Impunidade marca um ano do assassinato de Simião Vilhalva Guarani e Kaiowá na T.I Ñanderú Marangatú
"Quem matou Simião Vilhalva?”, perguntam manifestantes que nesta quinta-feira, dia 1º de setembro, realizarão um ato público na Praça Ary Coelho, em Campo Grande (MS), em memória de um ano do assassinato do Guarani e Kaiowá. O questionamento não se trata de mera retórica: até o momento ninguém foi indiciado pela morte do indígena que levou um tiro na cabeça depois de ataque sofrido pelo povo, em 29 de agosto de 2015, em áreas retomadas do tekoha – lugar onde se é – Ñanderú Marangatú, município de Antônio João.
O inquérito 293/2015 da Polícia Federal trata da morte de Simião. Está aberto, com investigações e diligências em curso. A Procuradoria da República de Ponta Porã explica que as investigações ocorrem sob segredo de justiça e com o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF). O inquérito, portanto, ainda não foi encerrado. Enquanto esperam para que a impunidade não se repita como em outros casos de assassinatos, os Guarani e Kaiowá lembram de Simião.
“Ontem (dia 29) teve uma festa bonita pro Simião. Fizemos faixas perguntando quando os assassinos serão presos. Não só os de Simião, mas de Dorvalino (Rocha, assassinado em 2005) e de tantos parentes que morreram atropelados nesses anos de acampamento. Não esquecer eles é muito importante”, diz Inayê Gomes Lopes Guarani e Kaiowá – filha de Hamilton Lopes, liderança Guarani e Kaiowá morta em 2012. Se os responsáveis pelo assassinato de Simião seguem livres, as lideranças de Ñanderú estão na mira da Polícia Federal.
Inayê revela que ela e outras cinco lideranças Guarani e Kaiowá de Ñanderú Marangatú foram intimadas a depor na Polícia Federal no último mês. “Pelo que eu entendi estamos sendo processados pelas retomadas do ano passado. Conforme o delegado falou, a gente tá sendo acusado de desrespeitar uma determinação da Justiça que dizia pra gente ficar apenas em pouco mais de 100 hectares de Ñanderú”, afirma. O MPF ainda não recebeu nenhuma informação a respeito desse processo e da intimação aos indígenas.
Para Inayê a acusação parte dos fazendeiros. “Eles acham que algumas lideranças e o Cimi são responsáveis pelas retomadas. Não entendem que é uma decisão do povo, da nossa organização Aty Guasu. Se for ter que prender alguém por isso, podem construir uma prisão para os 45 mil Guarani e Kaiowá. Eles matam a gente, botam na beira da estrada e a gente passa fome, passa por tudo e seguimos com nossa luta nesses anos todos. São quase 20 anos lutando por Ñanderú e acham que é uma ou outra liderança?”, questiona Inayê. De acordo com a indígena, outro problema é que a esposa de Simião e o filho passam por dificuldades, não recebem nenhum auxílio do Estado e contam com a solidariedade da comunidade.
A indígena explica que os ataques e ameaças cessaram nos últimos meses; o assédio agora é outro: as eleições municipais. Como a política na região é dominada pela elite agrária contrária às demarcações, os Guarani e Kaiowá vivem agora acossados pelas promessas de seus algozes, conforme relata Inayê. Como é habitual no Mato Grosso do Sul, estado que conta com mais de 60 mil indígenas (IBGE, 2010), a cesta de votos entre os povos é recheada e disputada inclusive por políticos que passam seus mandatos atuando contra as demarcações.
"Dácio Queiroz, dono da fazenda Fronteira, é candidato a prefeito em Antônio João e prometeu pra gente que se ele for eleito tendo nossos votos vai deixar a fazenda pra gente. Primeiro que a terra é tradicional Guarani e Kaiowá. Ele não pode dar algo que é do povo. Segundo que eu não acredito nessas promessas ainda mais vindo de quem nos oprime”, explica Inayê. Para a indígena, essa é uma outra tática adotada pela elite agrária para dividir o povo.
Os Guarani e Kaiowá ocupam 80% do total de 9.317 hectares homologados de Ñanderú. “As sedes das fazendas onde ocorreram os ataques (Fronteira e Barra) que mataram Simião não estão em nossa posse. No caso da Fronteira, o Dácio não tem colocado gado. Já na Barra, a Roseli (Silva, da família dos autodeclarados proprietários) quis botar o gado, mas a gente tomou uma decisão coletiva de não deixar porque depois se some um boi vão dizer que a gente roubou ou que estamos matando”, explica Inayê.
