23/08/2016

Indígenas e quilombolas protestam no TRF-4 (RS) contra o Marco Temporal e são recebidos por desembargadora

Um ato público contra o Marco Temporal tomou as ruas do centro de Porto Alegre (RS) nesta terça-feira, 23, e terminou no Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região com a entrega de um documento assinado por indígenas e quilombolas. Cerca de 200 Kaingang, Guarani Mbyá e quilombolas, representados por uma comissão de 20 integrantes, foram recebidos pela desembargadora Marga Ingo Tessler. A comissão de indígenas e quilombolas pediu que a 3ª e 4ª turmas do TRF-4 não tomem como referência o Marco Temporal para decidir sobre a ocupação de terras indígenas e quilombolas no estado.

“O Marco temporal é uma interpretação que tem violado o direito dos povos indígenas. No decorrer do tempo, e é no tempo dos avós e bisavós, fomos expulsos com violência de nossas terras e confinados em reservas. Esse entendimento só reforça essa injustiça, e então reforçamos que nosso direito à terra é originário”, destaca Angélica Kaingang. Para a indígena, o Marco Temporal vai de encontro ao que a Constituição Federal assegura.

A interpretação afirma que se não houver a comprovação de que determinada terra indígena reivindicada é alvo de processo judicial ou conflito fundiário desde 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, ela não pode ser demarcada. Na Carta Magna, porém, o direito dos povos indígenas é à terra, sendo originário, ou seja, aqui eles viviam antes da criação do Estado Nacional e a demarcação é mero ato administrativo. 

"O marco temporal da Constituição de 1988 pretende impor a necessidade da presença dos povos e comunidades na posse da terra em 1988 e caso nelas não estivessem deveriam estar postulando as terras judicialmente ou estarem em disputa física – o chamado renitente esbulho (SIC)”, diz a carta entregue pelos indígenas e quilombolas para a desembargadora Marga Ingo Tessler.

Conforme o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, Roberto Liebgott, a desembargadora da 3ª Turma do TRF-4 afirmou que este é um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e “mostramos a ela que se trata de algo que não está definido pela Corte Suprema, inclusive com decisões contrárias ao argumento do Marco temporal. Tomando por base as condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, onde o Marco Temporal aparece, cabe lembrar que a decisão do STF sobre elas não é vinculante às demais terras indígenas do Brasil”, diz Liebgott. O missionário indigenista lembra que os indígenas do Rio Grande do Sul foram confinados em oito reservas.

"Com o Marco Temporal, nenhuma terra indígena será demarcada no estado. No caso dos Guarani, grupos do povo sempre circularam perto das terras tradicionais por uma característica continental do povo. Já os Kaingang foram retirados à força e só nas últimas décadas passaram a sair para retomar suas terras. A tese é um arranjo anti-indígena para vilipendiar o direito constitucional desses povos", explica Liebgott.
  

Na carta entregue, indígenas e quilombolas argumentam contra o Marco Temporal: "Três elementos causam as principais controvérsias nos julgamentos de tribunais referentes às demarcações de terras e que tomam como base o marco temporal: há, nos julgados dos tribunais, insuficiente entendimento conceitual e não há convergência no entendimento da aplicação do marco temporal nos processos que envolvem a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; há divergências entre os magistrados no tocante aos conceitos de direito indígena e quilombola à terra – posse, ancestralidade, usufruto e bens da União – e posse e propriedade oriundos do direito civil; há desconhecimento quanto a aplicabilidade do direito em relação às diferenças étnicas, culturais e ao fato dos povos terem sido considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos – plenamente capazes, portanto (Art. 232 CF/1988)”.

Indígenas e quilombolas expressaram à desembargadora que o Marco Temporal é parte de uma conjuntura de ataque aos direitos territoriais destes povos. "Projetos de lei e emendas à Constituição Federal são elaborados para aniquilar com qualquer possibilidade de que demarcações de terras sejam normatizadas pela Lei Maior do país. Só para se ter uma ideia da articulação e da força que se volta contra os povos indígenas no âmbito Legislativo, tramitam, hoje, no Congresso Nacional mais de 100 proposições que visam alterar artigos concernentes aos direitos indígenas e quilombolas”, diz um trecho da carta entregue.

Um direito não pode limitar outro

“Nos parece cruel esse marco temporal porque como a gente pode estar na terra se fomos expulsos dela? Sem contar que antes de 1988 éramos tutelados e a Funai estava nas mãos dos militares”, afirma Maninho Kaingang. A partir de 2014, passou a ser comum no Rio Grande do Sul campanhas anti-indígenas. Ações de parlamentares da bancada ruralista do estado, que motivaram manifestações públicas de racismo e preconceito, se tornaram comuns lançando pequenos agricultores contra indígenas, criminalizados pelas forças policiais. Nesse sentido, os indígenas frisaram para a desembargadora que não querem tomar direitos alheios.

"A tradicionalidade da ocupação indígena e das ocupações quilombos não pode ser negada, valem os preceitos constitucionais de que estas terras – no caso das indígenas – são bens da União, que são inalienáveis e indisponíveis e que os direitos indígenas sobre elas são imprescritíveis (Art. 231, § 4º). Não é possível, portanto, imaginar que o erro cometido pelo Estado – ao disponibilizar para colonização e titular terras que não lhe pertenciam – não seja corrigido agora para evitar que ocorra uma injustiça contra os agricultores. É necessário, isso sim, exigir que o Estado responda por seus erros sem que se penalizem os agricultores, estes que, com seu suor, produzem alimentos”, dizem indígenas e quilombolas na carta ao TRF-4.

No Sul, os povos e comunidades tradicionais estão atentas ao que ocorre na Corte Suprema. ”Ainda, no dia 11 de maio de 2016, acompanhamos o julgamento no STF do processo que tratou da demarcação da terra indígena Yvy Katu (MS 27939 – Rel. Min. Edson Fachin), dos índios Guarani Kaiowá, Mato Grosso do Sul. Naquele julgamento, o Pleno decidiu que o recurso de mandado de segurança constitui via inadequada para dirimir controvérsias relacionadas as demarcações de terras indígenas. Fica consignado naquele julgamento que a  decisão do STF acerca do caso Raposa Serra do Sol não se vincula a outros  casos similares, ou seja, se garantiu que os casos sejam analisados dentro de seu contexto histórico e das peculiaridades de cada povo”, diz a carta.

As demarcações, conforme afirmam as lideranças, são as iniciativas mais eficazes do Estado para evitar os conflitos no campo, promover reparação e justiça, além de fortalecer a democracia com a garantia de direitos fundamentais. “Para tanto, pedimos a observância dos direitos constitucionais, especialmente relacionados aos seguintes temas: a observância do direito de consulta das comunidades indígenas antes do julgamento dos processos de seus interesses e o afastamento do chamado marco temporal”, solicitam os indígenas e quilombolas. As lideranças alegam que muitas vezes as decisões da Justiça Federal contra a ocupação tradicional são tomadas sem ouvir as aldeias e comunidades bem como sem as informações necessárias.

Fotos: Roberto Liebgott/Cimi Regional Sul

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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