Audiência pública discutiu recomendações da ONU sobre direitos indígenas no Brasil
Por Tiago Miotto (DF), com informações do MPF
Durante quase dez horas, mais de 400 indígenas de diversos povos e regiões do Brasil debateram, junto com autoridades, membros do Ministério Público Federal (MPF) e de organizações da sociedade civil as recomendações da relatora especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), Victoria Tauli-Corpuz, para o Estado brasileiro, após sua visita ao Brasil, em março deste ano. A discussão ocorreu durante a audiência pública realizada no auditório da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, na última quinta-feira (10).
Em meio a tantas urgências e violações de direitos e numa semana movimentada pela forte mobilização dos povos indígenas em Brasília, os temas abordados pela relatora misturaram-se a denúncias mais recentes e a pautas apresentadas pelas diversas lideranças presentes. A falta de recursos na Funai, a preocupação com uma iminente reintegração de posse contra o povo Pataxó, no extremo sul da Bahia, e a indignação com a recente nomeação de um coronel reformado e fazendeiro para a coordenação da Funai em Campo Grande (MS) foram motivos de protesto dos indígenas durante o evento, assim como a lembrança, pelo povo Krenak, da passagem de um ano do crime ambiental da Samarco no Vale do Rio Doce.
Membros dos ministérios do Meio Ambiente, da Justiça e da Cidadania e da Casa Civil, além de secretários de governos estaduais, também participaram da mesa e prestaram esclarecimentos acerca de políticas voltadas aos povos indígenas e tiveram suas colocações, em muitos casos, questionadas frontalmente pelos próprios indígenas.
Foi o caso das observações do assessor especial do Ministro da Casa Civil, Renato Rodrigues Vieira, sobre a possibilidade de se “rediscutir” os procedimentos de demarcação de terras indígenas, cuja paralisação foi apontada por Victoria Tauli-Corpuz como uma das violações mais graves em relação aos direitos dos povos indígenas no país.
“O problema da demarcação das terras indígenas não é questão de procedimento, e sim de recursos. Existe uma perspectiva de retirar cargos e extinguir Coordenações Técnicas Locais e Coordenações Regionais. Se fizer isso, quem vai sofrer vão ser as aldeias”, criticou o indígena Dinamam Tuxá, que participou de uma das mesas de discussão.
A liderança questionou também a fala do presidente interino da Funai, Agostinho do Nascimento Netto, que, apesar de reconhecer a falta de recursos, afirmou que não haveria uma política de sucateamento do órgão. “Eu convido o presidente a ir visitar as aldeias e ver se há ou não uma política de enfraquecimento da nossa instituição. Porque ela [Funai] é nossa”, propôs o indígena.
As recomendações presentes no relatório de Tauli-Corpuz dividem-se em alguns eixos principais: direito à vida, violência e discriminação racial; autodeterminação, dever de consultar e consentimento livre, prévio e informado; impactos de projetos de desenvolvimento; acesso à Justiça; capacidade dos órgãos governamentais e direitos territoriais, ligados especialmente à demarcação e proteção dos territórios tradicionais dos povos indígenas.
Funai sem recursos, demarcações paralisadas
A demora na demarcação das terras indígenas e a falta de recursos para que a Funai realize os trabalhos de identificação, delimitação e fiscalização dos territórios tradicionais dos povos originários foram itens apontados como causas centrais para os conflitos e a violência envolvendo os povos indígenas no Brasil.
Atualmente, há pelo menos 348 terras indígenas sem nenhuma providência por parte da Funai e outras 175 em meio ao processo de identificação e delimitação, primeira etapa para da demarcação e que depende diretamente de estudos realizados pela Funai. Conforme aponta o relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil – dados de 2015, apenas 35% das terras indígenas do Brasil já tiveram seu processo demarcatório concluído.
Mesmo estas terras, entretanto, não se encontram sob segurança: conforme explicou o Diretor de Proteção Territorial da Funai, Walter Coutinho, em 2016 o órgão dispôs de apenas R$ 4,5 milhões para realizar a proteção e fiscalização de cerca de 1200 terras indígenas – entre terras demarcadas, em processo de demarcação ou ainda sem providências da Funai para sua delimitação.
O recurso esgotou-se no meio do ano, e verbas de outras áreas, como a destinada para a regularização das demarcações, tiveram que ser remanejadas – mesmo assim, o orçamento foi zerado novamente em novembro. O baixo contingente orçamentário, que deve ser o menor dos últimos dez anos em 2017, soma-se à falta de pessoal para cumprir as funções básicas do órgão indigenista oficial e acaba por emperrar demarcações e colocar indígenas em risco.
“É evidente que a demarcação de terras indígenas é necessária, e para isso é preciso que se cumpra aquilo que está na legislação. Não há necessidade de mudar o que está previsto nas normas legais do nosso país. O que é necessário é que haja recursos financeiros e humanos necessários para que os procedimentos avancem”, afirmou em sua fala o Secretário Executivo do Cimi, Cleber Buzatto.
“No Brasil, é perigoso ser liderança indígena”
O secretário executivo do Cimi também destacou como pontos importantes do relatório de Victoria a recomendação de que o Estado brasileiro adote medidas para proteger a vida de lideranças indígenas e puna os responsáveis pela violência e pelos assassinatos de indígenas. “No Brasil, é perigoso ser liderança indígena”, afirmou Buzatto.
A atividade foi acompanhada, do início ao fim, pelo representante do Escritório de Prevenção ao Genocídio e Responsabilidade de Proteger da ONU, Davide Zaru, que também destacou a falta de confiança que os povos indígenas do Brasil têm no Estado e na polícia, em muitos casos envolvida diretamente nas violações e na violência contra comunidades em ações de despejo ou de repressão.
