Conselheiros indígenas do CNPI protestam contra alteração no sistema de demarcações de terras no governo Temer
Crédito das fotos: Ana Mendes/Amazônia Real
Brasília – Os conselheiros indígenas do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) suspenderam na sexta-feira (25) a 3ª Reunião Ordinária, que acontecia no Salão Negro do Ministério da Justiça, em Brasília, em protesto contra as propostas apresentadas pelo governo do presidente Michel Temer sobre a alteração no processo de demarcação de terras indígenas e sobre a reestruturação da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A reestruturação da Funai prevê, conforme apurou a reportagem, um novo arranjo na estrutura da fundação, que inclui uma eventual transferência do Departamento de Proteção Territorial, responsável pelo sistema de demarcação das terras indígenas, para a Casa Civil, hoje chefiada pelo ministro Eliseu Padilha.
Conselheiro do CNPI, o indígena Marcos Apurinã, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), disse a Amazônia Real que causou surpresa à Bancada Indígena o comunicado da secretária-executiva do CNPI, pelo Ministério da Justiça, Teresinha Gasparin Maglia, de que 19 processos de regularização de terras indígenas foram restituídos pela Casa Civil da Presidência da República ao Ministério da Justiça com recomendações de alterações e diligências para a Funai executar.
A maioria dos processos de terras indígenas devolvidos são alvo de conflitos fundiários com fazendeiros, madeireiros, empreendimentos imobiliários, como hotéis, ou serão afetadas por obras de barragens de hidrelétricas. Essas áreas somam 792.369,54, conforme a planilha que a reportagem teve acesso. Nove terras indígenas estão situadas em estados da Amazônia, uma em Alagoas, duas na Bahia, um na Paraíba, cinco em Santa Catarina e uma no Rio Grande do Sul.
Um dos processos de homologação devolvido pela Casa Civil está o da Terra Indígena Xukuru-Kariri, em Palmeira dos Índios, em Alagoas. O processo de regularização da área começou em 2009. Em 29 de julho de 2013 um decreto já havia alterado os limites da área de 7.020,43 hectares por determinação do Ministério da Justiça, que suspendeu a demarcação. Na ocasião, os índios Xukuru-Kariri denunciaram que a alteração no processo de regularização da terra “acatou os pedidos dos senadores Renan Calheiros (PMDB) e Fernando Collor (PTC)”, ambos de Alagoas e aliados do presidente Michel Temer. Leia mais
“Repudiamos isso (as alterações nos processos). Entendemos que o retrocesso está muito visível, está demais e pedimos explicações ao ministro da Justiça [Alexandre de Moraes] para nos dar uma resposta sobre esses processos devolvidos”, disse Marcos Apurinã.
Dos processos de terras indígenas devolvidos, conforme uma planilha que foi apresentada aos conselheiros indígenas do CNPI, 13 são de áreas já homologadas, sendo que a maioria dependia do decreto do presidente Michel Temer ou do ministro Alexandre Moraes para ter finalizado o processo de regularização das terras. Essas terras somam 342.947,12 hectares.
Veja a lista abaixo:
Terra Indígena (TI) Arara do Rio Amônia, da etnia Arara (com 20.534,22 hectares), do Acre;
TI Acapuri de Cima, da etnia Kokama (19.885,03 ha), no Amazonas;
TI Xukuru-Kariri, do povo Xukuru-Kariri (7.020,43), de Alagoas;
TI Aldeia Velha, da etnia Pataxó, (1.997,55 ha) na Bahia;
TI Baia dos Guató, do povo Guató (19.216,96 ha), e TI Manoki, da etnia Irantxe (250.539,82 ha), ambas no Mato Grosso;
TI Potiguara de Monte-Mor, do povo Potiguara (7.530,59 ha), da Paraíba;
TI Rio dos Índios, da etnia Kaingang (711,70 ha), no Rio Grande do Sul;
TI Morro dos Cavalos, das etnias Guarani Mbyá e Ñandéva (1.983,49 ha), TI Pindoty (3.272,59 ha), TI Piraí (3.010,20 ha) e TI Tarumã (2.161,55 ha), ambas do povo Guarani, além da TI Toldo Imbu, da etnia Kaingang (1.960,69 ha), ambas em Santa Catarina.
