21/11/2016

Missão do Sagrado Coração: Convivência junto aos povos indígenas do MS



O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (Jo 10,10)

“Para que sejam respeitados os povos indígenas, ameaçados na sua identidade e na sua própria existência”. Essa foi a prece que o papa Francisco fez em favor dos indígenas que historicamente são maltratados, excluídos, desprezados, massacrados, mortos. O Espírito Santo que conduz a história rumo a cristificação do universo e distribui os dons e carismas conforme a vontade do Pai e as necessidades da humanidade jamais deixou que os primeiros habitantes da tão sofrida América viessem a desaparecer, sendo que em meio a tanta opressão surgiram sempre vozes que se levantaram para os defender. Mesmo que por vezes parece que a busca pela ‘Terra sem males’ torna-se cada vez mais distante, a esperança de sua realização jamais se afastou do coração e dos ideais dos povos indígenas deste nosso imenso país.


Na certeza de que Deus está a encaminhar os nossos corações, em abril de 2016 nos é apresentado a proposta de viver com os povos indígenas do Mato Grosso do Sul pelo período de aproximadamente 15 dias. Tal proposta foi acolhida com abertura e alegria, sem muitas pretensões mas apenas o desejo de estar e viver com tal realidade que por vezes nos é apresentado tão distante e em extinção.

Sendo assim, após 14 horas de viagem chegamos a Campo Grande (MS), onde somos recebidos pelos missionários do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), e pelas Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida. Com uma fraterna acolhida e um profundo espírito missionários nos é apresentado um panorama geral e histórico da situação da população indígena no Mato Grosso do Sul. Pelo engajamento e pela emoção com que os envolvidos falaram, logo percebe-se que pela situação complicada, desafiadora e degradante há um profundo apelo evangélico que clama por libertação. Índios desaparecidos, muitos assassinados, famílias despejadas, crianças morrendo em consequência ao uso de agrotóxicos, um verdadeiro genocídio. Uma militarização formada por deputados, fazendeiros, meios de comunicação, força militar, guardas (jagunços) contratados por fazendeiros para “proteger as terras” e que matam os indígenas indiscriminadamente. Logo percebe-se que seria uma experiência inesquecível.  

Ao longo dos 11 dias, na medida em que se vive a experiência de conhecimento da cultura indígena, há um processo de desconstrução dos conceitos prévios que recebemos, uma abertura para uma compreensão humanizadora e a construção de um grande amor. Rapidamente se percebe que ali há um grande tesouro, por que vale a pena gastar a vida, na luta pela justiça, lado a lado com esse povo.  

Na região de Dourados vivem cerca de 45 mil indígenas, sendo que em sua maioria Guarani e Kaiowá, constituindo assim a segunda maior população indígena do país. No processo histórico os Guarani e Kaiowá foram expulsos seus tekoha (seu habitat natural, o que faz o Guarani ser o que ele é, é parte de sua identidade, é onde se vive e se comunica com o transcendente). Este processo de expulsão, mesmo tendo acontecido há décadas atrás, está fortemente registrado em suas memórias, transmitidas pela tradição oral. Foi um despejo muito traumático pela violência aplicada, sendo relatados do caminhão vir buscar e os que se recusavam a ir embora eram quebrados o calcanhar para não conseguirem mais caminhar. Expulsos de seus tekoha são obrigados a viver em reservas, como que ilhas cercadas por grandes fazendas que formam como que um mar de soja e cana de açúcar, que avança a cada dia diminuindo ainda mais seu território, e com o rápido crescimento demográfico torna-se pequeno para ter uma vida digna com seus ritos e cultura.

