Atendendo a pedido da Justiça Federal, Cimi/MA entrega relatório sobre a saúde indígena do povo Awá Guajá
Foto: Cimi Regional Maranhão
Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação – Cimi
Quando o Ministério Público Federal (MPF) firma um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com algum órgão do governo federal concede prazos para a execução de demandas não atendidas. Em 2005, o MPF celebrou um TAC sobre a saúde indígena no Maranhão. Não atendido, um novo TAC foi firmado em 2011. Onze anos se passaram desde o primeiro termo e a 4ª Vara da Justiça Federal no estado solicitou ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), durante audiência pública ocorrida no dia 28 do mês passado (na foto), um relatório para saber quais determinações destes ajustes de condutas foram atendidas; e quais ainda seguem pendentes depois de uma década.
“O que vemos são prazos extensos para o governo federal não atender as demandas. Enquanto isso os indígenas passam por todo o tipo de privação e dificuldades, levando muitos a morrer sem atendimento ou a apresentar doenças sem nenhuma diagnóstico porque não há exames detalhados, médicos”, afirma a coordenadora do Cimi Regional Maranhão, Rosana Diniz. Mudanças estruturais ocorreram no âmbito da saúde indígena, desde 2005; o primeiro TAC foi firmado com a antiga Funasa, e depois refeito já com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Por conta das indefinições que se arrastam por uma década, o TAC foi extrajudicializado.
De acordo com o relatório apresentado pelo Cimi, a criação da Sesai, com Polos Bases e os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s), não garantiu aos povos indígenas do Maranhão, com destaque para os Awá Guajá e Ka’apor, melhorias consideráveis no atendimento e acesso à saúde diferenciada. Na Terra Indígena Caru e Awá, do povo Awá Guajá, por exemplo, a construção de postos de saúde em duas aldeias é uma demanda que há anos é cobrada. Mesmo criada por força dos povos indígenas e com um orçamento bilionário, a Sesai tem esbarrado em gestões incompetentes e pouco comprometidas com a saúde diferenciada.
“As equipes multidisciplinares de saúde não contemplam os povos. Faltam médicos e outros profissionais. O mesmo vale para o saneamento básico, inexistente e fonte de doenças, sobretudo entre as crianças. A saúde diferenciada, que está no TAC, não foi garantida como deve ser”, explica Rosana. A entidade atua há 16 anos junto aos Awá e em 2010 o Cimi propôs aos indígenas um audiência na Procuradoria Geral da República (PGR), em Brasília. A delegação enviada apresentou o histórico problemático da saúde indígena no estado.
O MPF então elaborou um novo TAC no ano seguinte, em 2011. Como a situação nas aldeias Ka’apor era ainda mais grave, uma Ação Civil Pública foi montada para que de forma imediata a Sesai atendesse os indígenas. A assessora técnica Vera Lopes dos Santos, do Departamento de Atenção à Saúde, da Sesai, se deslocou para o Maranhão “A Secretaria Especial de Saúde Indígena em conjunto com o DSEI Maranhão enviou uma equipe para realizar o diagnóstico da atenção à saúde dos Awá Guajá, do Polo Base de Santa Inês e formular as recomendações para serem implantadas nestas aldeias. A visita ocorreu entre os dias 3 e 12 de fevereiro de 2011”.
No entanto, conforme o relatório do Cimi, as informações técnicas do Relatório estão descritos em 20 pontos, todos na escuta e perspectiva dos profissionais da saúde. “Não há sequer um ponto que trata da escuta ou perspectiva dos indígenas, vítimas e sujeitos denunciantes das condições desumanas”, diz trecho do relatório elaborado pelo Cimi a pedido da Justiça Federal. na última sexta-feira, dia 7, representantes do Cimi se reuniram com procuradores do MPF para saber quais as providências serão tomadas quanto a outras questões não atendidas pelo TAC: caso dos portadores de deficiências, a documentação básica dos indígenas e um convênio com a mineradora Vale.
Foto: Laila Menezes/Cimi
Quando o direito vira mitigação
Chamou a atenção da equipe do Cimi as parcerias firmadas pela Sesai para a construção de postos de saúde. "Interessa saber por que os postos foram construídos em parceria com a Vale, tempo em que a mineradora amplia a sua Estrada de Ferro Carajás e a Funai não esconde que media um processo de negociação entre a mineradora e os indígenas, sob o argumento do órgão de que a “Vale é nossa parceira”. Tempo também em que os Awá, inclusive por meio de documentos, se manifestaram contra a ampliação da EFC Carajás, para a qual não foram consultados conforme leis vigentes (SIC)“, destaca trecho do relatório.
