Saúde indígena: direito de consulta ou disputa pela indicação de cargos?
A grave crise em que se encontra o Distrito Sanitário Indígena do Leste de Roraima ensejou um movimento desencadeado por membros do Conselho Distrital de Saúde que desde o início de 2016 se apresenta como defensor do direito de consulta pelos povos indígenas. As reivindicações deste movimento, no entanto, se resumem à luta contra a chamada ‘indicação política’ para a coordenação do distrito, ocorrida nos últimos dias do ano de 2015. O grupo que encabeça o movimento, e a pessoa que se apresenta como candidata ao cargo de coordenadora do distrito, apoiou durante mais de cinco anos a antiga coordenadora do distrito, responsável por sérios desmandos e ineficiência na gestão da saúde indígena, e contestada fortemente pela maior parte do movimento indígena no estado.
O Direito de Consulta nunca deve ser confundido com a mera indicação e controle dos cargos (e verbas) disponíveis nos diversos órgãos responsáveis pelas políticas públicas no país. Durante o processo amplamente participativo de discussão da Política de Atenção à Saúde Indígena na década de noventa, foi consenso entre todas as organizações envolvidas que as indicações para os cargos de gestão deveriam ser baseadas em critérios técnicos e culturais, e não seriam feitas pelos conselhos distritais de saúde ou organizações indígenas, mas apenas avaliadas e discutidas por eles. O motivo é que aquele que faz a indicação se torna responsável pela pessoa indicada. Como um conselho distrital ou organização indígena vai poder fiscalizar ou criticar uma pessoa que foi indicada por ele mesmo?
A forma como o atual governo federal faz as indicações para os cargos do primeiro ao quinto escalão nos últimos treze anos se baseia nas indicações políticas de parlamentares ou partidos da base do governo. Isto tem acontecido em todos os cargos públicos, sem exceção, da Funai, Sesai, Funasa, MDA, MEC etc. O critério do apadrinhamento político tem sido criticado desde a ascensão deste grupo político ao poder. O Conselho Distrital do Distrito Sanitário do Leste de Roraima recebeu já em 2003 uma carta do então ministro da Casa Civil José Dirceu defendendo e justificando a ‘indicação política’ do coordenador regional da Funasa Ramiro Teixeira, que viria a ser preso alguns anos depois por corrupção generalizada no órgão. Esta indicação era contestada fortemente pelo conselho e pelas lideranças indígenas do estado.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) durante o VII Acampamento Terra Livre realizado em Campo Grande (MS) no ano de 2010, já propunha que “a indicação dos coordenadores distritais e a contratação de profissionais para a Sesai não deve ser norteada por critérios políticos e de apadrinhamento, mas deve ser técnica com a participação das lideranças indígenas”. As nomeações para todos os órgãos públicos na esfera federal deveriam ser precedidas de uma adequada consulta sobre os critérios e o perfil da pessoa indicada, mas são de responsabilidade do governo que, independentemente de ‘indicação política’ ou realização da consulta prévia aos povos indígenas, deve responder pelas consequências positivas ou negativas de suas decisões.
Os Conselhos Distritais de Saúde não podem ser instâncias puramente burocráticas e totalmente alheias aos verdadeiros anseios das comunidades e suas organizações, como tem acontecido em todo o Brasil nos últimos anos. O melhor exemplo deste afastamento brutal entre os conselhos distritais de saúde e o autêntico movimento indígena aconteceu durante as discussões sobre a criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), entidade privada proposta pela coordenação da Sesai para assumir a gestão da saúde indígena em todo o país. Enquanto a proposta foi duramente rejeitada por todo o movimento indígena através de suas principais organizações em nível regional e nacional, a criação do instituto foi aprovada pela grande maioria dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena, através de manobras obscuras patrocinadas pelos atuais gestores da Sesai.
O verdadeiro Direito de Consulta somente será conquistado quando houver a efetivação da autonomia política, financeira e administrativa dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, com participação plena e controle social efetivo dos povos e organizações indígenas nos âmbitos local e nacional. O controle social não pode ser exercido às avessas, servindo como forma de controle dos gestores sobre as comunidades envolvidas. Para isto, devem ser respeitados os mecanismos próprios de deliberação e as formas tradicionais de consulta à população, como encontros e assembleias realizados nos espaços locais e regionais mais próximos às comunidades, com total liberdade de manifestação e sob a coordenação de suas legítimas lideranças.
A luta pela autogestão na saúde indígena protagonizada pelos povos indígenas conquistou vitórias significativas nas últimas décadas, como a criação e implementação dos Distritos Sanitários Indígenas, da Política Nacional de Saúde Indígena e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O Direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado dos Povos Indígenas está assegurado na Constituição Federal, Convenção 169 da OIT e Declaração dos Direitos Indígenas da ONU, e deveria ser estendido a todos os órgãos do governo. Isto não significa que os povos e suas organizações devam fazer as indicações para estes cargos, o que acarretaria sérios danos à sua autonomia no exercício do controle social e fiscalização das políticas implementadas, mas o cumprimento dos critérios mínimos de idoneidade, adequação cultural e compromisso dos gestores indicados com os povos com os quais trabalham.
O modelo de assistência proposto na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas está respaldado por documentos Internacionais, como a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, aprovada em 2007, que afirma que “os povos indígenas têm direito a suas próprias medicinas tradicionais e a manter suas práticas de saúde, bem como desfrutar do nível mais alto possível de saúde, e os Estados devem tomar as medidas necessárias para atingir progressivamente a plena realização deste direito” (artigo 24). A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989 afirma que “os sistemas de assistência à saúde devem dar preferência à formação e ao emprego de pessoal de saúde das comunidades locais, e concentrar-se nos cuidados básicos de saúde, assegurando ao mesmo tempo vínculos estreitos com os demais níveis de assistência à saúde” (artigo 25).
Boa Vista, RR, 24 de março de 2016.
Paulo Daniel Moraes