17/03/2016

“Se nos querem fora de nossa terra e mata sagrada, tragam caixões”, diz povo Pataxó ao Brasil

“Estamos aqui preparados contra o despejo. O ICMBio nos quer fora da nossa terra porque alegam que aqui é área do Parque Nacional do Descobrimento. E lá está: uma fazenda que faz fronteira de cerca com o parque fazendo queimada da mata para transformar em pasto”.

O cacique Rodrigo Pataxó, ladeado por guerreiros, pensa alto, enquanto a fumaça da queimada oculta o Monte Pascal. Os Pataxó, em silêncio, estão apoiados em algumas das 20 mil árvores que desde 2003 passaram a plantar na terra indígena, sobreposta pelo Parque Nacional do Descobrimento. Sabem cuidar do que restou de Mata Atlântica, e por ela afirmam lutar. Os Pataxó do Prado se afirmam como parte da mata e lhes conferem direitos.

Às vésperas do cumprimento de uma decisão de reintegração de posse, despachada pela Justiça Federal de Eunápolis, as aldeias Pataxó do Prado, Terra Indígena Comexatiba, cujo relatório de identificação foi publicado em julho de 2015, decidiram resistir. “Ninguém aqui quer virar mendigo nas cidades. Não temos para onde ir, porque aqui é a nossa casa”, declara Amora Pataxó.

Dona Amora, de 59 anos, é uma das mulheres Pataxó preparadas para a guerra iminente. “Tenho uma filha em depressão permanente. O ICMBio, os fazendeiros e os pistoleiros não nos dão sossego. Eu mesmo, depois que vim pra cá, na retomada, passei a ter pressão alta”, diz. Dona Amora possui uma vasta família. Seus filhos estão entregues à luta. Os netos, que correm em revoada pela aldeia pintados para a guerra, desejam crescer ali. Alguns costumam contar sobre a amizade que mantêm com os animais.

Candara Pataxó caminha pela aldeia com sua lança de madeira. Olhar felino, pés descalços sobre o chão batido. “Não queremos machucar ninguém. Se a polícia quer reintegrar, pois venha. Vamos nos defender sem usar do que a polícia usa, que é a matança e a violência contra o índio. Clamo para que as autoridades olhem por nós”, afirma.

Leia na íntegra a carta do povo Pataxó às autoridades brasileiras:    

Carta do povo Pataxó do Prado para as autoridades brasileiras: não sairemos de nosso território sagrado!

Nós, as aldeias indígenas Pataxó, originários e tradicionais do entorno do Monte Pascal, às margens do rio Cahy, ponto de contato e primeira invasão portuguesa às nossas terras, informamos e solicitamos um socorro às autoridades competentes. Dizemos ainda que se for necessário morreremos defendendo a nossa terra. Escutem: para nos tirar dessa terra, tragam caixões porque só assim sairemos de lá.

As aldeias da Terra Indígena Comexatiba, com relatório de identificação e delimitação da Funai publicado em 27 de julho de 2015, vêm sofrendo ações judiciais de despejo solicitadas pelo ICMBio, ou seja, pelo próprio governo federal. Nossa decisão é de resistir no território que desde o século 16 é ocupado pelos povos que compõe a nação Pataxó. O ICMBio pretende nos tirar alegando que a Mata Atlântica precisa ser preservada. Dizemos: os Pataxó possuem melhores condições de preservar o que é parte da gente do o ICMBio, o governo federal, que está atrelado a interesses do grande Capital.

Há 516 anos estamos lutando contra a destruição de nosso povo. Neste período, o Estado brasileiro vem de todas formas tentando nos massacrar. Citamos o incêndio de 1951, programado pela própria polícia deste Estado que consideramos colonial e genocida. Hoje, em pleno século 21, os descendentes destes coronéis e imperadores da Coroa estrangeira vêm mais uma vez nos atacar com máximo poder de fogo e destruição.

Os Pataxó, desde tempos imemoriais, habitam o entorno do Monte Pascoal – convivendo em harmonia com a Mata Atlântica, que com seus rios desaguam a Mata Atlântica em esplendor verde ao oceano que também conhecemos em parte de sua imensidão. Sempre vivemos de agricultura de subsistência, pesca, caça e artesanatos de sementes. Domesticando plantas e desenvolvendo antídotos e a nossa medicina tradicional. A natureza sempre esteve equilibrada e viva na região.

Pero Vaz de Caminha descreve a exuberância da natureza. Hoje a região encontrasse degradada, com 800 mil hectares de eucaliptos plantados e fazendas de gado e monocultivos. Tais impactos, somados ao uso indiscriminado de agrotóxicos, têm envenenado toda a água que irriga o Parque nacional do Descobrimento e todo o bioma da região, área que compõe a bacia hidrográfica dos rios Cahy e Corumbau. Contra isso o ICMBio não se opõe. O povo Pataxó tem denunciado há anos tais crimes ambientais contra a Natureza Sagrada.

Os efeitos de tais denúncias acabam se voltando contra o próprio povo, que criminalizado pelas autoridades judiciais e ICMBIo seguem lutando contra essa destruição da Mata Atlântica.