Na planilha dos processos devolvidos pela Casa Civil constam ainda seis áreas identificadas, que ainda passarão pela demarcação física das terras e a homologação. Elas somam juntas 448.422,41 hectares: TI Tumbalalá, do povo Tumbalalá (44.978 ha), na Bahia; TI Apiaká do Pontal dos Isolados, das etnias Apiaká (982.324 ha), Munduruku e Isolados, e TI Paulalirajausu, do povo Nambikuára (8.400 ha), ambas no Mato Grosso; TI Kanela Memortumré, da etnia Kanela Ramkokamekra (100.221 ha), no Maranhão; TI Maró, do povo Arapium e Borari (42.373 ha), no Pará; e TI Tuwa Apekuokawera, das etnias Suruí e Aikewar (11.764 ha), no Tocantins.
A reportagem da Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa da Casa Civil da Presidência da República para que a pasta esclarecesse como será a reestruturação da Funai e o motivo pelo qual devolveu os 19 processos de regularização de terras indígenas. As perguntas enviadas por e-mail não foram respondidas até a publicação desta reportagem.
A assessoria de imprensa do Ministério da Justiça confirmou que a Casa Civil devolveu os 19 processos de terras indígenas, mas disse que a única pessoa que poderia falar sobre o caso seria a secretária-executiva do CNPI, Teresinha Gasparin Maglia. Segundo o órgão, contudo, ela ainda analisa cada processo, o que a impede de comentar que tipo de alteração o Palácio do Planalto pediu para a Funai executar.
Procurada, a assessoria da presidência da Fundação Nacional do Índio deu a seguinte declaração por meio de nota: “Todos os esclarecimentos sobre o contido nas indagações [da reportagem sobre os processos devolvidos] foram prestados quando da reunião ordinária última do Conselho Nacional de Política Indigenista, nada havendo a ser acrescido”.
Marcos Apurinã diz que, diferentemente do que a Funai informou à reportagem, não foi esclarecido durante a 3º Reunião Ordinária do CNPI o motivo da devolução dos 19 processos de terras indígenas pela Casa Civil para a Funai. “De fato são 19 processos de terras indígenas que foram devolvidos pela Casa Civil para a Funai. Como é governo novo, não sabemos como serão as alterações. Ainda não conhecemos essas novas recomendações dos processos. Isso é um problema muito sério”, avaliou Marcos Apurinã.
Kum’Tum Gamela em Brasília
Reestruturação da Funai
Marcos Apurinã disse também que um representante do Ministério da Justiça, presente à 3ª. Reunião Ordinária do CNPI, confirmou que está em curso a elaboração de um decreto que prevê a reestruturação da Funai com cortes no orçamento, previsto pela PEC do Teto dos gastos públicos, que foi aprovada nesta terça-feira (29) pelo Senado. Em 2016, o orçamento da fundação é de R$ 542,2 milhões.
“Sentimos que esse governo tem um movimento sem respeito à Bancada Indígena do CNPI. É uma imposição deles essa reestruturação da Funai. No mínimo, deveriam ter apresentado um novo modelo de reestruturação da Funai ao CNPI, já que dizem que o problema é de recursos humanos, mas não é só isso. Um decreto sairá, até 15 de dezembro, com uma reestruturação maior. Achamos que não devíamos continuar com a reunião e paramos. Não estão ouvindo a Bancada”, disse Marcos Apurinã.
O Conselho Nacional de Políticas Indigenista é um órgão colegiado de caráter consultivo e responsável pela elaboração, acompanhamento e implementação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas. Ele foi criado pelo governo, em 2015, na administração da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), e é composto por 45 membros, sendo 28 representantes dos povos e organizações indígenas, com 13 deles tendo direito a voto nas reuniões deliberativas. Nas redes sociais a Bancada Indígena protestou. Veja o vídeo.
