05/07/2016

Indígenas e quilombolas do RS entregam carta à subprocuradora-geral da República denunciando criminalizações



Durante Audiência Pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) do Rio Grande do Sul, na capital Porto Alegre, indígenas e quilombolas entregaram para a subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat (na foto acima, Sul21), uma carta onde denunciam a criminalização de lideranças e integrantes destes povos. O episódio destacado pelo documento envolve as manifestações contra diligências de parlamentares ruralistas da CPI Funai/Incra no estado, no último mês de maio.

O objetivo dessa CPI, disse Deborah Duprat ao jornal Sul21, não é buscar a verdade ou reconhecer direitos: “É uma CPI fraudada desde o início. O projeto de poder deles é ter um estoque de terras para o mercado”. Por conta das manifestações de maio, o presidente da CPI, o deputado federal ruralista Alceu Moreira (PMDB/RS), pediu o indiciamento de lideranças indígenas e quilombolas.

Deborah Duprat afirmou na audiência que o Brasil está vivendo um cenário de crescente violência no campo e de criminalização de comunidades indígenas, quilombolas, de militantes do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para a subprocuradora, uma das expressões institucionais deste processo de criminalização de movimentos sociais é a CPI Funai/Incra. Na foto abaixo, protesto dos indígenas e quilombolas durante audiência da CPI em Porto Alegre, motivo de criminalização perpetrada pelo ruralista Moreira.

Leia a carta na íntegra:



Carta de denúncia à criminalização das lideranças e membros dos povos indígenas

Mbyá-Guarani e Kaingang, e comunidades de Quilombos quando das manifestações de repúdio à diligência da CPI da Funai-INCRA no Rio Grande do Sul, em 23/05/2016


À Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal

A Excelentíssima Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Dra. Deborah Duprat

Reunião do MPF sobre Criminalização dos Movimentos Sociais Porto Alegre, 04/07/2016


Nós, lideranças e membros dos povos indígenas Kaingang e Mbyá-Guarani, e lideranças e membros das comunidades quilombolas, que ocupamos tradicionalmente territórios onde hoje se localiza o Rio Grande do Sul, temos, nos últimos anos, enfrentado inúmeras propostas e ações efetivas por parte dos não índios e de agentes do Estado brasileiro que buscam reduzir os nossos direitos arduamente conquistados.


Dentre essas ações, a omissão do poder público em demarcar as nossas terras e reconhecer os nossos territórios de ocupação tradicional e a criminalização de nossas lideranças e comunidades e apoiadores tem sido as mais graves, já que violam a Constituição e tratados internacionais de Direitos Humanos e, ainda, nos retiram aquilo que para nós é fundamental: o nosso direito de viver.


Em verdade, nos últimos anos, tem sido recorrente a prática de criminalizar nossas lideranças quando elas estão reivindicando nossas terras de ocupação tradicional ou utilizar artifícios para ameaçar os nossos direitos e tentar intimidar e calar as nossas lideranças. Entendemos que faz parte do conjunto de ações ofensivas aos povos indígenas e comunidades quilombolas a Proposta de Emenda à Constituição Federal nº 215 e a Comissão Parlamentar de Inquérito da Funai-INCRA, expedientes utilizados pelos ruralistas que são ampla maioria no Congresso Nacional para retirar os nossos direitos.


Um momento concreto desse processo de criminalização de nossas lideranças ocorreu no dia 01 de junho de 2016, quando em Reunião Deliberativa Ordinária da CPI da Funai-INCRA, foi aprovado o Requerimento nº 258/2016 (Anexo), de autoria do Deputado Federal Luis Carlos Heinze. Neste requerimento há uma solicitação ao Departamento de Polícia Federal para a instauração de inquérito policial visando à apuração de possíveis crimes previstos nos artigos 139, 146, 286 e 288 do CP, entre outros, praticados por um bando de pessoas ligadas a supostos movimentos indígenas e quilombolas, em ação organizada e atitude bastante hostil […]” (p. 3), quando da diligência no Rio Grande do Sul da CPI da Funai-INCRA no dia 23 de maio de 2016, dia que ocorreria uma Audiência Pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. (Acesso em 28/06/2016, às 20h22m: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2086075).


