06/09/2016

Justiça Estadual ordena despejo de aldeia Gamela, fala em direito de conquista e questiona identidade do povo

O juiz da Comarca Estadual de Matinha (MA), Celso Serafim Júnior, determinou no final da última semana, 1º de setembro, a reintegração de posse de uma área retomada pelo povo Gamela, na aldeia Piraí (na foto), em 16 de agosto deste ano. A decisão liminar concede prazo de 30 dias para o cumprimento do despejo das famílias indígenas do local conhecido como Sítio Chulanga, entre os municípios de Matinha e Viana. 

 

Povo Gamela e advogados questionam competência do juiz para decidir sob litígio de terra reivindicada por indígenas e os argumentos usados pelo magistrado – no mínimo insólitos depois da Constituição Federal de 1988 e da Convenção 169 da OIT.

 

“A rigor todos os 8.515.767.049 km² do território brasileiro pertence aos índios (…) Razão essa, necessária e suficiente para que todos nós outros, não índios deixássemos as terras brasilis (…) Sendo este ou qualquer outro magistrado absolutamente incompetente para decidir à respeito, já que não haveria jurisdição a ser prestada (…) Não obstante, pelo direito de conquista as referidas terras passaram a pertencer ao homem branco (SIC)”, assim começa a sentença do juiz. 

 

Mais adiante, o magistrado questiona a identidade étnica dos Gamela com base no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), não sendo os Gamela mais silvícolas ou selvagens, mas integrados à sociedade nacional. A palavra povo é sempre colocada entre aspas pelo juiz. “Certamente não estamos a falar de silvícolas ou grupo tribal consoante ao artigo 3º do Estatuto do Índio, ou isolados conforme o artigo 4º do mesmo estatuto (…) Não vislumbro litígio envolvendo índios, mas sim invasores”, disserta o juiz. 

 

“Todo o texto da decisão é racista e preconceituoso. Entendemos como uma violação de direitos fundamentais, de existência, de sermos quem somos: Gamela. Nosso povo não vai sair da terra. Vamos recorrer dessa decisão, mas não vamos sair”, afirma Kum’Tum Gamela. O pedido de despejo foi feito por Qenack Serra Costa Júnior, detentor do título de propriedade da Chulanga. A Fundação Nacional do Índio (Funai) realiza estudo de qualificado da demanda territorial Gamela – primeiro passo do procedimento de demarcação de acordo com o Decreto 1775.

 

A terra, antes da retomada, era utilizada para abastecer a fábrica de cerâmica da qual Qenack é dono. No dia 26 de agosto, três homens armados invadiram a retomada e ameaçaram os Gamela. Procurando pelas lideranças, os indivíduos ameaçaram os indígenas e estavam em uma caminhonete cuja placa está registrada no nome da Ostensiva Segurança Privada LTDA., com sede em São José do Ribamar (MA) – conforme apuração na Secretaria de Segurança Pública.

 

Juiz incompetente

 

O advogado Rafael Silva, assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirma que a Justiça Estadual é incompetente para conceder tal decisão. “O juiz não tinha atribuição para decidir algo que cabe à Justiça Federal. A decisão demonstra também uma postura preconceituosa e equivocada com relação a identidade dos indígenas”, afirma Silva. O advogado revela ainda que o juiz não solicitou informações à Funai.  

 

“No próprio documento, o autor do pedido liminar de reintegração fala sobre a terra estar presente na Sesmaria dos índios (lote de terra dado aos Gamela)”, afirma o advogado. Os Gamela retomaram de 2015 até agora nove áreas reivindicadas como tradicionais pelo povo. Em todas foram impetrados pedidos de reintegrado de posse, mas apenas no caso do Sítio Chulanga houve decisão pelo despejo envolvendo a Justiça Estadual. 

 

O juiz traçou toda a linha de argumentação baseada no percurso histórico da colonização contra os indígenas e das leis de terras a estes povos advindas em distintas etapas até os dias de hoje. Todavia, conclui de sobressalto que não se trata de conflito envolvendo indígenas, no caso dos Gamela, mas de cidadãos integrados à sociedade. “Fazer parte do país nós fazemos, mas a Constituição nos garante o direito de sermos quem somos”, se indigna Kum’Tum.

 

Para o advogado da CPT, o que preocupa é que um clima bélico está disseminado entre fazendeiros e proprietários da região contra os Gamela "com racismo difuso, já foram claras as ameaças de morte, grupos de jagunços. Mesmo sem o cumprimento (do despejo) eles podem se utilizar dessa decisão para considerar legítima o uso de força privada pra retirar os Gamela”, afirma Silva.

