Povos indígenas: vidas às margens das rodovias no RS e das decisões judiciais e políticas
“Dor, sofrimento e injustiça”. Com essas palavras Silvino Werá da Silva, cacique da Terra Indígena Irapuá, localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul, Rio Grande do Sul, definiu para a equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que o acompanhou em audiência no Ministério Público Federal (MPF), os sentimentos de sua comunidade. E completou: “Vivo na beira da estrada a minha vida toda. Crio meus filhos de baixo de lona à espera da demarcação da nossa terra, que fica do outro lado da estrada (BR 290, no Km 299). Eu até quis desistir, mas não consigo. Vivemos por causa da terra. Ela é tudo o que temos e somos, mas nela não nos deixam pisar. Ela é nosso sonho, é nosso ritual, é nosso alimento, é nossa vida”.
Como não se emocionar ao ouvir essas palavras? Não há como não se comover ao ver seus filhos, netos, esposa e sua comunidade na margem de uma estrada federal onde não há habitação, água potável, matas, animais, alimentos. Crianças nascem e, quando sobrevivem, crescem sob lonas geladas no inverno e escaldantes no verão.
Esse é o contexto desumano a que estão submetidas essas pessoas, cujas vidas estão à margem de tudo. E eu, mais uma vez, me emocionei. Já experimentei grande emoção diante da alegria resistente dos Guarani e Kaingang. Mas, desta vez, o sentimento foi de angústia e indignação profundas. Não é justo que pessoas sejam submetidas à condição de exilados, que sejam impedidos de desfrutar do direito ancestral sobre suas terras porque estas foram apropriadas indevidamente pelo Estado e entregues a um punhado de fazendeiros que nelas plantam pasto para engordar bois no Rio Grande do Sul, ou soja para também engordar bois na China e na Europa.
Sob as lonas pretas os indígenas vivem. Acreditam numa "terra sem mal". Acreditam que a terra é para ser cuidada e, por isso, Nhanderu – Deus – a presenteou aos povos. Não a entregou para causar sofrimento, dor e nem morte. Essa dádiva não deve ser destinada exclusivamente a alguns privilegiados, e sim deve gerar vida em abundância para todos. Sob o ponto de vista dos guarani, os juruá – brancos – precisam aprender a conviver com a terra e respeitá-la. Mas, quando o lucro e o poder são colocados como metas, a vida passa a valer quase nada e se perde o sentido ético da existência humana.
Os Guarani Mbya valorizam a paz, não suportam o conflito. Suas formas de resistência envolvem a presença discreta e o diálogo, e não o enfrentamento direto. Em função disso, são muitas vezes ignorados, vítimas da omissão do poder público ou de sua ação direta – em Irapuá, por exemplo, os Guarani foram removidos pelo estado do Rio Grande do Sul e colocados distantes de suas terras tradicionais. Retornaram, resistem, reivindicam a demarcação, permanecendo à margem da rodovia, num pequenino fragmento de terra que compõe aquela em que se pode ser gente, em que se pode viver o Tekó, o jeito de ser Guarani.
Com seus corpos e vidas postos à margem, eles confirmam que não é qualquer terra que pode ser boa para viver, mas aquelas reconhecidas em suas cosmo-ontologias. É lá que estão as condições – materiais e espirituais – para viver plenamente. Os Guarani e os Kaingang não gostam de viver em acampamentos, não é parte de suas práticas tradicionais, não se acostumam com a vida em condições precárias, eles persistem, resistem, acreditam que suas terras serão demarcadas porque é só nelas que se pode existir.
Contudo, o governo federal determinou a paralisação de todas as demarcações das áreas indígenas há pelo menos três anos. Assim, as comunidades indígenas são condenadas a uma existência de precariedades. No Rio Grande do Sul, além de Irapuá, existem outros 21 acampamentos à beira de rodovias, e são dezenas em condições semelhantes em todo o país.