Nós repudiamos integralmente o conteúdo do referido requerimento que, sem dúvida, tem intenção de criminalizar nosso movimento social de resistência, repúdio e denúncias às ofensas racistas e discriminatórias que há anos são violentamente praticadas pelos políticos proponentes e ocupantes dos principais cargos da CPI da Funai-INCRA, particularmente os Deputados Federais do Rio Grande do Sul, Alceu Moreira da Silva e Luis Carlos Heinze.


Consideramos que os fundamentos apresentados no requerimento demonstram uma tendência para prejudicar os direitos assegurados dos povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos no país. Consequentemente, contestamos o que está expresso neste documento. Com objetivo de subsidiar nossas considerações, citamos abaixo o primeiro parágrafo da justificativa do referido requerimento (página 3):


Em 23/05/2016, a Equipe Técnica da Comissão Parlemantar de Inquérito FUNAI-INCRA, acompanhada dos Deputados Federais Alceu Moreira da Silva, Luis Carlos Heinze, Dionilso Mateus Marcon, realizou diligência em Porto Alegre/RS, como objetivo de concretizar Audiência Pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, ocasião em que seriam ouvidos os anseios e necessidades dos agricultores, bem como das comunidades indígenas e quilombolas. (grifamos)


Ao nos depararmos com esta falácia, destacada no texto, imediatamente algumas questões vieram à nossa memória. São estas interrogações, portanto, que conduzirão nossas considerações quanto à criminalização de membros das nossas comunidades e apoiadores que se fizeram presentes na Audiência Pública citada.


  1. Como seriam ouvidos nossos anseios e necessidades se nossas comunidades e lideranças não foram, em nenhum momento, convidadas pelos proponentes e ocupantes dos principais cargos da CPI da Funai-INCRA para participarem da Audiência Pública na Assembleia Legislativa/RS (ALRS)?


Denunciamos mais esta falsidade contra nossas lideranças e comunidades. Por esses motivos afirmamos que os brancos também matam com a caneta, não satisfeitos em nos matarem com arma de fogo. Desconhecíamos totalmente a realização da diligência da CPI da Funai-INCRA no Rio Grande do Sul, informação que chegou até nós por meio dos nossos diversos apoiadores.


Com certeza, podemos afirmar também que a Funai não foi convidada ou sequer informada da audiência, pois indagamos ao Coordenador Regional de Passo Fundo sobre a convocação. O Coordenador afirmou que não foi oficiado pela CPI da Funai-INCRA sobre a diligência. Não podemos afirmar o mesmo sobre o INCRA, pois não temos informações deste órgão, mas podemos questionar: se a Funai não foi convidada por que o INCRA seria?


Objetivando demonstrar como chegou até nosso conhecimento a audiência, citamos um trecho do Of. nº 03/2016 (Anexo) da Frente Parlamentar contra o Racismo, a Homofobia e outras formas correlatas de Discriminação da ALRS, encaminhado ao Conselho Estadual dos Povos Indígenas/Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos/Governo do Rio Grande do Sul (CEPI/RS):


Tendo em vista que não foram disponibilizadas maiores informações acerca dos convidados, do formato do debate e do viés que será abordado, a Frente Parlamentar em Combate ao Racismo, à Homofobia e Outras Formas Correlatas de Discriminação entendeu salutar convidar os diversos setores da sociedade civil e institucional para participar como observadores que estejam fora da disputa política partidária, em especial para que prevaleça um olhar sob a ótica dos direitos fundamentais de todos os envolvidos, principalmente indígenas e negros. (grifamos)


Consideramos, inclusive, que os deputados estaduais não foram satisfatoriamente informados dos detalhes da audiência, bem como demais instituições atinentes aos nossos interesses, como é o caso do CEPI/RS. Reafirmamos, então, que foram nossos apoiadores que avisaram nossas lideranças e comunidades desta diligência no estado, preocupados que estavam com mais uma ação de violação dos nossos direitos fundamentais.