Os Guarani e Kaiowá pela situação a que foram obrigados viver, são sentenciados a morrer gradativamente esmagados pela ganância capitalista, do agrobanditismo, disfarçado de agronegócio. Como último suspiro de alguém que está prestes a morrer, e ainda existe uma chama de esperança que está fumegando, no ano de 2013 em uma reunião, os Guarani e Kaiowá decidem a morrerem retomando sua terra, inicia-se assim os processos de retomadas de seus tekoha, que continua até hoje lutando pacificamente pelo que lhes é de direito, mesmo que sejam assassinados em massa, como está acontecendo.

As retomadas vão muito além de voltar a sua terra ancestral. Retomar seu tekoha é reviver a cultura, os hábitos, as crenças, em um ambiente que lhes propicie viver e ser aquilo que são.  A consequência de estar fora de seu tekoha é a perda de identidade, perda de sentido para a vida, perca de perspectivas futuras.  Esses são os principais motivos que acorrem no uso de drogas, alcoolismo e o suicídio especialmente entre os jovens indígenas de 10 a 18 anos.  

Diante de tal realidade é impossível se fazer indiferente, pois vai além da capacidade de entender como pessoas que se dizem cristãos, dão tão pouco ou nenhum valor a vida, dom de Deus dado a todos, independente da raça, cultura ou da fé de cada um, uma vida é uma vida, e nada nem ninguém tem o direito de tirá-la.

Pergunta-se que desenvolvimento é esse que na busca pelo progresso de alguns, em benefício da nação de poucos, dá ao agronegócio o direito de matar, mutilar e destruir milhares de vidas dentre ela os Guarani e Kaiowá? Vidas tão preciosas, quanto a minha ou a sua, aos olhos do Pai Criador de tudo. Durante os diversos dias que estivemos em área, a situação mais desumana é de dona Damiana, uma senhora de 74 anos, viúva, que cuida de um neto. Com alguns parentes foi despejada de seu tekoha de três hectares, onde está o cemitério de sua família coberto pela cana.  Uma cena revoltante para quem acompanhou o despejo.


Mais de 60 policiais armados, apoiados por máquinas retroescavadeira e tratores, que destruíram e feriram não só os barracos mas história, a memória, o coração e a esperança de uma família que pela quinta vez é despejada. Tiram à força de sua terra, e são jogados na beira da estrada com seus poucos móveis encharcados com a chuva, pelas lágrimas do próprio Deus. É uma situação desoladora e revoltante. Como pode a ganância humana chegar a esse ponto?  A coragem da cacique  Damiana, faz de sua pequena estatura uma  gigante para todos que conhecem sua história de vida, esperança e luta. Como ela mesma diz “Eu só quero voltar para o meu tekoha, lá está toda minha família. Não importa que me matem, aqui fora do meu tekoha já estou morta, eu não posso sair daqui, eu pertenço a esse tekoha.

Nós, os Karai (homem branco), temos muito que aprender com os Guaranis e Kaiowá, que mesmo em meios a tantas injustiças, massacres, genocídio continuam com coragem e esperança de voltar a viver no seu tekoha e o sonho de encontrar a “Terra sem males” que já buscam a mais de 500 anos.

Ao concluir uma missão como esta, e voltar a nossas missão cotidianas é impossível se fazer indiferente a causa indígena, de não voltar o nosso coração, oração, e lágrimas a dor que este povo, nosso povo continua a sofrer. Que as preces de nosso Papa Francisco sejam ouvidas por Ñanderú Guasu, Criador do céu e da terra que nunca abandona o seu povo sofrido e escuta o gemido de seus amados filhos. Que nós como sociedade civil e como Igreja não tapemos os nosso olhos e não fechemos os nossos ouvidos a esta súplica. Deus dos pobres vem nos libertar desta escravidão! O desejo que permanece é de voltar e festejar no mba’e marangatu tomando chicha em meio a cânticos e danças.

Missionários do Sagrado Coração,

Adilson Gomes Teixeira, msc;

Eugenio Luedke, msc ;

Lucas Fonseca Machowsky, msc.


Fonte: Missionários da Congregação do Sagrado Coração
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