 

Todas as liminares de reintegração de posse contra coletividades no Maranhão, desde julho de 2015 por força de lei estadual, são encaminhas para a Comissão de Violência no Campo e na Cidade. O objetivo é garantir uma mediação. “Nesse caso Gamela, a Justiça levou até a Comissão, mas com esse prazo de 30 dias e sob pena de multa de R$ 50 mil ao Governo do Estado para cada dia de decisão não cumprida”, diz o advogado da CPT.



 

Gamela tem o direito de ser Gamela 

 

"A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio, de manter-se como índio, com sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, reconhece o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista. A partir de 5 de outubro de 1988, o índio, no Brasil, tem direito de ser índio”, explica o jurista Carlos Marés em seu livro O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito[1].

 

O assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o advogado Adelar Cupsinski, afirma que isso significa que “o Estado brasileiro não tem o dever de reconhecer ou não a identidade étnica de nenhum grupo social”. A partir de 2004, o Brasil tornou-se signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Portanto, a norma tem efeito de lei no país e considerada assim pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 

 

Logo em seu artigo 1º, a Convenção assim determina: "A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção". Cupsinski afirma que é comum juízes proferirem decisões baseados am argumentos que questionam a identidade enquanto povo dos indígenas para negar o direito à terra. Os indígenas Tupinambá de Olivença passam por situação semelhante.   

 

"A Funai não pode mais dizer se é ou não indígena, ela tem acolher a demanda. Se o juiz perguntar para a Funai essa deve ser a resposta. No caso da terra, o direito é originário e a demarcação vai dizer qual o tamanho dessa terra indígena Gamela, na situação desse despejo, que tem coletividade, cultura diferenciada e própria. As leis vigentes no país reconhecem esse modo diferente de ser como princípio fundamental”, explica o assessor jurídico do Cimi. Cupsinski lembra ainda do Preâmbulo da Constituição Federal para ressaltar o caráter pluralista que a Carta Magna confere ao Brasil.     

 

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.



 

Estatuto do Índio: pontos não recepcionados

 

O Estatuto do Índio segue sob vigência desde sua publicação, em 19 de dezembro de 1973 – um dos anos mais sangrentos da ditadura militar (1964-1985). “Ele foi elaborado sob a vigência da Constituição de 1967 e precisa ser analisado com parcimônia, considerando que determinados conceitos não foram acolhidos pela Constituição Federal de 1988”, ressalta Cupsinski. 

 

Os artigos 3º e 4º do Estatuto do Índio, como exemplos, que não foram recebidos pela Constituição Federal de 1988 e tampouco estão presentes na Convenção 169 da OIT em quaisquer artigos ou interpretações. São exatamente os artigos citados pelo juiz da Comarca Estadual de Matinha, Celso Serafim Júnior, para questionar a coletividade dos Gamela enquanto povo indígena.  

 

“Ademais, o regime anterior previa a integração gradativa dos indígenas à comunhão nacional, o que não tem mais sentido”, conclui Cupsinski. O assessor jurídico do Cimi entende que “direito de conquista”, termo também usado pelo juiz como categoria, é algo que não estabelece nenhum diálogo envolvendo as legislações pertinentes à demarcação de terras indígenas ou ao direito originário sobre as terras que os povos tradicionalmente ocupam.



 

Comissão visita os Gamela

 

No mesmo dia em que saiu a liminar ordenando o despejo dos Gamela, a Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública Estadual (DPE), Comissão de Direitos Humanos da ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Cimi, a CPT e o bispo de Viana, Dom Sebastião Lima Duarte, estiveram na aldeia Piraí – área de retomada. 

 

“A Comissão buscou levar solidariedade e pegar mais informações sobre a situação que envolve violência e racismo contra os Gamela”, explica a missionária indigenista Rosimeire Diniz, do Cimi Regional Maranhão. Rosimeire salienta a reunião produtiva e as impressões dos defensores públicos. “Todos e todas se preocuparam com os Gamela e logo em seguida veio a notícia da reintegração”, destaca.  

 

Os Gamela cansaram de esperar. As nove áreas retomadas pelos Gamela ficam dentro de uma área de 14 mil hectares reivindicada pelo povo, a qual lhes foi doada pelo Estado brasileiro ainda no período colonial, no ano de 1759. Desde então, o território foi sendo invadido e grilado, e o povo Gamela sendo confinado em um espaço cada vez menor. Desde que decidiram pelas retomadas, Kum’Tum Gamela perdeu as contas de quantos ataques, ameaças e ataques sofreram

 

Atualmente, mais de 700 famílias do povo Gamela vivem numa área de quase 600 hectares, sem espaço para praticar agricultura e, ainda, sofrendo com a grilagem e a destruição de árvores e plantas importantes para sua sobrevivência, como é o caso dos açaizais, utilizados para alimentação, e dos guarimãs, cuja palha é utilizada para confecção de artesanatos. 

 

[1] SOUZA FILHO, Carlos Federico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1a Ed. (ano 1998, 5ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2008.

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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