  1. Como seriam ouvidos nossos anseios e necessidades se no dia da audiência nossa entrada no auditório da ALRS foi, em um primeiro momento, obstruída, sendo que após nossos protestos de segregação, foi permitida, porém de forma atravancada, enquanto que no interior do auditório já se encontravam muito bem acomodados alguns não indígenas convidados pelos deputados proponentes e ocupantes dos principais cargos da CPI da Funai-INCRA?


A audiência estava agendada para às 13h, sendo que nossas lideranças, comunidades e apoiadores chegaram ao local com duas horas de antecedência. Como o Auditório Dante Barone, local da audiência, possui três acessos (um pela Rua duque de Caxias, outro pela Praça Mal. Deodoro e um terceiro no interior da ALRS), solicitamos informações de qual entrada seria destinada ao ingresso naquele dia. Os funcionários da ALRS indicaram o acesso da Praça Mal. Deodoro, ao qual nos dirigimos e permanecemos aguardando até o horário agendado para início da audiência. Qual nossa surpresa que esse acesso não foi liberado, mesmo sendo próximo das 13h.


Ao mesmo tempo em que aguardávamos, percebemos intensa movimentação de não indígenas desembarcando de diversos ônibus na frente da ALRS. A seguir, dirigiam-se ao interior da casa legislativa. Um destes veículos nos chamou muita atenção, pois se tratava de um mini-ônibus pertencente à Prefeitura Municipal de Faxinalzinho/RS, de função precípua transportar passageiros que carecem de atendimento em saúde. Em anexo, fotografia do veículo estacionado em frente à ALRS, publicada no Instagram pelo indígena Merong Santos, em 23/05/2016, denunciando o desvio de função do veículo.


Então, indignados, percebemos que o acesso para participação na audiência não correspondia a informação recebida anteriormente dos funcionários da ALRS. Imediatamente nos deslocamos ao interior da ALRS em direção ao auditório. Quando lá chegamos, nosso ingresso foi obstruído. De pronto, expressamos nosso descontentamento e afirmamos que não aceitaríamos qualquer justificativa que impedisse nossa participação na audiência. Após nossos protestos quanto à segregação, e longo processo de negociação, fomos autorizados a entrar no auditório, porém de forma atravancada, inclusive com todos os membros de nossas comunidades sendo examinados detidamente. Ao ingressarmos, constatamos que já se encontravam muito bem acomodados alguns não indígenas conversando alegremente com o deputado Luis Carlos Heinze. O parlamentar, ao nos ver, retirou-se do recinto sem dirigir às nossas comunidades qualquer atitude amistosa.


Observamos, não sem surpresa, no requerimento do deputado, que muitos dos não indígenas presentes na audiência, e que efusivamente conversavam com o parlamentar, foram indicados como testemunhas com a intenção de nos criminalizar, conforme itens (g) e (h) do Requerimento nº 258/2016. São não indígenas residentes nos municípios de Sanandúva, Erechim, Faxinalzinho e Passo Fundo, todos diretamente interessados na obstrução dos procedimentos de demarcação e titulação de nossos territórios tradicionais, pessoas que de uma forma ou de outra já se envolveram em conflitos com nossas comunidades.


Destacamos, que na lista das testemunhas, por exemplo, encontra-se o nome do Vice-Prefeito de Faxinalzinho/RS, Sr. James Aires Torres, o que nos remete ao uso indevido de patrimônio público deste município, qual seja, o veículo reservado às políticas de saúde que foi utilizado para atividade que em nada se relaciona com seu objetivo. Saúde para estes não indígenas é a nossa morte!