No documento, a equipe do Cimi ressalta que o valor das obras foi informado, mas não quanto do recurso veio da Vale; o Ministério da Saúde havia destinado recursos para a construção das estruturas. "A construção dos postos saiu como uma benesse/vantagem da Vale às comunidades Awá atingidas (pela ferrovia), numa espécie de mitigação, ou mesmo como um ‘acordo’ conseguido pelos indígenas”, afirma o relatório em outro trecho. "É visível a transferência de responsabilidade da SESAI/DSEI/FUNAI quanto aos direitos às políticas públicas de saúde, o que (…) confunde os indígenas sobre as competências e as responsabilidades do Estado nas ações de saúde”, critica o relatório.
Todavia, a construção dos postos não garante o atendimento adequado à saúde. Além da falta de médicos e outros profissionais, o TAC determinou que a Sesai deveria "contratar para as aldeias Awá e Tiracambu, até o final de 2011, um Agente Indígena de Saúde e um Agente Indígena de Saneamento, os quais deverão receber treinamento básico da equipe do DSEI e do Polo Base para iniciar suas atividades”. Tais contratos nunca foram firmados, bem como formação específica no campo do controle social: o conselho de saúde dos Awá, por exemplo, nunca se efetivou.
Soros, médicos, cosmovisão e documentação
A contratação de um médico, com carga horária de 40 horas semanais para atender todo o Polo Base de Santa Inês, também está no TAC. No entanto, quem atendeu a demanda foi o Programa Mais Médicos, com o envio de dois médicos cubanos às três aldeias Awá e Tenetehar/Guajajara. Ambos já se retiraram das aldeias com o fim do Programa. “Sem médicos, os doentes são levados para consultas em hospitais de Alto Alegre e Santa Inês. O agravante é a falta de transporte, outra questão presente no TAC e não resolvida”, destaca Rosana, coordenadora do Cimi/MA.
O relatório do Cimi enviado à Justiça Federal destaca a permanente falta de soro antiofídico nas aldeias, um pedido dos indígenas dado o aumento do número de picadas de cobra, e casos de mortes ocorridas pela falta de atendimento adequado de saúde. Duas mortes foram destacadas: "A indígena Ajrua e a morte de um menino de cinco anos, que fraturou o fêmur. O menino, segundo os Awá, teria desaparecido do hospital, em Santa Inês. Mais tarde se soube que o pai do menino, que fala pouco português, pediu carona a alguém para voltar com o filho para a aldeia Awá, pois estava cansado de ficar no hospital há mais de três dias sem atendimento para o filho”.
Tal como em vários povos, o nascimento de uma criança para os Awá deve respeitar uma cosmovisão específica e diferenciada. Se uma criança nasce pelas mãos do Sistema único de Saúde (SUS), nenhuma prática tradicional é respeitada: os familiares não podem entrar. "Com Awá recém nascido não se faz assim! Quando a mulher Awá tem seu filho, é a irmã dela que dá banho na criança ao nascer. É assim que Awá faz!”, diz Warixa’a Awa Guajá. Os indígenas também não concordam como os médicos examinam os pacientes, pedindo que os acompanhantes se retirem e adotando metodologias não explicadas aos Awá. Em muitos casos, por falta de documentação, os indígenas são impedidos de entrar no hospital.
Sobre as crianças nascidas com algum tipo de deficiência, o relatório revela a intervenção desastrada de integrantes da Sesai: "Em 2015, ouvimos queixas dos Awá relacionadas a possíveis comentários de que o pessoal da saúde estaria atribuindo má formação ou deficiências das crianças por eles casarem entre irmãos. Isso gerou uma revolta grande internamente. Segundo eles mesmos, desautoriza as mulheres/mães mais velhas que sabem com quem os filhos devem casar. De fato, alguns casamentos foram modificados por isso. Aqui se percebe a influência dos técnicos de saúde na cultura, e a dispensa dos conhecimentos de nossa medicina para ajudar”, relata o Cimi à Justiça Federal.