04/04/2016

Destruição de símbolos sagrados é estratégia para desagregar índios de suas terras, denuncia depoente

Uma oitiva realizada na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, no dia 21 de março, trouxe uma denúncia até então inédita à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Genocídio, que investiga a ação/omissão do Estado nos casos de violência praticados contra indígenas no Mato Grosso do Sul entre 2000 e 2015: a destruição de símbolos sagrados em aldeias para fins de desagregação e desalojamento de índios de suas terras tradicionais.

De acordo com o denunciante, o professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Neimar Machado de Sousa, há registros desse tipo de ação no Estado há mais de 40 anos e ruralistas seriam os patrocinadores desses ataques, considerados verdadeiras “catástrofes” pelos indígenas.

“A destruição de objetos e símbolos sagrados é corriqueira pois desestrutura toda a aldeia, desacredita e humilha os líderes religiosos, afinal como poderão conduzir os demais nos ritos? Ataca a autoestima da comunidade, atrai mau agouro, indício de má colheita, doenças, conflitos internos, enfim, tem consequências objetivas na vida das pessoas que residem na localidade”, explica o professor, que também é coordenador de graduação da Faculdade Intercultural Indígena (Faind) da UFGD.

Segundo ele, nos anos 1970 um ataque na Aldeia Ramada, em Tacuru, ocasionou a queima de yvyrapara e xiru por missionários. Entre 2000 e 2015, período investigado pela comissão parlamentar de inquérito, foram registradas as queimas do Yvyra’i, em Douradina, e do Tataindy’i, na aldeia Koenju, no município de Paranhos. “São objetos que são a própria divindade, representando os antepassados míticos, ou o ‘xiru’. Em Amambai, igrejas pentecostais, aliadas a fazendeiros, ameaçaram queimar um mestre tradicional indígena acusando-o de feiticeiro”, explica. “Quando falamos em destruição dos povos indígenas, falamos não só da perda de sua vida, mas da destruição de seus hábitos e costumes e de sua língua, que é o veículo que carrega a sua cultura”.

Em sua oitiva, Sousa exibiu aos deputados titulares da comissão uma apresentação com números, estatísticas, depoimentos e mais de 300 fotos de ataques a diversas aldeias de Mato Grosso do Sul, como na Aldeia Kurupi (Naviraí), em outubro de 2015, imagens de centenas de cartuchos disparados na Aldeia Potrero Guasu, em Paranhos, no último 19 de setembro de 2015, incêndios de barracos e outras violências, o que também tem sido, segundo ele, uma prática comum com o intuito de dispersar e destruir essas comunidades.

O professor disse que na Faind há um banco de dados em construção com mais de 110 mil documentos de denúncias de violações e violências contra povos indígenas, que pode ser disponibilizado à CPI. “Cada vez que alguém chega na universidade ou na imprensa dizendo que foi alvo de um pistoleiro, buscamos documentos que comprovem isso. Temos depoimentos orais e documentação escrita, fotos que mostram o momento que a comunidade foi expulsa, como em Lagoa Rica e Panambizinho, entrevistas com moradores, não índios, que conviviam com os indígenas expulsos dali. Podemos disponibilizar tudo o que for auxiliar no trabalho de apuração podemos disponibilizar a esta comissão”, disse.

“Judiaria”

Durante o depoimento, o professor explicou que é neste contexto de ataques, intimidação, desequilíbrio, dispersão e remoção (chamada pelos índios de ‘judiaria’, violência dos não indígenas contra indígenas) que deve ser analisado o alto índice de homicídios e suicídios entre os índios (Te Ko Va). “O assassinato e a violência não estão inscritos no DNA dos indígenas, ela é uma construção social. Essas ocorrências são muito mais frequentes em reservas do que em aldeias”, pontuou o acadêmico, que fez questão de fazer a distinção. “As aldeias são áreas de ocupação tradicional. As reservas são áreas criadas pelo Estado para remover os índios até que eles deixem de ser índios, do ponto de vista da sua cultura e tradição, fruto daquela política indigenista integracionista, perniciosa, inconstitucional, para o qual o índio deve deixar de ser quem é e assumir lugar semelhante ao nosso”, lamentou.

Sousa convidou os presentes a uma reflexão sobre o índice de violência entre índios na Região Norte (maior contingente indígena do Brasil) e o porquê ele é bem menor do que em Mato Grosso do Sul. “Cabe a nós perguntar por que e como isso aconteceu. Sabemos que dentro do sistema filosófico dos Guarani, a violência é sinal de um desequilíbrio religioso e espiritual. Se temos episódio de violência envolvendo um indígena contra outra indígena é reflexo de todas essas judiarias e catástrofes, da omissão do estado em todas as esferas ao longo de cinco séculos e de um século de política indigenista integracionista”.

Natureza

Outro exemplo destacado pelo professor Neimar Machado de Sousa como uma das violências mais graves contra uma aldeia é o corte sistemático de árvores e a matança de animais. “Para um Guarani, por exemplo, não há diferença entre um ser humano, um animal e uma planta. Na cosmovisão dos Terena, Guarani Kaiowá, segundo o mito da criação, eles não diferenciam a judiaria contra uma pessoa da judiaria contra os animais e as plantas, todos tem a mesma importância”, disse, citando um caso antigo em Ponta Porã, na Aldeia Bororó, onde milhares de toras eram retiradas e vendidas, segundo ele, com a conivência de religiosos, empresários e entes públicos do município, do Estado e do governo federal. “A Guarda Rural Indígena (GRIN) fortemente armada atuava para calar e punir os indígenas que ousassem questionar o desmatamento totalmente ilegal da área”, disse.

Educação

O professor Neimar Machado denunciou ainda a falta de acesso à educação e, citando dados do Ideb, informou que 66 mil crianças indígenas estudam embaixo de árvores em todo o Brasil. Outras 3 mil crianças, em Mato Grosso do Sul, sequer estudam porque não encontram vagas nas escolas!

Ele revelou que ainda há casos de crianças indígenas “doadas” para famílias de não índios e que acabam trabalhando no campo, sem receber nenhum centavo por isso, apenas abrigo e alimentação.

O presidente da CPI, o deputado João Grandão (PT), disse que a omissão relacionada às questões indígenas remonta a uma sequência de governos em âmbito federal, estadual e municipal e que todos os documentos trazidos pelo professor Neimar Machado de Sousa serão analisados pela assessoria da comissão.

“Ao investigar se realmente houve ação ou omissão do governo do Estado nos atos de violência contra os povos indígenas nos últimos 15 anos, temos de olhar isso sob a perspectiva dos índios. Nesse sentido, foi uma excelente oitiva, pois trouxe novos documentos e até elementos a serem analisados, como a questão religiosa, as várias formas de ‘judiaria’ praticadas contra os indígenas”, concluiu.

Por Daniel Machado Reis

Fotos: Egon Heck e Assembleia Legislativa/MS

Fonte: Daniel Machado Reis
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