Da mesma forma, evidenciamos a parcialidade do deputado na criminalização dos presentes na audiência, tendo em vista que o Requerimento não solicita apuração de responsabilidade por práticas de crimes de injúria racial e/ou racismo contida nas declarações contra os povos indígenas e comunidades quilombolas, dirigidas aos nossos representantes naquele dia. São diversas as injúrias ditas pelos não indígenas: “Vão trabalhar, vão trabalhar…”; “Vai estudar […] aprende um pouquinho […]”; “Vocês tem que ficar no meio do mato!”. Ou ainda, com as frases em suas faixas: “Mato Preto, lutando contra as demarcações fraudulentas!”; “Não à fraude do quilombo Morro Alto”. (Acesso em 28/06/2016, às 21h17m: https://www.youtube.com/watch?v=u5TiBkDPNuo).


Ainda, algumas perguntas óbvias: os deputados solicitarão a instituição competente abertura de inquérito para averiguar uso indevido de veículo da saúde para responsabilizar os gestores municipais de Faxinalzinho/RS? Ou os deputados montaram um aparato para uma criminalização seletiva, somente dos povos indígenas, comunidades quilombolas e de seus apoiadores?


Destacamos, também, que o Auditório Dante Barone possui 557 poltronas, e estava completamente lotado, sendo que nossos representantes e apoiadores fizeram-se presentes em aproximadamente 60 pessoas. Claro está, então, que os não indígenas foram convidados pelos deputados coordenadores da CPI da Funai-INCRA para se fazerem presentes na audiência, bem como algum tipo de auxílio pode ter sido fornecido pelos gestores dos municípios citados no requerimento, como nos leva crer o uso do veículo de Faxinalzinho/RS.


Claro está que não nos queriam na audiência, assim como não nos querem nas cidades ou em nossos territórios tradicionais.


  1. Como seriam ouvidos nossos anseios e necessidades se o deputado Luis Carlos Heinze, autor do requerimento que solicita criminalização dos membros de nossas comunidades, em Audiência Pública da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados sobre a demarcação de Terras Indígenas no município de Vicente Dutra/RS, dia 29/11/2013, afirmou que vivem “aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo o que não presta”? (Acesso em 28/06/2016, às 10h27m: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/02/em-video-deputado-diz-que-indios-gays-e-quilombos-nao-prestam.html).


Não satisfeito com suas declarações racistas e homofóbicas, o deputado Luis Carlos Heinze, ainda no dia 29/11/2013, conclamou os ouvintes a reagirem “contra esses grupos étnicos [povos indígenas e comunidades quilombolas], inclusive por meio de segurança privada”. Citamos trechos de seu discurso que sugere ação armada dos presentes na plateia:


O que estão fazendo os produtores do Pará? No Pará, eles contrataram segurança privada. Ninguém invade no Pará, porque a Brigada Militar não lhes dá guarida lá e eles têm de fazer a defesa das suas propriedades[…]. Por isso, pessoal, só tem um jeito: se defendam. Façam a defesa como o Pará está fazendo. Façam a defesa como Mato Grosso do Sul está fazendo. Os índios invadiram uma propriedade. Foram corridos da propriedade. Isso que aconteceu lá. (grifamos)


A situação é mais grave ainda quando sabemos do genocídio que tem vitimado os indígenas Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, com a atuação de grupos paramilitares na região contratados pelo agronegócio, e um leilão que teria sido realizado para armar os produtores rurais, se não tivesse sido paralisado judicialmente.


Mas as declarações de ódio aos povos indígenas e comunidades quilombolas, no dia da audiência em Vicente Dutra/RS, não foi exclusividade do deputado Heinze, também o deputado Alceu Moreira afirmou que os membros de nossas comunidades são “vigaristas” e defendeu que os presentes deveriam se munir de guerreiros e não deixarem um vigarista desses dar um passo na sua propriedade. Nenhum! Nenhum! Usem todo o tipo de rede. Todo mundo tem telefone. Liguem um para o outro imediatamente. Reúnam verdadeiras multidões e expulsem do jeito que for necessário.”