As razões para que as comunidades indígenas sejam mantidas, por décadas, nesta absurda situação ligam-se ao sistema de governo que temos. Nele, estimula-se a propriedade, a concentração de terras, a produção em larga escala. A partir dessa lógica, os governantes, mesmo tendo a responsabilidade constitucional de demarcar as terras e assegurar aos povos indígenas o seu usufruto, não o fazem. Suas ações (e omissões) demonstram estarem atrelados política e economicamente aos proprietários que, em sua maioria, adquiriram os bens de modo ilegal ou ilegítimo. Ilegal porque muitos grilaram terras ou se apossaram violentamente delas, e ilegítima porque, quando os títulos foram concedidos pelo Estado, os governantes sabiam que as terras eram habitadas por indígenas ou quilombolas.
É neste contexto que se deve ler e analisar as ações e omissões do Poder Executivo, que é negligente em sua responsabilidade de executar políticas públicas, assegurar vida digna a todas as pessoas e possibilitar o acesso à educação, saúde, saneamento básico, moradia.
Também, é neste contexto que se deve analisar decisões judiciais contra demarcações de terras. No âmbito da Justiça Federal, especialmente nas regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil, foram proferidas decisões que contrariam dispositivos constitucionais garantidores dos direitos dos povos indígenas. Lamentavelmente, os inimigos dos povos indígenas tentam emplacar artimanhas ou subterfúgios jurídicos em tribunais superiores para legitimar o que é ilegítimo ou ilegal.
Como não têm conseguido descaracterizar o direito constitucional dos povos indígenas às suas terras, tentam sustentar teses anti-indígenas no Poder Judiciário. É o caso do chamado “marco temporal da Constituição Federal de 05 de outubro 1988”. Trata-se de uma anomalia jurídica, a partir da qual se afirma que, se os “índios” não estavam na posse da terra no ano de 1988, perderiam, por isso, o direito de reivindicar a demarcação. Argumentam também que os “índios” somente teriam direito a uma terra se estivessem, até a referida data da promulgação da Constituição, em renitente esbulho, ou seja, disputando-a de modo conflitivo – em guerra com os brancos – ou pleiteando a área requerida na Justiça. Portanto, alega-se que os indígenas – que antes da Constituição Federal de 1988 eram tutelados pelo Estado – deveriam ter ingressado em juízo contra os invasores de suas terras, o que lhes era vedado.
Desconsidera-se, com a tese do marco temporal, a própria ação do estado brasileiro que promoveu a expulsão ou remoção dos povos indígenas de suas terras e as destinou a propriedade privada através de titulações indevidas. Ignora-se também que o reconhecimento do direito à terra aos indígenas já estava assegurado desde à época do império e consolidado nas Constituições de 1934 e as subsequentes.
Ao que tudo indica, falta a quem defende a tese do marco temporal, um estudo mais aprofundado da história de massacres e de expulsões a que foram submetidos os povos indígenas. Recomenda-se, neste caso, o estudo do “Relatório Figueiredo”, por exemplo.
Cabe aos poderes públicos cumprirem o que determina a Constituição da República, especialmente em seu Artigo 231, no qual se afirma que: os índios têm o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, ou seja, este direito é anterior a própria Lei Maior; as terras indígenas são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis; compete à União demarca-las e fazer respeitar todos os seus bens. E, além disso, a lei esclarece que a propriedade das terras não é dos povos indígenas, mas da União, cabendo a eles apenas o seu usufruto exclusivo.
A realidade de desrespeito e de violências contra os povos indígenas no Brasil evidencia a intenção de beneficiar ruralistas, empresários do agronegócio, da mineração ou empresas de energia elétrica. São estes setores, em síntese, que sustentam um Estado governado por políticos autoritários, racistas e corruptos. Eles ignoram as pessoas que vivem à margem, sob as lonas, pois estas não movem a engrenagem que mantém e fortalece as estruturas do poder econômico.
Parece haver uma estreita sintonia entre alguns governantes, alguns membros do legislativo e alguns juízes, quando se consuma a injustiça e se despejam famílias indígenas, que são condenadas a permanecer à margem de rodovias. Neste sistema de poder, a trágica situação vivida pelos povos indígenas não comove e não impacta. E, assim, nem a lei, nem o direito, nem a justiça, nem a dignidade humana prevalecem.