Para os Guarani e Kaiowá o mais importante agora é que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) restabeleçam a homologação de 2005 – alguns proprietários de boa-fé já receberam indenizações e outros se negaram a receber. Em outubro do ano passado, dois meses após a morte de Simião, o presidente Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), desembargador Fábio Prieto de Souza, manteve uma liminar da 1ª Vara Federal de Ponta Porã que determinava a reintegração de posse de quatro fazendas retomadas pelos Guarani e Kaiowá em agosto, incluindo a Fronteira e a Barra.
O despejo foi suspenso pela ministra Carmem Lúcia, do STF, quando uma centena de policiais já se concentravam em Antônio João para retirar à força os indígenas, que prometiam resistir. “Naquela ocasião a Funai disse pra gente que nós ficaríamos onde estávamos e os fazendeiros ficariam onde estavam. O ministro da Justiça (na época José Eduardo Cardozo) esteve aqui e falou que a questão seria resolvida pelo governo para os dois lados. Passou um ano já. Os assassinos de Simião estão soltos e Ñanderú Marangatú segue ocupada pelos fazendeiros. A violência contra nosso povo acontece por isso”, lamenta Inayê.
Como morreu Simião
No início de agosto de 2015, os Guarani e Kaiowá retomaram cinco fazendas incidentes na Terra Indígena Ñanderú Marangatú (foto acima) – homologada em 2005, dez anos antes, mas com os efeitos do decreto presidencial suspensos naquele mesmo ano até o julgamento definitivo no STF. Entre as fazendas retomadas estava a Barra, de propriedade da família de Roseli Silva, entre outras vizinhas, caso da Fronteira. Roseli é presidente do Sindicato Rural de Antônio João. Na manhã de sábado, 29 de agosto, a fazendeira convocou uma reunião na sede do sindicato.
Conforme noticiou o site Dourados News, Roseli abriu e fechou rapidamente a reunião "antes mesmo das falas dos deputados federais Luiz Henrique Mandetta (DEM) e Tereza Cristina (PSB), além do senador Waldemir Moka (PMDB), que estavam no local com dezenas de produtores, ela se dirigiu a uma de suas propriedades rurais da região do distrito de Campestre” (29/08/2015). Cerca de 100 homens armados em 40 caminhonetes, acompanharam Roseli para a fazenda Barra e Fronteira retomadas pelos Guarani e Kaiowá.
A imprensa foi impedida de seguir até o local com a comitiva – composta de fazendeiros da região e munícipes de Antônio João. Um câmera de uma emissora de televisão chegou a ter a fita retida. Momentos depois uma nuvem de fumaça subiu da área em que os Guarani e Kaiowá estavam: era o início do ataque. Nesse momento, o Departamento de Operações de Fronteira (DOF) já estava no local.
Na confusão gerada pelo ataque, os Guarani e Kaiowá se dispersaram. Simião, no momento em que recebeu o tiro fatal na cabeça, estava às margens de um córrego a procura de seu filho. O corpo do indígena foi levado por outros ao encontro dos agentes do DOF e demais pessoas não-indígenas, sobretudo políticos que estavam no local possivelmente vindos da sede do Sindicato Rural de Antônio João. Apesar da ofensiva violenta, os Guarani e Kaiowá enterraram Simião em Ñanderú Marangatú.
Indígenas aguardam resultado
No dia 31 de agosto, dois dias depois da morte de Simião, a Polícia Federal esteve no local realizando perícia. Uma reconstituição do crime foi realizada e folhas com manchas de sangue foram localizadas levando ao entendimento de que a versão dos Guarani e Kaiowá estava correta: depois de ser baleado, o corpo de Simião foi arrastado da ribanceira de um córrego até as imediações da sede da fazenda Fronteira, onde a polícia estava concentrada nos momentos posteriores ao ataque. Para a imprensa, a advogada Luana Ruiz Silva, filha de Roseli, defendeu o uso de armas de fogo por "produtores rurais" contra retomadas indígenas. Mobilizações violentas contra os indígenas passaram a ser convocadas pelos fazendeiros (abaixo).
