Autonomia ao povo Ka’apor e contra a criminalização de seus aliados
Crédito: Madalena Borges/Cimi-MA
“Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão”
As entidades abaixo assinadas têm acompanhado os constantes relatos de violência contra o povo Ka’apor e seu território e, especialmente, a partir do assassinato do indígena Eusébio, ocorrido em abril de 2015.
Em diálogo recente com o Conselho Gestor Ka’apor, viemos a público manifestar primeiramente o nosso apoio total e irrestrito ao Projeto de Vida do povo Ka’apor que vem sendo tecido/construído no território Alto Turiaçú, desde 2013, e que tem permitido a discussão e implementação de sua autonomia e organização própria, enquanto povo indígena específico e diferenciado – direitos que lhes são constitucionalmente reconhecidos e que o Estado brasileiro continua a desrespeitar sistematicamente.
O referido Projeto de Vida Ka’apor construiu um modelo de fiscalização e proteção territorial, com guardas florestais fechando ramais deixados por madeireiros; possibilitou a criação de novas aldeias num processo de reocupação e reordenação do território; orientou os indígenas nas práticas de novas roças nos lugares degradados, garantindo alimentação saudável; avançou para a criação de um espaço de autonomia consistente no Conselho de Gestão, lugar de tomada de decisões políticas e de um acordo de convivência do povo dentro do território, na estruturação do Centro de Saberes Ka’apor, com repercussão positiva nos indicadores da educação escolar indígena na perspectiva intercultural, contando com a colaboração de aliados importantes, sem o quais tais avanços no plano da organização política não seriam possíveis.
Percebemos como o povo Ka’apor vem construindo um modelo de resistência indígena que se destaca por se distanciar da lógica de cooptação política de lideranças, da tutela absoluta e da dependência estatal e sobretudo impedindo a consolidação da exploração madeireira no seu território.
Constatamos que esse projeto de resistência começou a ser implantado a partir da construção desses espaços de autonomia que romperam com a realidade anterior, onde prevalecia a venda de madeira pelos próprios indígenas, a intrusão de madeireiros por todo o território, o alcoolismo, disputas internas e mendicância, dentro do contexto histórico de política públicas ineficientes.
Graças a esse projeto político e organizacional, o povo Ka’apor recuperou sua autoestima, revitalizou práticas de produção sustentáveis, passou a valorizar com mais força suas festas tradicionais e resgatou suas formas de organização tradicionais, baseadas na liderança Tuxá e não na imposição de caciques (organização imposta pela colonização).
Vemos com preocupação que exatamente os principais aliados desse projeto libertador estejam figurando como alvos de uma campanha de criminalização e de desqualificação que tem servido somente para fragilizar a autonomia da luta dos Ka’apor, traduzindo divergências internas de concepção de mundo por tipificação penal, abrindo espaço para uma perigosa "jurisprudência" de banimento e expulsão de colaboradores e aliados da luta indígena, que fatalmente atingirá a todos os que divergem das chamadas "razões de Estado" daqui por diante.
Nesse sentido, exatamente os colaboradores mais próximos da luta dos Ka’apor, que irradiavam seus trabalhos a partir do Centro de Saberes Ka’apor são as vítimas mais recentes desse processo de criminalização em processos cíveis e criminais: José Mendes de Andrade, Simone Moraes Coelho, Maria Raimunda Oliveira Trindade e Eloi Filho Rocha Oliveira. Eles têm em comum coincidentemente a divergência política com a FUNAI e DSEI/SESAI dos seus métodos de gestão, mas estavam do lado dos indígenas Ka’apor quando, a partir do final de 2015, foram vítima de emboscadas, disparos de armas de fogo, invasões dos territórios por madeireiros e durante todo o acompanhamento do processo que nunca investigou satisfatoriamente a morte do líder Eusébio.
Em diálogo recente, com o Conselho Gestor Ka’apor, confirmamos que a maioria do povo (13 das 17 aldeias) reconhece e apoia a contribuição de José Mendes de Andrade e dos outros aliados nesse projeto de construção da autonomia, ao contrário do que dá a entender a curiosa produção documental nos processos de criminalização e a campanha de desqualificação em curso.
Diante do exposto repudiamos a tentativa de criminalização desses verdadeiros defensores dos direitos humanos indígenas, seja no bojo de processos criminais que apuram com celeridade a morte de madeireiros, seja em processos cíveis, onde os órgãos do governo federal revelam a explícita intenção de expulsar e de impedir a entrada dessas pessoas em todos os territórios indígenas do país, sem nenhum outro fundamento que não o de supostamente liderarem a ocupação de um imóvel do DSEI na cidade de Zé Doca, num ato de protesto que envolveu dezenas de indígenas, de várias aldeias, que lutavam pela melhoria do atendimento de saúde em suas comunidades..
Nesse sentido, juntos continuaremos trabalhando para que:
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O povo Ka’apor seja respeitado e possa resolver ele próprio e internamente seus problemas enquanto povo autônomo;
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O Projeto de Vida do povo Ka’apor tenha continuidade com os indígenas tendo toda autonomia para tomar as decisões;
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Seja garantido o direito de defesa a José Mendes de Andrade no processo criminal e para Simone Moraes Coelho, Maria Raimunda Oliveira Trindade e Eloi Filho Rocha Oliveira no Processo Cível, todos militantes da causa indígena do Maranhão e que até o presente momento fizeram por merecer o nosso respeito e o da grande maioria do povo Ka’apor.
São Luís, 23 janeiro de 2017.
Conselho Indigenista Missionário – Regional Maranhão
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos
Comissão Pastoral da Terra – Regional Maranhão
Cáritas Brasileira – Regional Maranhão
Pastoral da Criança – MA
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu- MIQCB
Centro de Estudos Bíblicos do Maranhão – CEBI-MA
Rede Mandioca
Jornal Vias de Fato
Justiça Global
Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade da UFMA- NUPEDD/UFMA
Laboratório de Estudos sobre Espaço Agrário e Campesinato – LEPEC
Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão
Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia
Articulação parceira para o Monitoramento dos DH no Brasil (MNDH; PAD e Parceiros de Misereor no Brasil)
Movimento Quilombola do Maranhão – Moquibom