No ano de 1970, nossa família foi expulsa da terra indígena e da área que hoje compõe o Parque Nacional do Descobrimento. Na localidade, à época, foi instalada a multinacional madeireira Brasil-Holanda, a Bralanda. Essa madeireira devastou muito das matas nativas causando grande parte do desequilíbrio atual da região. A madeireira fez proposta de compra da localidade. Houve resistência dos indígenas. Pistoleiros passaram a atear fogo nas casas e queimar as plantações. Na fuga uma criança indígena morreu. Até o ano de 2003 vivemos à deriva no município de Prado.

Quando tivemos contato com os nossos direitos, depois de ficarmos expostos a todo tipo de violência, inclusive a falta de estudo, a nossa terra indígena não foi demarcada, mas criaram o Parque Nacional do Descobrimento. Esta ação, para nós Pataxó, foi uma queima de arquivo da destruição pela madeireira. As comunidades tradicionais Pataxó não foram consultadas. Passaram por cima de nosso direito, nos tratando como pessoas de 2ª categoria.

Em 2003 voltamos para o nosso território. Nosso objetivo era garantir nosso direito de demarcação do território e proteger as matas, os animais. De lá para cá plantamos 20 mil árvores. Essa mata é o maior bem de nosso povo Pataxó do Prado. Retomamos nossa casa e passamos a viver uma batalha judicial covarde imposta pelo ICMBIo, que não desenvolve nenhum trabalho de fiscalização. O instituto vira as costas para os animais e para a floresta. Os Pataxó não: vivemos com a floresta a tratando como igual, como vida necessária para a nossa existência.  

O ICMBio vem deixando que os fazendeiros do entorno do Parque entrem na área preservada. Devastam a floresta. Os plantios de monoculturas, a criação extensiva de gado, empresas que precisam de eucalipto e a mineradora Caulin estão acabando com o que restou de nossa Mata Atlântica, com a qual vivemos em harmonia. Estamos cercados por ações de reintegrações de posse e pelos interesses do Capital, pelos interesses privados de uns poucos que colocam em risco a vida de muitos. Inclusive do nosso povo Pataxó. Uma grande carga de contaminantes vem sendo despejadas na pureza desse bioma. A mineração prejudica os lençóis freáticos, seca a terra que deveria e deve ser farta. Vemos nascentes secar, rios desidratando. As cabeceiras estão secas. Um crime ambiental sem tamanho.

O conselho do parque, manipulados pelos interesses do agronegócio e o financiamento do Capital, está comprado para silenciar tamanha degradação. O ICMBio finge que não vê e tenta retaliar o povo Pataxó com ações de despejo. Para nós é o governo federal quem promove tanta desgraça, porque o ICMBio é um órgão do governo. Temos duas escolas estaduais indígenas dentro da terra indígenas: Kijetxayê Zabelê, Tanara Pequi/Gurita (anexo Mucujê), onde com a tirada violenta do despejo perderemos o ato de produzir a nossa origem, cultura e tradição. Temos uma educação específica e bilíngue, onde reproduzimos o conhecimento dos anciãos. Tudo isso poderá ser impedido! Consideramos um genocídio, porque aí está a fonte do que somos.

Observamos a degradação e omissão do estado para com nós e nossa terra sagrada; escravizaram o nosso povo e executaram militarmente, nos marginalizando e ignorando. Implantaram a exploração dos recursos naturais, com multinacionais. Desconsideram que apenas a demarcação de nossa terra será capaz de garantir a preservação. Somos especialistas nessa Mata Atlântica, somos filhos dela, parte dela. Os Pataxó e esse bioma são um só. O governo federal não quer perceber que a devastação dessa porção de Mata Atlântica ocorreu de forma gradativa, durante o século 20, e conforme as expulsões do nosso povo de suas terras. Estudos mostram isso! A mata foi morrendo conforme foram nos expulsando da mata.  

Não ocorreu qualquer consulta prévia das intervenções do governo na região ao nosso povo. O projeto monstruoso não protege a mata. Usam de diversos argumentos e distorcem a realidade. Com isso promovem um dos maiores desastres ecológicos e étnicos da história do povo Pataxó. Destruíram o verde que protegia o solo e hoje estão matando o solo, o ressecando com os eucaliptos, e, por fim, para nos calar, querem nos calar como se não tivéssemos direito algum, como se fossemos bandidos, ladrões. Ninguém rouba o que é seu! A gente defende o que é nosso. A vegetação mantém a terra viva, e por ela também cuidamos e defendemos. A mata é o Pataxó, o pataxó é a mata. Resistimos e cuidamos. Os animais nos conhecem, e eles também estão dispostos a resistir. Nosso destino é ser onça!

Informamos ainda que se formos despejados, não teremos para onde ir. Decidimos não virar mendigos na cidade. Portanto, vamos permanecer em nossas matas sagradas, parte do que somos e do que é ser Pataxó. Essa decisão não será desfeita. Não recuaremos nenhum milímetro e reforçamos que para nos tirar de lá, a polícia precisará levar caixões. Só nos matando é que será possível não permitir que nosso povo viva em suas terras.

Aldeia Alegria Nova, 17 de março de 2016

Assinam as lideranças das aldeias Pataxó do Prado, Terra Indígena Comexatiba

Fonte: Assessoria de Comunicação / Cimi-MS
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