07/10/2015

ABA entende como genocídio violência contra indígenas no MS e pede ação imediata do Estado

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) afirma, em nota pública divulgada no início dessa semana, que a omissão do Estado brasileiro diante da violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul “poderá ficar nos registros da história indígena e do indigenismo brasileiro, naquela região, como de clara conivência com algo que aparenta ser uma ação de extermínio planejado de um povo indígena, em pleno século XXI”.

No texto da nota, a ABA enumera diversos casos de violência contra lideranças indígenas, envolvendo espancamentos e assassinatos lembrando que no âmbito da Comissão Nacional da Verdade (CNV) o Relatório Figueiredo trouxe à sociedade crimes de mesma espécie cometidos no decorrer do século XX, sobretudo durante a ditadura militar (1964-1985).

Para a ABA, a paralisação das demarcações das terras indígenas é um dos vetores deste genocídio em curso: “Pode-se afirmar que as inadimplências administrativas que emperram a publicação dos relatórios de identificação e delimitação das terras indígenas, a insegurança devida à ineficiência dos órgãos policiais, a atuação corrente e muitas vezes impune, de empresas de segurança e de capangas, unidas à judicialização dos processos de demarcação de terras, têm contribuído para inflamar em Mato Grosso do Sul um clima de tensão, no qual se consuma de forma paulatina um genocídio claramente anunciado”.

Leia na íntegra:

 

Situação dos Guarani Kaiowa e Ñandéva no Mato Grosso do Sul: Ação imediata ou genocídio consentido pelo Estado Brasileiro

Diante da sequência de ações de grupos armados contra comunidades Guarani Kaiowa e Guarani Ñandéva ao longo dos últimos trinta dias no Mato Grosso do Sul, que resultaram em mortes, ferimentos e traumas que serão carregados para o resto das vidas de quem as presenciou, ou o Estado brasileiro toma uma posição clara e implementa as medidas necessárias e urgentes que dele se espera, garantindo a efetivação dos direitos deste povo indígena na região, como assegurado na Constituição Federal de 1988 e na normativa internacional, ou sua omissão poderá ficar nos registros da história indígena e do indigenismo brasileiro, naquela região, como de clara conivência com algo que aparenta ser uma ação de extermínio planejado de um povo indígena, em pleno século XXI.

Ao longo da última década não foram poucos os sinais e indícios de que se estava caminhando para um quadro crítico e assustador de violência sobre os Guarani no Mato Grosso do Sul. Isso não quer dizer que a violência não existisse antes disso. Ao contrário, seja velada ou explícita, seja cotidiana ou estrutural e sistêmica, ela foi constitutiva da sociedade plural e hierarquizada que ali se formou. Os fatos recentes só colocaram à vista do público mais amplo o verdadeiro fundamento da ordem colonial ali estabelecida: relações de dominação e exploração apoiadas na força bruta e pela segregação, e suas consequências aos indígenas. A configuração de uma situação de etnocídio e genocídio.

O denominado Relatório Figueiredo, de 1968, que resultou de uma comissão instituída pelo Ministério do Interior para apurar irregularidades no antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), e que foi localizado no contexto das investigações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade, relata inúmeros casos de torturas e violências a que foram submetidos os Guarani durante todo o período de colonização do Mato Grosso do Sul e oeste do Paraná, isso entre as décadas de 1940 e 1960. A 7ª Inspetoria do órgão, com sede em Curitiba (PR), ficou conhecida à época como a mais corrupta e violenta, atuando explicitamente em favor dos interesses das madeireiras e das empresas de colonização. Em 1943, o governo Vargas criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), sobrepondo-se às terras onde viviam e de onde os Kaiowá obtinham o seu sustento de maneira autônoma. Com o tempo, as colônias se transformaram em fazendas e as florestas em áreas de pasto, lavouras e monocultivos extensivos. Isso levou a que várias famílias e comunidades Guarani abandonassem seus locais de moradia, roçados etc e se deslocassem para outras regiões do país ou até mesmo para os países vizinhos. Aos que ficaram, restou adaptar-se dentro do possível a uma paisagem de contínua degradação ambiental e empobrecimento material, confinados em pequenas parcelas de terra.

A ABA juntamente com outras instituições públicas e os próprios Guarani Kaiowa e Guarani Ñandéva, por meio das suas lideranças e associações, estiveram ao longo da última década periódica e sistematicamente chamando a atenção para o que vinha acontecendo no MS e às ações e omissões do Estado brasileiro. A seguir iremos pontuar alguns fatos que vimos apontando e denunciando ao longo da última década.