No que se refere à maneira de pensar alardeada pelos deputados neste dia, como por exemplo de que os fazendeiros do Mato Grosso do Sul realizam apenas um ato de “defesa”, e não a prática de genocídio como é nosso entendimento, consideramos que a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão/MPF cumpriu sua tarefa que a Constituição outorgou em defesa de nossos direitos, quando solicitou representação criminal contra os referidos deputados, tendo como matéria a prática e incitação pública à discriminação ou preconceito étnicos.


  1. Como seriam ouvidos nossos anseios e necessidades se esta Audiência Pública faz parte do conjunto de ações ofensivas aos povos indígenas e comunidades quilombolas por meio de um expediente utilizado pelos deputados ruralistas que é a CPI da Funai-INCRA?


A CPI da Funai-INCRA foi instituída e formada na Câmara dos Deputados por meio do Requerimento de CPI nº 16/2015, datado de 16/04/2015, de autoria dos deputados Alceu Moreira, Marcos Montes, Nilson Leitão, Valdir Colatto, Luiz Carlos Heinze e outros. No documento são apresentados os aspectos que serão investigados, bem como expõe as justificativas para criação da Comissão. No entanto, entendemos que seus fundamentos são desenvolvidos de forma parcial e tendenciosa, o que nos sugere que o objetivo principal dos deputados propositores desta CPI é prejudicar os direitos fundamentais dos povos indígenas e comunidades quilombolas assegurados no país.


No requerimento os deputados afirmam que qualquer disposição sobre a questão quilombola fundada no Decreto 4.887/03 está sob suspeita de inconstitucionalidade, pois tal norma é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 no STF. Mencionam, ainda, que o relator da ADI 3239, Ministro Cezar Peluso, entendeu pela inconstitucionalidade do decreto. E desavergonhadamente afirmam que “Não é necessário uma análise muito profunda para chegarmos à conclusão de que o Decreto nº 4.887/2003 extrapolou os limites do poder de regulamentar […] à determinação das terras de remanescentes de quilombolas” (p. 3).


Em contraposição aos argumentos dos deputados, consideramos que devido a sua previsão constitucional, incontestavelmente, é necessária uma análise aprofundada sobre a matéria para se chegar à conclusão da constitucionalidade ou não do Decreto nº 4.887/2003. Consideramos que foram suprimidas informações da mais alta relevância para compreensão do estágio do julgamento, bem como sua respectiva conclusão. Não foi mencionado, por exemplo, que no mesmo dia em que o Ministro Cézar Peluso votou pela inconstitucionalidade da norma, em 18/04/2012, a Ministra Rosa Weber pediu vistas aos autos e interrompeu o julgamento da referida ADI, sendo que esta informação figura na mesma fonte utilizada pelos deputados para afirmarem que o decreto “está sob suspeita de inconstitucionalidade”, qual seja, o Informativo STF nº 662. (Acesso em 29/06/2016, às 10h12m: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo662.htm).


Ademais, nada foi expresso quanto ao fato da Ministra Rosa Weber, em 25/03/2015, abrir divergência com o Relator e votar pela improcedência da ação, concluindo pela constitucionalidade do decreto presidencial, sendo seu voto publicizado em data anterior à apresentação do requerimento de criação da CPI. Há ainda outras omissões sobre o julgamento. No mesmo dia do voto da Ministra Rosa Weber, o Ministro Dias Toffoli pediu vistas dos autos, sendo que a ADI 3239 aguarda continuidade de julgamento no STF.