“Nós ouvimos a versão dos representantes dos indígenas, inclusive o irmão da vítima, e os proprietários rurais. Ainda precisamos do laudo da perícia e vamos ouvir mais pessoas”, informou no dia 31 de agosto de 2015 o delegado da Polícia Federal de Ponta Porã, Bruno Maciel, que coordenou o trabalho. De acordo com o noticiado pela imprensa sul-mato-grossense, o corpo de Simião passou por perícia no Instituto Médio Legal (IML) antes de ser liberado para que o povo realizasse as cerimônias fúnebres.
“Essa impunidade não pode acontecer. Quando querem prender um da gente, tendo ou não tendo provas, é rápido: chegam, leva preso, divulga nos jornais. Já ao contrário, precisa de muito tempo… tratam com cuidado, não divulgam nada, tudo fica em segredo. Nem os nomes dos presos eles divulgam. Queremos que seja assim quando um índio morre assassinado”, questiona Inayê Guarani e Kaiowá.
Tragédia anunciada
Na semana que antecedeu o assassinato de Simião, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Ponta Porã emitiram alertas ao governo federal sobre algo grave que estava prestes a acontecer com os indígenas. Os sinais eram evidentes: tanto em Ponta Porã quanto em Antônio João, dezenas de fazendeiros já se concentravam. A rodovia que dá acesso ao município de Antônio João chegou a ser trancada dias antes pelos fazendeiros. Boatos de que os indígenas estavam incendiando casas, matando gado e planejando ataques contra Antônio João passaram a ser divulgados em rádios e em redes sociais. Servidores da Funai e os Guarani e Kaiowá relataram ameaças durante dias.
Tanto para integrantes da Funai e indígenas a Força Nacional deveria se deslocar de Ponta Porã para Ñanderú Marangatú. Todavia, tal ordem nunca foi dada aos agentes federais; foram para a terra indígena quando já era tarde, após o ataque de 29 de agosto. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal enviou ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, informando sobre a gravidade da situação no dia 28 de agosto, por intermédio de ofício urgente.
A repercussão dos episódios que culminaram na morte de Simião atingiu o mundo. Dias depois do ataque, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) acionou a Corte Interamericana de Direitos Humanos e as Nações Unidas (ONU). Nada serviu para impedir a sede de violência dos fazendeiros. As famílias Guarani e Kaiowá que continuaram nas áreas retomadas foram novamente atacadas por cerca de 60 indivíduos armados, que atiraram contra mulheres, crianças e idosos. A cada madrugada um novo ataque.
Mesmo com a Força Nacional presente, ataques contra os acampamentos indígenas visando recuperar as áreas retomadas foram impetrados pelos fazendeiros. A decisão dos Guarani e Kaiowá então foi a de entregar as casas grandes das fazendas retomadas e se alojaram em outras porções das mesmas fazendas. Os governos estadual e federal decidiram por uma intervenção militar. O Exército se deslocou para a região e por lá permaneceu durante 90 dias.
Histórico de Ñanderú Marangatú
A reivindicação de Ñanderú Marangatú pelos Guarani e Kaiowá é antiga e seu procedimento de identificação e delimitação foi iniciado em abril de 1999 e concluído em 2001, reconhecendo 9.317 hectares tradicionalmente ocupados pelos indígenas. Entretanto, no mesmo ano, fazendeiros ingressaram com uma ação declaratória para que a terra fosse considerada como “de não ocupação tradicional indígena”. A ação encontra-se ainda em tramitação.
Os anos seguintes foram marcados por idas e vindas no processo demarcatório e a constante ingerência do Poder Judiciário na condução do procedimento demarcatório. Após o início da demarcação física dos limites da terra, em 2004, a Justiça Federal determinou a retirada compulsória dos indígenas de parte da Terra Indígena Ñanderú Marangatú – decisão que foi posteriormente suspensa. Em março de 2005, a terra teve seu Decreto de Homologação expedido pelo então presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva.
Em julho do mesmo ano, foi impetrado mandado de segurança pelos fazendeiros da região contra o decreto. O então ministro Nelson Jobim do Supremo Tribunal Federal (STF) optou por suspender os efeitos da homologação da terra indígena. As consequências foram imediatas. Dorvalino Rocha, em 24 de dezembro de 2005, foi assassinado e duas crianças indígenas morreram em razão das péssimas condições de vida às margens da rodovia, em 2006. Desde então, a situação na região é tensa e a regularização da situação fundiária de Ñanderú Marangatú continua travada.