Crédito da foto: Marcelo Camargo (Agência Brasil)
O Marco Temporal
Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e vice-presidente do CNPI, disse que “o cenário está muito frágil e que tende a piorar”.
“Tanto no Congresso Nacional quanto no Executivo. E, aliás, no próprio Judiciário com a questão do marco temporal [leia mais embaixo] na demarcação das terras indígenas. Eles estão utilizando o marco temporal como um mecanismo certo. Isso coloca todo mundo em um estado de insegurança. Você junta o Judiciário, o Executivo e o Legislativo com todas as medidas anti-indígena, o que dá isso aí? Tudo muito junto no sentido de retroceder e suprimir direitos. Então, isso requer muita força, resistência e mobilização nossa”, afirma Guajajara.
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal deu por encerrado o processo da demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na sentença foram apontadas 19 condicionantes e outros pré-requisitos para que se cumprisse a homologação da TI com mais de 1,7 milhão de hectares, feita à época pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A tese do marco temporal para a demarcação da TI Raposa Serra do Sol tomou como base conceitos estabelecidos na Constituição brasileira promulgada em 5 de outubro de 1988. Para o STF, os povos indígenas têm direito à posse de seus territórios tradicionais, mas com a condição que a comunidade já esteja ocupando efetivamente o local nata da Constituição de 1988. Esta interpretação é criticada por juristas. Leia mais aqui.
Hoje, terras indígenas em avançado processo de demarcação estão sendo questionadas com base nesse marco temporal. Alguns ministros querem aplicar a tese de maneira generalizada, mas o STF não tem unanimidade quanto ao tema.
O efeito dominó que poderá causar a aplicação desse precedente, no judiciário brasileiro, preocupa também a liderança indígena Inaldo Kum’Tum Gamela, do Maranhão, estava em Brasília essa semana para protestar contra a PEC 55 do teto dos gastos públicos, que foi aprovada nesta terça-feira (29) no Senado. Ele conta que um grupo de lideranças indígenas se reuniu com membros dos ministérios da Justiça, Saúde, Casa Civil, Secretaria de Governo, Gabinete de Segurança Institucional e Secretaria de Articulação Social há cerca de quatro dias. Na ocasião, segundo ele, foi apresentada a preocupação com relação a uma possível mudança do procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas com o argumento do marco temporal.
“A resposta que foi dada pelo ministro Alexandre de Moraes [Justiça] é a de que, em função do desconhecimento da situação da Funai no que diz respeito aos processos [demarcatórios], foi determinado que até o final deste mês, novembro, que seja realizado um pente fino na Funai para que eles tomem conhecimento de todos os processos que estão em tramitação. E qualquer mudança legislativa e qualquer ação por parte do governo só seriam tomadas após a conclusão desse trabalho. Foi a única resposta que foi dada”, disse Gamela, que considerou a resposta um “desrespeito”.
“Nós não estamos tratando com governos, a gente trata com o Estado. São políticas de Estado, não é o governo que decide se vai fazer ou não. Dizer que não conhece a demanda é um desrespeito a toda a luta que foi feita. Um desrespeito a memória de parentes que foram assassinados e continuam sendo assassinados. É uma resposta cínica, cretina e irresponsável por parte do ministro da Justiça”, completou Gamela.
A iminente de perda de direitos já conquistados da demarcação das terras indígenas mobilizou integrantes do movimento indígena nacional. Douglas Kaingang, representante do Rio Grande do Sul no CNPI, faz um breve apanhado das iniciativas que preocupam todos os povos do país.
“A PEC 215 e a mudança no processo administrativo de demarcação com certeza afetam não só o Rio Grande do Sul, mas o contexto brasileiro como um todo. Quando você, deliberadamente, joga para o Legislativo a incumbência de demarcar as terras indígenas, num estado em que tem os parlamentares da bancada ruralista e que são contra os povos indígenas, é difícil ter êxito no processo de reconhecimento territorial para os povos indígenas. Então, modificando o processo administrativo, a gente dificilmente demarcaria alguma terra indígena”, ressaltou ele.