Convém lembrar ainda que a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), ao julgar em 2013 – dois anos antes da apresentação do Requerimento acima citado – o caso do Quilombo Paiol da Telha, no Paraná, assentou a inteira constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003. O TRF4 considerou constitucional o decreto por meio de julgamento iniciado em 28/11/2013, quando teve pedido de vista do desembargador federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que apresentou seu voto na sessão do dia 19/12/2013. O magistrado, acompanhado por 11 desembargadores dos 15 que formam a Corte Especial, votou pela constitucionalidade da norma.


A parcialidade das informações que figuram no requerimento, portanto, remete o leitor a uma indução simples e segura: o julgamento da ADI 3239 encerrou-se, tendo como decisão final a inconstitucionalidade do decreto. Reafirmamos que este direcionamento conclusivo não procede, não é verdadeiro. Como dito acima, o processo segue aguardando data para entrar novamente em pauta de julgamento no STF, sendo que os outros ministros ainda deverão votar, por isso não é possível afirmar a posição do STF acerca do decreto.


Como dito anteriormente, no requerimento são apresentadas as justificativas para criação da Comissão. Dois são os procedimentos administrativos de demarcação e titulação de territórios tradicionais que fundamentam os pressupostos dos deputados: Terra Indígena Mato Preto e Comunidade Quilombola de Morro Alto. Os parlamentares sugerem que estes procedimentos são exemplos de manipulação criminosa”. Nosso entendimento, em contrariedade aos deputados, é que condenável são as tentativas de aniquilação de modos de vida constitucionalmente garantidos por meio das tentativas de obstrução de regularização de nossos territórios, e a orquestração de audiências públicas que objetivam incitar o ódio contra nossas comunidades.


Há muito tempo, a nossa Comunidade Guarani do Mato Preto vive acampada em condições precárias e de extrema vulnerabilidade às margens de uma via férrea no município de Erebango/RS. O procedimento de demarcação se iniciou há mais de dez anos, sendo que somente em 2012, o Ministério da Justiça editou a Portaria nº 2.222/2012, declarando a Terra Indígena de Mato Preto como sendo de ocupação tradicional nossa, Guarani. Desde então, os opositores da demarcação, especialmente parlamentares como Luis Carlos Heinze, e que contam com o apoio irrestrito do Procurador Estadual Rodinei Candeia, um dos assessores da CPI da FunaiINCRA, passaram a insuflar a população da região norte do estado contra nossa comunidade guarani.


Tal situação se repete em relação a nossa Comunidade Quilombola de Morro Alto, situada no litoral norte do estado, que há décadas luta pela titulação nos Municípios de Osório e Maquiné, cujos impactos da Construção da BR 101 e depois a sua duplicação foram devastadores para nossa comunidade. Enfrentamos cotidianamente diversos conflitos e tensões, estimulados por declarações racistas do Deputado Alceu Moreira e de sua base eleitoral, espraiada para o próprio Sindicato Rural, num constante avanço da grilagem e cujos desdobramentos já causaram, entre outras, duas tentativas de homicídio contra nossa liderança quilombola. Destacamos que a morosidade no processo de demarcação que se arrasta 16 anos, com pressões político/institucionais que agravam a situação de precarização da nossa comunidade.


Cabe referir ainda, no que se refere a esses ataques no rio Grande do Sul, a existência de projeto de Lei na Assembleia Legislativa, a saber o PL nº 31 de 2015, de autoria do Deputado Elton Weber (Acesso em 29/06/2016, às 13:59: http://www.al.rs.gov.br/legislativo/ExibeProposicao.aspx?SiglaTipo=PL&NroProposicao=31&AnoProposicao=2015&Origem=Dx), flagrantemente inconstitucional, consoante parecer da Clínica de Direitos Humanos da UNIRITTER. Este PL também tem sido um categórico fator de incitação de conflitos, na medida em que projeta a retirada de nossos direitos e cria falsas expectativas em supostos pequenos agricultores, aprofundando o estigma do racismo contra nossas comunidades.


