CPI da Funai/Incra 2 se afirma como tribunal de exceção para quebrar sigilos de entidades
Crédito: Tiago Miotto/Cimi
Por Tiago Miotto e Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi
"Esta casa é um parlamento, não um tribunal de exceção". As palavras da deputada federal Erika Kokay (PT/DF) ecoaram, a partir da primeira sessão de 2017 da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e do Incra 2, numa Câmara Federal esvaziada num hiato entre a volta do recesso e o mês do Carnaval. Na manhã desta quarta-feira, 8, o plenário 11 era um dos únicos com alguma atividade no anexo 2 da Câmara.
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Durante seis horas, os ruralistas protagonizaram um espetáculo violento, misógino e sem nenhum respeito aos trâmites democráticos de uma CPI. Com o objetivo de garantir a quebra de sigilo de entidades identificadas como aliadas dos povos indígenas, quilombolas e meio ambiente, o que já foi impedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na primeira versão da comissão, o presidente da CPI, deputado Alceu Moreira (PMDB/RS), atropelou por diversas vezes o regimento interno.
"Não tem palavra de ordem"
"Eu corto seu microfone de novo"
"A senhora tinha questão de ordem, mas não tem mais"
"Não abro pra discussão decisão minha de indeferimento. Se quiser leve pra CCJ"
"Se a senhora não gosta de como presido, então não me coma"
São algumas das frases ditas por Moreira durante a sessão. outro ponto causou indignação: segundo o presidente da CPI, o regimento interno da Câmara determina que sessões que envolvam quebra de sigilo devem ser secretas, mas o plenário era soberano para decidir se seriam abertas. Constrangidos, nem mesmo os ruralistas foram favoráveis à sessão secreta – embora tivessem agido de forma oposta na CPI anterior.
Com ampla maioria na CPI, dominando todos os cargos da mesa – a presidência, as três vice-presidências e a relatoria estão com deputados ruralistas que votaram a favor do relatório da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 na comissão especial, em 2015 – os ruralistas têm liberdade para escolher quais os requerimentos que chegam ou não à pauta da CPI.
O que motiva as reclamações de autoritarismo e parcialidade é que nada menos que 79 requerimentos protocolados na comissão, grande parte deles pela minoria não-ruralista, foram ignorados: Moreira, o presidente do tribunal de exceção que se transformou a CPI, pulou direto para os requerimentos de quebra de sigilo bancário e fiscal de entidades indigenistas.
“Essa CPI começa no leito da ilegalidade, sem fato determinado, construída na mais profunda truculência com o objetivo de dar suporte à PEC 215, ou seja, com a intenção nítida de impedir que haja homologação de terras indígenas e quilombolas no país”, critica a deputada Erika Kokay. “Ela tem na sua gênese um profundo autoritarismo, nasce colidindo com a Constituição e exacerbando um processo de exceção que nos lembra a época da Ditadura”.
“A bancada ruralista está utilizando do instrumento da quebra de sigilo para intimidar organizações que têm um papel importante e histórico na defesa da causa indígena. Por outro lado, a presidência da CPI não pauta outros requerimentos de quebra de sigilo ou de convocação de pessoas que trabalham, que têm histórico e que tem processos inclusive de violência contra povos indígenas”, criticou o deputado Nilto Tatto (PT/SP).
Diligências sob suspeita
Após mostrar a foto de um helicóptero e perguntar se Alceu Moreira e Nilson Leitão (PMDB/MT) a reconheciam, o deputado Glauber Braga (PSOL/RJ) perguntou: “Foi utilizado um helicóptero da empresa Serra Grande Assessoria Agropecuária para a realização de algum tipo de diligência ou de deslocamento dos senhores para tratar de algum tema relativo a essa comissão?”.
A foto está num dos requerimentos ignorados pelos ruralistas e trata de um helicóptero privado utilizado para uma das diligências da primeira edição da CPI da Funai e do Incra, em 2016, que foi concluída sem um relatório final. Moreira e Leitão entraram em contradição nas respostas; enquanto o relator, no susto, dizia não temer os requerimentos, o presidente afirmava que as indagações tinham sido respondidas.
“Querem quebrar o sigilo para exercer uma atividade policial de repressão a movimentos sociais. Agora, quando se fala numa empresa que efetivamente tem requerimento para ser colocado em votação, não se coloca. O que se vê aqui é um tribunal de exceção para criminalizar inimigos”, afirmou o deputado Glauber Braga.
Os deputados e deputadas da minoria chegaram a organizar um requerimento para incluir na pauta os pedidos ignorados pela presidência. Alceu Moreira afirmou que o requerimento seria apreciado depois da pauta, mas a sessão foi encerrada antes. Enquanto parte dos requerimentos era ignorada, um requerimento de votação dos próprios ruralistas teve que aguardar duas horas e vinte minutos até que a bancada anti-indígena formasse o quórum mínimo para votação, de 16 pessoas.
Este longo período foi ocupado com debate ideológico e a defesa de teses ruralistas acerca dos direitos indígenas. O deputado Valdir Colatto (PP/SC) chegou a insinuar que os indígenas seriam os verdadeiros latifundiários do Brasil – "ocupando 13% do território nacional, enquanto o agronegócio ocupa 8%". Segundo seu cálculo, “cada família indígena no Brasil hoje tem 860 hectares”.
“Veja, senhor presidente, quem que são os latifundiários do Brasil”, afirmou, antes de explicar a sua matemática: o deputado comparou o número de hectares demarcados ou em estudo pela Funai com a população indígena total no Brasil – 896 mil pessoas, segundo o IBGE/2010, mas sem considerar as particularidades da ocupação territorial indígena e tampouco as diferenças regionais.
A sessão acabou com um requerimento de quebra de sigilo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) aprovado, mas outros três não puderam ser apreciados atingindo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Instituto Socioambiental (ISA) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Os ruralistas, com dificuldade de mobilizar seus correligionários, não conseguiram formar quórum para votação, e a sessão teve que ser encerrada, depois de seis horas, em função da ordem do dia no plenário da Câmara.
Sincericídio
Colatto cometeu, nas palavras da deputada Erika Kokay, um "sincericídio" sobre as reais intenções da quebra de sigilo de entidades indigenistas. "Quero saber também quem financia o Greenpeace, de onde vem o dinheiro deles", disse o deputado ruralista se referindo ao fato da organização se opor ao Projeto de Lei 6268, de autoria do parlamentar, que prevê a regulamentação de manejo, controle e exercício de caça de animais silvestres.
"Então o Greenpeace discorda de um PL do deputado e ele quer quebrar o sigilo do Greenpeace. Cita ainda essa CPI como exemplo. O sincericídio do deputado revela que pelo fato do Cimi, do ISA, do CTI e da ABA defenderem as demarcações de terras indígenas merecem investigações abusivas, perseguição, criminalização. Ou seja, eu utilizo de uma CPI para perseguir quem tem uma divergência comigo", denunciou Erika Kokay.
A parlamentar frisou ainda que Colatto transformou a bancada ruralista em réu-confessa: "Argumento que os indígenas têm mais terras que os latifundiários. É preciso que eles não tenham tanta terra! Os indígenas possuem 13% das terras e nós só temos 8%? Não pode. Isso para mim é o argumento do réu-confesso e a demonstração de que esta CPI é uma farsa".