Douglas Kaingang disse que, paralelo à PEC 215, a Portaria 303 é outro motivo de preocupação, pois afeta diretamente terras que estão ingressando no processo de ampliação.
“A Portaria 303, de modo prático, impede que as terras tenham ampliação. E revê aquelas que já foram remarcadas. Ela vem no bojo do marco temporal, porque a Portaria 303 traz as condicionantes para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, disse Douglas Kaingang.
A Portaria 303 foi editada em 2012 pela Advocacia Geral da União (AGU). Além de versar sobre a atuação de advogados públicos em casos judicializados de demarcação de TIs, pretende que as 19 condicionantes da demarcação da TI Raposa Serra do Sol, de Roraima, sejam aplicadas de maneira generalizada. Entre elas, a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas.
Raposa Serra do Sol, Terra Indígena que fica no estado de Roraima, foi julgada em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal. Na época, houve muita dificuldade de chegar a um acordo sobre as dimensões da futura TI. E por isso, uma série de pré-requisitos e condicionantes foram fixadas pelo STF. A proibição de ampliar terras já demarcadas e o Marco Temporal, citados anteriormente, fazem parte dessa lista. Essas exigências não deveriam ter validade para outros julgamentos. A própria ementa do Acordão da Petição 3.388, disponível online para consultas, pontua isso claramente. O problema é que alguns ministros querem aplicar a tese do Marco Temporal, principalmente, de maneira generalizada. Eles sugerem que a data de ocupação eleita naquele caso passe a valer para todas as demarcações de TI no país.
O Marco Temporal escolhido para viabilizar a homologação da TI Raposa Serra do Sol com seus 1,7 milhão de hectares tal qual o presidente em exercício, Luiz Inácio Lula da Silva, havia assinado, foi o dia da promulgação da Constituição Federal. Portanto, as terras ocupadas em 5 de outubro de 1988 seriam incluídas no território de Raposa. Embora o próprio STF não tenha um consenso sobre a aplicação dessa data para outros casos de litígio de terras envolvendo indígenas e não-indígenas, esse argumento tem ganhado força no cenário político.
Atualmente a etnia mais afetada são os Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. A primeira Terra Indígena, e única até agora, derrubada sob argumento do Marco Temporal foi Guyraroká, no município de Caarapó (MS).
Em 2014, o STF negou o direito à posse do território Guyraroká aos Guarani-Kaiowá com base no Marco Temporal. A decisão da 2ª Turma do STF, atendendo pedido de um fazendeiro, anulou a portaria do Ministério da Justiça que havia reconhecido, em 2009, a TI como ocupação tradicional indígena. Leia mais aqui.
Embora o próprio STF não tenha um consenso sobre o tema, essa tese tem ganhado força de maneira generalizada no cenário político. “Mesmo que não exista ainda no papel como lei, lá no Mato Grosso do Sul ela já é praticada na verdade. Veja a questão de Guyraroká, de Limão Verde, dos índios Terena, e de Cerro Marangatu. Então, esse é o primeiro ponto.”, afirma Elizeu Lopes, liderança Guarani-Kaiowá.
Contra militares
Também sem resolução aparente para este ano, o imbróglio que envolve a atual presidência da Funai, que conta atualmente com o substituto Agostinho do Nascimento Netto. Os indígenas temem que a cadeira seja ocupada por um militar ou um membro da bancada evangélica, tendo em vista o recente pleito da vaga pelo Partido Social Cristão (PSC) e as indicações dos generais Sebastião Roberto Peternelli Júnior e Franklimberg Ribeiro de Freitas para o cargo.
Marcos Apurinã marca a postura do movimento indígena quanto ao assunto e afirma que “é o momento de colocar um indígena [na presidência].”
“Já se passaram 500 anos e a gente nunca chegou lá e toda vez que a gente indica o nome de um indígena dizem que ‘não é o momento’. Esse momento nunca chegou”, desabafa Marcos Apurinã, que é conselheiro do CNPI pelo estado de Rondônia.