Ao tomar conhecimento de que na madrugada do dia 08 de agosto de 2011 um grupo Kaiowá havia decidido retornar ao território Pyelito Kue-Mbarakay, área localizada no município de Iguatemi/MS, a ABA solicitou informações do MJ – Ministério da Justiça e da FUNAI – Fundação Nacional do Índio sobre as providências adotadas face aos graves acontecimentos no município de Iguatemi/MS. Em julho de 2003 um grupo tentou retornar e dois dias depois os pistoleiros das fazendas  invadiram o acampamento dos indígenas e os expulsaram com extrema violência, torturaram e fraturaram as pernas e os braços das mulheres, crianças e idosos.

Da mesma maneira, em dezembro de 2009, foi atacado uma comunidade Guarani-Kaiowa recém-acampada nas margens de uma estrada de chão no município de Iguatemi para reivindicar Mbarakay, seu território de ocupação tradicional. As pessoas viram chegar em vários veículos mais de uma dezena de homens encapuzados, buscando por Adélio Rodrigues, o líder político da comunidade. Gritando pelo “o cabeludo”, os encapuzados batiam e maltratavam as pessoas, puxando-lhes os cabelos. O xamã Atanásio Teixeira, de 70 anos de idade, uma filha e um neto, entre várias outras pessoas, foram duramente espancados e feridos com balas de borracha. O líder político não foi encontrado apenas porque havia se afastado um pouco antes dos invasores chegarem. Já um filho seu, Arcelino Oliveira Teixeira, de 18 anos de idade, foi levado pelo agressores e dele não se teve mais notícias. Sobre este episódio, no site da PR em MS, consta que “o Ministério Público Federal (MPF) em Dourados pediu abertura de inquérito na Polícia Federal em Naviraí para investigar o crime. Foram encontrados dezenas de cartuchos de munição calibre 12 anti-tumulto (“balas de borracha”) e há indício de formação de milícia armada.(1)

Em outubro de 2009, uma comunidade Guarani-Ñandéva recém-acampada para reivindicar Ypo’i, seu território de ocupação tradicional, no município de Paranhos, foi atacado por dezenas de homens armados. Sem qualquer tentativa de diálogo, os homens espancaram violentamente os indígenas (homens mulheres, idosos e crianças) e dispararam tiros em várias direções. Para escapar das agressões, os indígenas se dispersaram. Dois professores indígenas, Genivaldo Vera e Rolindo Vera, foram arrastados pelos cabelos e levados pelos agressores. Somente dias depois do ataque o corpo de um deles foi encontrado com marcas de violência, preso a um galho de árvore, num córrego (o Ypo’i), a uma distância de 30 quilômetros do lugar onde foram atacados. Do outro professor, até hoje não se tem notícias.(2)

Em agosto de 2011, por ocasião de em nova tentativa de retornar ao território reivindicado, os grupos de Mbarakay e da comunidade vizinha de Pyelito sofreram diversos ataques semelhantes, com uso de balas de borracha, várias pessoas ficando feridas. Quatro meses depois, em 18 de novembro de 2011, foi vitimado o líder político e espiritual da comunidade de Guaiviry, que recentemente havia acampado no interior dos espaços por ele indicados como de ocupação tradicional. Segundo relatos de testemunhas, o senhor Nísio, de 59 anos de idade, morreu após ser atingido na cabeça, tórax e braços, seu corpo sendo levado em uma caminhonete, juntamente com dois adolescentes e uma criança de cinco anos de idade. Outras pessoas foram feridas com balas de borracha.

De igual modo, em outubro de 2012, outro grupo Guarani Kaiowa, constituído pelas comunidades de Pyelito Kue e Mbarakay reocupou uma ínfima fração de seu território e ofereceu tenaz resistência a uma decisão de reintegração de posse. Tal fato gerou uma ampla e inaudita manifestação popular de apoio nas redes sociais. Disto resultou, naquele momento (mais especificamente em 25 de  outubro de 2012), uma manifestação da FUNAI, por meio de uma nota em sua página na internet, em que ressaltava “a gravidade da situação dos Guarani e Kaiowá” em Mato Grosso do Sul. Indicava que representantes da instituição participaram de uma grande assembleia desses dois povos (a Aty Guassu) e marcava uma posição: “A Funai, reafirma, assim, o compromisso de aprovar os Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação das terras indígenas Guarani e Kaiowá no Cone Sul/MS, dentro dos prazos pactuado na Aty Guassu”.

Em fevereiro de 2013, a ABA solicitou às autoridades a rigorosa apuração do ataque sofrido por um grupo de indígenas Guarani Kaiowa e Guarani Ñandéva, promovido por pistoleiros de fazendas localizadas no município de Caarapó-MS. Na ocasião, um adolescente Guarani Kaiowá foi assassinado a tiro de bala nas proximidades da Reserva/Aldeia Tey’i kue/Caarapó. Solicitou também a colocação em práticas de medidas que garantam a segurança física dos cerca de 200 indígenas acampados no local, pois havia o risco de novo ataque dos pistoleiros, e, sobretudo, a aceleração dos procedimentos para a delimitação e regularização de suas terras.

