Povo Pataxó da T.I Comexatibá sofre atentado e ameaças de despejo forçado da aldeia Cahy
O povo Pataxó da Terra Indígena Comexatibá, antiga Cahy-Pequi, na Bahia, sofreu nesta segunda-feira, 22, um novo atentado. Homens não identificados pelos indígenas atearam fogo em uma ponte que passa sobre o rio do Peixe Grande e única forma de se entrar e sair da aldeia Cahy. Durante a ação, os criminosos realizaram vários disparos de arma de fogo para assustar os indígenas. O terror imposto aos Pataxó do Prado, como são historicamente denominados, ocorre de forma intermitente há ao menos três anos.
A ponte fica a 300 metros da aldeia e é a única forma dos indígenas se locomoverem para Cumuruxatiba, cidade do entorno. “Nesses dias estamos recebendo verias ameaças por parte de grupo que não deseja a presença do povo na região. Um senhor chamado G.F.G* chegou na aldeia Cahy dois dias antes de atearem fogo na ponte avisando que era o dono daquelas terras e a comunidade tinha que sair por bem ou por mal”, explica uma liderança Pataxó que não identificamos por motivos de segurança.
G.F.G interpelou o cacique da aldeia afirmando que possuía documentos comprovando que duas áreas onde os Pataxó estão a ele pertence. O cacique pediu que o sujeito se retirasse da aldeia. G.F.G, diz a liderança Pataxó, é aliado de outros dois latifundiários – V.A.S e A.S.N – que há anos se opõem à ocupação tradicional dos indígenas da T.I Comexatibá e estão associados a atos de violência e intimidação contra as aldeias.
Um desses latifundiários, V.A.S, também é apontado pelos Pataxó como influente junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Na última semana, denuncia a liderança indígena, o ICMBio derrubou malocas e uma escola na antiga aldeia Cahy, sobreposta pelo Parque Nacional do Descobrimento (PND), e V.A.S ajudou os servidores federais na demolição. Um dos filhos de V.A.S, conforme os Pataxó, mora dentro do PND.
“Peço atenção ao que está acontecendo com os Pataxó do TI Comexatibá, que estão sofrendo grande repressão por parte do ICMBio mesmo quando fora do PND. Peço às autoridade competentes que tomem providências”, diz a liderança Pataxó pedindo atenção da Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério Público Federal (MPF), Advocacia-Geral da União (AGU) e Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania.
Reintegrações e demarcação
O atentado desta segunda é mais um de uma série de pressões realizadas por empresários, fazendeiros, agentes do Estado e políticos contra a demarcação da T.I Comexatibá. Localizada no exato local da chegada das caravelas de Pedro Alvarez Cabral, há 516 anos, tendo ao fundo o Monte Pascoal, a área é assediada por empreendimentos turísticos, como resorts, hotéis e restaurantes, que se aproveitam da história do lugar e do PND, uma das poucas áreas de Mata Atlântica preservada na região.
“Nunca saímos dessa região. Nos expulsaram das áreas mais próximas do mar, mas nos deslocamos para outras localidades mais afastadas. A partir do século XX a situação foi ficando pior porque as cidades cresceram, a Mata Atlântica foi sendo devastada e os Pataxó também, porque Pataxó e Mata Atlântica são uma coisa só. Moramos muito tempo nas cidades, quase como mendigos, e decidimos voltar para as nossas terras”, explica Mandy Pataxó da aldeia Alegria Nova.
A partir dos anos 1960 e até o ano 2000 o crescimento da região ao redor da T.I Comexatibá é vertiginoso: surgem 21 municípios e a população salta para cerca de 1 milhão de habitantes. Dos 3 milhões de hectares que compõem a região onde está a T.I Comexatibá hoje, 2 milhões estão dominados por meia dúzia de empresas. O eucalipto toma conta de 800 mil hectares e o restante da área é formado por fazendas de gado e, mais ao sul, pela plantação de cana-de-açúcar. No entanto, não é apenas o interesse privado que atormenta a rotina dos Pataxó.