Saúde indígena
A forte mobilização dos povos em defesa da saúde indígena e contra o desmonte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) também foi uma das pautas da audiência. Após mais uma semana de forte mobilização em torno deste tema, o Ministro da Saúde, Ricardo Barros, anunciou durante a audiência a criação de um Grupo de Trabalho que vai contar com membros do Ministério da Saúde, das organizações indígenas e dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi), colegiados regionais de controle social e fiscalização da saúde indígena.
Recentemente, Barros havia editado uma portaria que retirava a autonomia da Sesai e, na prática, inviabilizava sua atuação. Depois de intensas manifestações dos povos indígenas no Brasil inteiro, a portaria foi revogada.
Comissão Nacional da Verdade sobre povos indígenas
Em sua fala, o procurador da República no Mato Grosso do Sul, Marco Antônio Delfino, citou uma série de notícias da década de 1980 que mostravam a expulsão de indígenas de suas terras. As notícias demonstram a incoerência da tese do marco temporal, utilizada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) para anular demarcações de terras indígenas, segundo a qual só poderiam ser demarcadas as terras sob posse dos indígenas no ano de 1988.
A tese foi aplicada pela primeira vez no julgamento do caso Raposa-Serra do Sol e é também criticada no relatório de Victoria Tauli-Corpuz. Uma das recomendações da relatora da ONU é “assegurar que todas as cortes tenham uma clara e uniforme interpretação das limitações” deste julgamento e de sua “inaplicabilidade para adeterminação de ordens de despejos dos povos indígenas ou para a paralização dos processos de demarcação”.
“O impedimento de se punir de forma adequada esse tipo de violação faz com que ela seja permanentemente repetida”, afirmou Delfino, referindo-se às expulsões e violências ocorridas antes da Constituinte de 1988. Para o procurador, é necessário instaurar uma Comissão Nacional da Verdade sobre as violações de direitos indígenas, “para que não tenhamos mais o STF desconhecendo violências que foram cometidas sistematicamente em relação aos povos indígenas e dando a esses crimes que aconteceram um tratamento menor”.
Conflitos no Mato Grosso do Sul
A situação aguda de conflitos e de violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul, decorrente da morosidade na demarcação das terras indígenas, foi destacada por Davide Zaru que merecem especial atenção das autoridades brasileiras.
Elson Canteiro Gomes, liderança Guarani Kaiowá que participou da mesa de debate, defendeu a legitimidade das retomadas realizadas pelos indígenas no Mato Grosso do Sul e exigiu urgência nos processos de demarcação, para evitar novas mortes e massacres como o acontecido recentemente em Caarapó, do qual ele é um dos sobreviventes.
“Chega de criminalizar as áreas de retomada, as lideranças. Nossa luta é por justiça verdadeira”, afirmou a liderança Kaiowá. “O governo tem que cumprir as leis que eles mesmos criaram. A demarcação é um direito nosso. Anos atrás a gente iniciou a retomada de nossos tekoha [lugar onde se é], e continuaremos fazendo a retomada de nossos territórios, pois é a única forma de garantir a vida e o futuro de nossas crianças. Se esperar a boa vontade do governo, a gente nunca vai ver isso acontecer”.
Mecanismos de acompanhamento
A relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca Brasil, Érika Yamada, ressaltou que é “preciso transformar o relatório em ações reais e concretas”, por meio do monitoramento das violações ligadas “à demarcação de terras, ao racismo, à violência, à perseguição e criminalização das lideranças indígenas e das pessoas que trabalham com povos indígenas”.
“Esta audiência foi germinal, um ponto de partida”, afirmou o coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (Sexta Câmara) do MPF e subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia. Segundo Maia, a Sexta Câmara criará um mecanismo de monitoramento e um sistema de indicadores para acompanhar a implementação das recomendações da ONU a respeito dos direitos dos povos indígenas no Brasil.
“A Sexta Câmara vai realizar o monitoramento da implementação das recomendações por meio dos grupos de trabalho existentes, ou com indicação de relatores temáticos, onde se fizer necessário, e dará continuidade ao diálogo pela efetiva realização, em consulta direta às comunidades indígenas, e às instituições locais”, afirmou o subprocurador-geral da República.
Em luta contra a PEC 55
No mesmo dia da audiência, pela manhã, lideranças indígenas de vários estados do país haviam realizado um ato em frente ao Ministério do Planejamento em protesto contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/55 (foto acima), que pretende congelar os investimentos sociais do governo por 20 anos e pode impactar gravemente a capacidade de atuação da Funai e a implementação de outras políticas públicas voltadas aos povos indígenas, como as da área da saúde e da educação.
Em meio a um cenário de falta de recursos e de ataques contra os direitos dos povos originários, a PEC 241/55 foi mencionada, em vários momentos da audiência pública na PGR, como uma das preocupações atuais dos povos indígenas.
“Viemos lutar contra essa PEC 241, que vem detonando com nossos direitos, não só dos povos indígenas, mas de toda a população também. Estamos fazendo nossa parte como indígenas, porque sabemos que essa PEC é muito prejudicial para nós. Conquistamos uma vitória com a revogação da portaria que acabava com a saúde indígenas, mas se essa PEC for aprovada, continuamos no mesmo barco, afundando. Só vamos nos ver livres se conseguirmos derrubar esta PEC também”, afirmou o cacique Xakriabá Domingos Nunes de Oliveira, liderança de um dos povos que participaram da manifestação.