“Donos” aparecem com escrituras da terra Aldeia Porto Velho e ameaçam expulsar os Kanela do Araguaia
Conforme estudo de qualificação de demanda da Fundação Nacional do Índio (Funai), há pelo menos 60 anos os Kanela do Araguaia, no Mato Grosso, vivem nas terras da aldeia Porto Velho, próxima ao município de Luciara. Seu Cândido e dona Julia Kanela deixam ao povo, todavia, relatos que chegam há 100 anos de ocupação. Tempo em que conviveram com grileiros e toda sorte de invasores, mas de um nunca se ouviu falar naquelas bandas: Manoel Botelho Feijó.
Em novembro de 2015, Manoel apareceu na aldeia localizada na margem direita do rio Tapirapé. Chegou levantando cercas, derrubando as erguidas pelos Kanela para afastar invasores e afirmando que era dono da terra porque tem escritura. “Nos reunimos com ele, explicamos que estamos ali há 100 anos, que é terra indígena, mas ele seguiu dizendo que é dono da terra quem tem escritura”, explica o cacique Lucas Kanela. Manoel largou o trabalho das cercas pela metade e sumiu.
Na segunda quinzena do último mês de agosto, Manoel mandou um grupo de homens para a terra indígena com o objetivo de terminar o que havia começado quase um ano antes. “Filmamos e gravamos tudo, inclusive a nova conversa que fizemos com ele. Novamente disse pra gente que é dono da terra quem tem escritura. Também disse que era amigo do delegado e do juiz; se o impedíssemos de fazer colocar as cercas ele os acionaria”, diz o cacique.
Os Kanela não deixaram. Enquanto as lideranças da aldeia estavam em uma reunião em outra aldeia Kanela, no dia 19 de agosto, policiais civis levaram intimações à comunidade onde o cacique e mais alguns indígenas deveriam se apresentar ao delegado de São Félix do Araguaia. “Como Manoel disse que o delegado era amigo dele, tememos por nossa segurança. Avisamos ao Ministério Público Federal, em Barra do Garças, que entrou em contato com o delegado para explicar a situação da nossa ocupação na terra tradicional”, conta cacique Lucas.
Não faltam donos com escritura para a terra dos Kanela do Araguaia. Cacique Lucas afirma que no último dia 29 de julho duas caminhonetes com homens não identificados chegaram à aldeia. “Disseram que era pra gente sair dali porque a terra era do sujeito que os liderava. Tinha escritura e estava ali avisando pra gente sair. Então mais donos aparecem e é assim também em outras aldeias Kanela aqui da região. Como todos eles conseguiram escrituras da mesma área a gente não sabe”, diz o cacique.
A aldeia, depois desses episódios, está em alerta e receosa de que pistoleiros os ataquem ou embosquem alguma liderança Kanela. “Tudo isso a gente vem passando para as autoridades. O que precisamos é do governo olhar a nossa situação. A Funai precisa dar seguimento à demarcação para afastar de uma vez por todas essas pessoas que chega aqui, nem sabemos de onde, e mandam a gente sair porque são donos, têm escrituras”, pede o cacique Lucas.
O próprio MPF já realizou estudos na região para identificar os sub-grupos Kanela Apãnjekra, com o intuito de embasar solicitações à Funai quanto ao procedimento demarcatório. Esse indígenas chegaram no Araguaia mato-grossense a partir na primeira metade do século XX: fugiam de expulsões forçadas do Maranhão, sobretudo do território hoje demarcado como Terra Indígena Porquinhos – a aldeia antiga dos Apãnjekra foi dizimada por fazendeiros colonizadores na década de 1930. São quatro áreas em situação de regularização. Além da Aldeia Porto Velho, esses indígenas vivem ainda na Aldeia São Félix e Luciara, Aldeia Santa Terezinha e Aldeia Canabrava do Norte (Gleba São Pedro).
Aldeia Pukanu: Terra de esperança
Pukanu significa terra da esperança, onde tudo se renova. Há pouco mais de dez anos os Kanela do Araguaia passaram a reivindicá-la. De lá os mais velhos foram expulsos em 1954. Passaram a sobreviver como boias frias nas fazendas de gado da região. Com a chegada das novas gerações, os anciãos decidiram que era hora de voltar para o lugar da antiga aldeia esbulhada. Em 2010, a comunidade vivia na Gleba Xavante I.
Fugindo de ataques de fazendeiros na Ilha do Bananal, no Tocantins, e de conflitos com os Karajá, os Maxakali aportaram na Gleba Xavante I. A área foi cedida para a Funai que a demarcou para os Maxakali. Os Kanela do Araguaia não criaram empecilhos: sabiam que a área era de antiga perambulação dos Maxakali, de onde também foram expulsos, e então decidiram seguir para a área tradicional do grupo na Gleba São Pedro, onde instalaram a retomada da aldeia Nova Pakanu. Um ano antes, em 2009, os Kanela protocolaram um documento na Funai apresentando a demanda.
“Nossos antigos vieram fugidos do Maranhão, no início do século 20. Depois chegou mais Kanela vindos dos massacres lá na Terra Indígena Porquinhos (povo Kanela Apãnjekra), do Escalvado. Em 1954 começou a chegar gente dizendo que era dono, com escritura e nos expulsaram. Então estamos em uma área que tem nossos antepassados enterrados, que é nossa. Vamos ficar aqui, essa é a decisão e pedimos que as autoridades garantam nossa paz. Estamos correndo risco aqui, a região é de muita pistolagem”, alerta Pedro Kanela.
Em maio deste ano, mesmo ocupando uma área da União, a Gleba São Pedro, município de Luciara, à direita da margem do rio Tapirapé, a liderança da aldeia Nova Pakaru, Pedro Kanela, denuncia que uma pretensa dona das terras ameaçou retirá-los à força caso não saíssem de lá até o dia 24 de maio, dia marcado pelo Programa Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, para realizar análises na Gleba – propriedade da União e já com acordo de doação aos indígenas firmado pelo Departamento de Patrimônio da União (DPU).
O ultimato ocorreu menos de um ano depois de uma reintegração de posse executada contra a mesma aldeia, em 7 de julho de 2015. A Polícia Militar colocou os indígenas em caminhões de transportar gado e os jogou no município de Canabrava. “No último dia 9 de maio retomamos a Gleba novamente, por isso a ameaça dessa mulher que se diz dona, mas aqui ainda estamos e contamos que se fará justiça com nosso povo que já cansou de ser expulso de um canto pra outro”, explica Pedro Kanela.
Fotos: Ana Mendes/Cimi