Em julho do ano passado, o ICMBio ingressou com duas ações de reintegração. Os procuradores do Instituto, vinculados à AGU, alegavam que a Funai, também composta por procuradores da AGU, não teria publicado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do território Pataxó.
A Justiça Federal concedeu as liminares para o despejo sob o argumento de que o órgão indigenista havia pactuado o relatório para ser publicado dois anos antes. Se o relatório fosse publicado, as liminares seriam suspensas. No dia marcado para as ações de despejo, o Ministério da Justiça publicou o relatório e os Pataxó respiraram aliviados – por pouco tempo.
Este ano, o ICMBio entrou com outras três reintegrações. A alegação é de que os Pataxó estariam devastando a porção de Mata Atlântica preservada pelo PND. “O ICMBIO ignora, na sua base etnocêntrica, que, assim como na Amazônia, o etnoconhecimento dos indígenas sobre a natureza, desenvolvidos epistemicamente, os alçam a reconhecidos preservadores das florestas. Os Pataxó também demonstram isso”, aponta a professora Maria Giovanda Batista que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Interculturais e da Temática Indígena da Universidade do Estado da Bahia, em Teixeira de Freitas.
Conforme a estudiosa, a cosmologia Pataxó está atrelada à Mata Atlântica: “Os nomes dos filhos são de pássaros deste bioma e, da mata, eles retiram suas indumentárias, além da alimentação, a mesa farta… não há possibilidade de sustentação do ecossistema Mata Atlântica sem a demarcação da terra Pataxó”, diz Maria Giovanda ao concluir: “Um ambiente não pode ser sustentável com a desterritorialização de 15 mil indígenas, cuja população de crianças chega a oito mil”. Desde 2000, com o início das retomadas Pataxó de aldeias da T.I Comexatibá, 20 mil árvores nativas da Mata Atlântica foram plantadas pelos indígenas.
Se antes a desculpa era a falta do Relatório de Identificação, agora o ICMBio alega que os Pataxó não podem ficar em seu território tradicional sobreposto pelo PND porque a homologação da T.I Comexatiba não ocorreu. O assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Adelar Cupsinski alerta que conforme a Constituição federal uma terra para ser considerada indígena não precisa ser homologada: “Se trata de num direito originário e o procedimento demarcatório é um conjunto de atos administrativos que define o tamanho da terra, ou seja, do direito que já existe”.
Aldeia Cahy sob ataque
Em agosto de 2015, homens armados invadiram a aldeia Cahy, em Comexatiba, e queimaram uma maloca que continha artesanatos e objetos de uso tradicional e religioso. Em seguida, ocorreu uma série de ataques de pistoleiros e os indígenas chegaram ao ponto de esconder seus filhos em caixas d’água à noite, com medo dos tiros.
No início deste ano, no dia 19 de janeiro, uma ação de reintegração de posse ocorrida na mesma aldeia Cahy surpreendeu dezenas de famílias. Além do posto de saúde e da escola, várias casas foram destruídas, muitas delas com os pertences dos indígenas em seu interior.
Conforme o relato dos indígenas, aproximadamente 100 policiais federais, militares e civis, acompanhados de agentes da Companhia Independente de Policiamento Especializado/Mata Atlântica (Caema), chegaram à aldeia às sete horas da manhã, anunciando a reintegração de posse. “Eles deram um prazo para a gente retirar as coisas das casas, mas o prazo não foi suficiente. Mesmo assim, eles tocaram as patrolas por cima, com as coisas dentro mesmo”, afirma Xawã Pataxó, liderança da aldeia Cahy.
“A reintegração aconteceu de surpresa, no dia em que a comunidade estava se organizando para a festa de São Sebastião. A escola estava sendo organizada para o início do ano letivo, e eles tiraram tudo de dentro e jogaram numa área quase um quilômetro longe da aldeia, de fogão a giz de cera”, relata a liderança.
*A opção pelas iniciais se dá em decorrência da falta de investigações: por mais que os Pataxó apontem seus algozes, de forma exaustiva, não há nenhuma investigação em curso apurando as responsabilidades destes indivíduos.