As diligências da CPI da Funai-INCRA, então, tornaram-se momentos oportunisticamente acionados pelos deputados que se beneficiam com a existência dos conflitos. Não sem surpresa que presenciamos nas faixas que os não indígenas trouxeram para a Audiência na ALRS, os dois casos exemplificados no requerimento de criação da Comissão: “Mato Preto, lutando contra as demarcações fraudulentas!”; “Não à fraude do quilombo Morro Alto”. No entanto, naquele dia, uns gritos chamaram em demasia nossa atenção. Uma descomunal contradição sintetizada em tão poucos palavras: “Vocês tem que ficar no meio do mato!. Estas palavras nos causam até hoje um terrível sentimento, pois sabemos que são essas pessoas que querem nos expulsar das nossas matas; sabemos que são essas pessoas que não nos queriam na audiência, assim como não nos querem nas cidades. O que não sabemos e perguntamos é ONDE É O MEIO DO MATO para os que vociferam os insultos?


Observamos, então, que os documentos, os discursos e as faixas aparentam ter algo em comum: coincidência de eventos históricos, comportamentos políticos e cultura racista. Nosso entendimento, portanto, é que a CPI da Funai-INCRA que tem se constituído em um espaço de perseguição e criminalização das nossas lideranças e comunidades, como atestamos com o desvelamento da forma malévola que os deputados justificaram nos documentos a criação da Comissão, bem como os acontecimentos que descrevemos no dia da diligência no Rio Grande do Sul.


Na audiência na ALRS, dia 23/05/2016, compareceram nossas lideranças e membros dos povos indígenas e comunidades quilombolas que vivem no Rio Grande do Sul, reconhecidos como nossos legítimos representantes. Estavam acompanhados de ativistas de movimentos sociais e de direitos humanos, apoiadores da nossa causa. Foram manifestar e protestar contra o modo como estava sendo conduzido esse momento, por parlamentares, que sob verniz legal e democrático, nos discriminam e agem para revogar nossos direitos assegurados na Constituição Federal da República, a qual eles juraram respeitar.


Consideramos ilegítima e injusta a criminalização dos nossos representantes que compareceram na referida audiência, bem como de nossos apoiadores, mas não nos surpreendemos com este tratamento, tendo em vista que, invariavelmente, somos pejorativamente qualificados como “vigaristas” “supostos indígenas”, “quadrilhas”, etc., sempre quando agimos de forma contrária aos interessados na destruição e exploração de nossos territórios por meio da economia de mercado capitalista (que eles chamam de “avanço da fronteira agrícola-pastoril”), bem como quando denunciamos as violações praticadas, sejam elas por pessoas ou instituições, sobre nossos direitos constitucionalmente garantidos, como é este o caso.


Acreditamos, assim, que todo o processo envolvendo essa CPI é eivado de vícios porque 1) não havia objeto definido, sendo uma CPI para investigar tudo, sendo que nesse “tudo” havia uma ameaça de criminalização das nossas lideranças, efetivada no Requerimento do Deputado Luis Carlos Heinze; 2) os parlamentares que presidem a CPI tem interesse direto na causa, tendo sido financiados por empresas que contestam nossos territórios; 3) não foram observados os nossos direitos de atuar e participar do processo, por meio de nossas lideranças ou de acordo com nossas formas próprias (direito de falar na língua, de ser ouvido nas nossas aldeias, etc.).


Desse modo, solicitamos uma atuação firme por parte da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/Procuradoria Geral da República e da Dr. Debora Duprat, que tem defendido os nossos direitos e interesses, cumprindo a tarefa que a Constituição outorgou ao Ministério Público Federal.


Pedimos nesta carta que o Ministério Público Federal interrompa no âmbito da instituição qualquer processo resultante da CPI da Funai-INCRA, e recomende aos órgãos competentes a anulação imediata de qualquer efeito ou desdobramento das diligências e procedimentos desta Comissão.


POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES QUILOMBOLAS: NENHUM DIREITO A MENOS!

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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