidades sofrem represálias, nem tanto da sociedade em geral, mas acabam sendo agredidos por políticos, autoridades municipais e estaduais e pela Polícia Federal e Poder  Judiciário-que na prática aceita as teses e as propostas – inquéritos policiais – que visam a criminalização das lutas pela demarcação de terras.

Relatamos dois casos que nos parecem elucidativos:  

Terra Indígena Kandóia:  

Terra Indígena Kandóia, município de Faxinalzinho/RS, a comunidade Kaingang conta  com 80 famílias, mas de 200 pessoas que vivem em uma área de terra de aproximadamente quatro hectares, que foi cedida pelo estado do RS para uso por um período de 20 anos. A terra que a comunidade reivindica é de 2000 hectares, mas o procedimento de demarcação foi paralisado no ano de 2013. Foi publicado o relatório circunstanciado da terra e aguarda-se a publicação da portaria declaratória por parte do Ministério da Justiça.

A comunidade está criminalizada desde 2014. Atribui-se a seus membros crimes de organização criminosa e, além disso, 19 homens da comunidade foram denunciados por duplo homicídio e roubo.

Oito lideranças da comunidade encontram-se no programa de proteção do governo Federal – PPDDH -, no entanto a comunidade como um todo está vulnerável. O sistema de vigilância lá implementado, por falta de manutenção do sistema, está inoperante.

Na noite do dia 28 de março um homem de cor branca não identificado se dirigiu à  casa do Deoclides e proferiu ameaças de morte. No entanto, ele não estava na casa, mas a esposa relatou os fatos: o sujeito disse que encheria o Deoclides de tiros. A comunidade registrou ocorrência na Polícia Civil e providenciou um esquema de vigilância interna.

Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha:

Passo Grande do Rio Forquilha, município de Sananduva-RS a Comunidade Kaingang, com 40 famílias e  cerca de 150 pessoas,  luta pela demarcação da terra há décadas. O procedimento de demarcação avançou até a fase da publicação da portaria declaratória pelo ministério da Justiça, fato que se deu em maio do ano de 2011. A área é de 1750 hectares. No entanto, não houve a desintrusão da terra, ou seja, os agricultores que lá residem não foram removidos permanecem ocupando a área indígena. As famílias de agricultores não receberam as indenizações pelas benfeitorias de boa-fé.

No ano de 2015 a comunidade decidiu, para pressionar o governo federal, retomar partes da terra que estão sob a posse de agricultores. O conflito se intensificou, uma vez que o sindicato rural e alguns grandes proprietários da região, que também exploram parcelas da terra, passaram a atacar os indígenas. Houve alguns conflitos.

Em 2016, com o intento de exigir que a demarcação fosse concluída e os agricultores devidamente indenizados, os Kaingang passaram a impedir que o usufruto da terra por não-índios. Isso gerou uma grande ofensiva política e jurídica contra a comunidade. Acabou que se abriu inquérito e houve mandados de prisão contra as lideranças da comunidades.

Dez indígenas acabaram presos no dia 23 de novembro de 2016 e permaneceram encarcerados por crimes de organização criminosa, extorsão e ameaça, e crime contra a ordem pública. Os mandados de prisão foram expedidos pela justiça estadual, embora o inquérito todo tenha sido conduzido pela polícia federal, o que é fato no mínimo estranho.

Através de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar um Habeas Corpus impetrado por advogados do Cimi, houve a liberação, no dia 29 de março,  de sete dos dez indígenas presos em Lagoa Vermelha.

As prisões foram evidentemente para criminalizar os líderes da comunidade e seus familiares, tanto que, dentre os presos, estavam Leonir  Franco,  o cacique, seu pai e mãe Ereni Franco e Marcelina da Silva. Além deles,  os irmãos do Cacique Wilian Franco – eleito vereador pelo município de Cacique Doble nas últimas eleições –  Laerte Franco e o tio Adamor Franco, além dos professores Elias da Silva,  Davi Faix e Elizeu Santos.

Pelos fatos acima relatados se pede:

Acompanhamento de processos judiciais envolvendo o assassinato de Antônio Mig-cacique da Terra Serrinha;

Fiscalizar e acompanhar o cumprimento da determinação judicial de que os arrendamentos de terras sejam definitivamente paralisados na região;

Cobrar do Poder Público para que as comunidades indígenas  tenham efetivamente o acesso e usufruto as terras demarcadas;

Acompanhar o desenvolvimento dos processos envolvendo a criminalização dos 19 indígenas de Kandóia denunciados pelos crimes de homicídios e roubo;

Assegurar que em Kandóia seja reorganizado o procedimento de fiscalização e monitoramento da comunidade;

Assegurar a proteção dos defensores e defensoras indígenas da comunidade Kandóia;

Acompanhar os processo envolvendo a comunidade de Passo Grande do Rio Forquilha e suas lideranças criminalizadas;

Propor que o Ministério Público Federal abra um procedimento de investigação sobre o arrendamento de terras indígenas na região norte, com o intento de investigar  os possíveis beneficiários destas ações criminosos na região norte e noroeste do Rio Grande do Sul;

​Assegurar que o Programa Nacional de Proteção dos Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos atue junto às comunidades indígenas ameaçadas- especificamente Kandóia e Passo Grande do Rio Forquilha.

Contando com a compreensão  e o atendimento das proposições nos despedimos.

Atenciosamente

Roberto Antonio Liebgott

Coordenador do Conselho Indigenista Missionário Regional Sul


Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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