Dois meses após este ataque, em 18 de abril de 2013 nos manifestamos publicamente pela necessidade imperativa da observância de direitos dos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandéva em Mato Grosso do Sul. São mais de 50 mil indivíduos (um dos maiores contingentes indígenas do país) constrangidos a ínfimos espaços devido a um processo de expropriação de seus territórios tradicionais, que por conta disso padecem de inchaço populacional, apresentando altas taxas de violência e suicídio, além de uma extremamente precária situação econômica. A nota foi endereçada à presidenta Dilma Rousseff e protocolada na Presidência da República no dia 30 de abril de 2013, sendo assinada, ainda, pela SBPC – Sociedade para o Progresso da Ciência, a CESA – Sociedade Científica de Estudos da Arte, ANPUR – Associação Nacional de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional e SBP – Sociedade Brasileira de Psicologia (Ofício nº 015/2013/ABA/PRES).

Nela lembramos que por conta deste quadro e da tenaz reivindicação fundiária dos Guarani Kaiowa e os Guarani Ñandéva o Estado nacional colocou em campo seis GTs para identificação e delimitação territorial. Iniciados há cerca de cinco anos, estes estudos tiveram enormes dificuldades para serem realizados, devido a contínuas ingerências políticas e ações judiciais promovidas por segmentos ruralistas. Tais ações redundaram em inúmeras paralisações dos processos administrativos, bem como na instauração de um clima de violência local, que resultou no assassinato de diversos indígenas e na hostilidade aos antropólogos responsáveis pelos trabalhos.

Não obstante tais dificuldades, a maioria dos relatórios circunstanciados foi concluída. Porém, apenas um havia sido publicado: o relatório da T.I. Iguatemipegua I (composta por Pyelito Kue e Mbarakay), publicado em janeiro de 2013. Isso gerou, de imediato, reações de parte dos ruralistas, os quais, em pressão junto à Casa Civil, solicitaram a suspensão dos demais processos, buscando impedir a publicação dos respectivos relatórios. Diante do fato, requeremos celeridade nos procedimentos de regularização fundiária em Mato Grosso do Sul, com a publicação imediata dos referidos relatórios e a busca de caminhos eficazes para a garantia da posse da terra, imprescindíveis para a reprodução física e cultural das famílias indígenas.

Mas os fatos se precipitaram mais uma vez, mostrando a necessidade de ações concretas e urgentes. Poucos dias após aquele evento. Em maio de 2013 ocorre a trágica morte do professor Oziel Gabriel, do povo indígena Terena. Uma “mesa de negociação” é formada, mediada pelo Conselho Nacional de Justiça e com participação de integrantes do Governo Federal. A ação se mostrou paliativa, sem meios e vontade de decisão, as negociações na mesa emperrarem. Ou pior, o Executivo – principalmente, mas não unicamente, por obra do Ministro da Justiça – decidiu pela paralisação dos  processos administrativos de demarcação das terras indígenas realizados pela FUNAI, lesando assim o pleno direito territorial indígena, não apenas em Mato Groso do Sul, mas em todo o País.

Em junho passado (2015), mais uma vez ocorreram atos de violência cometidos por produtores rurais no acampamento de indígenas Guarani Kaiowa da comunidade de Kurusu Amba, no município de Coronel Sapucaia, em Mato Grosso do Sul. Conforme informações da imprensa digital, tais atos de violência redundaram na destruição e no incêndio de barracas improvisadas pelos índios, na morte de uma criança de cerca de um ano de idade, carbonizada, e no desaparecimento de pelo menos outras duas pessoas indígenas. É a quarta vez que os Kaiowa de Kurusu Amba são repelidos nas tentativas de retorno a seu território, perante a inoperância do Estado em cumprir seu papel constitucional de garantir estes territórios. Em todas as tentativas, um violento revide foi a tônica, com diversas mortes e graves ferimentos no lado indígena.

Tornando ao episódio de Kurusu Amba, pode-se afirmar que houve significativas mudanças no comportamento das forças policiais que operam em Mato Grosso do Sul, quando cotejado com o vigente na década de 1990 e no começo dos anos 2000. A Polícia Federal, que antes representava uma segurança para a incolumidade física dos indígenas, nos últimos tempos vem demonstrando formas de obstrucionismo em atuar tempestivamente para impedir ou limitar atos de violência. Em consequência, e com o intuito de preencher este vazio de atuação, tiveram que ser deslocados grupos da Força Nacional, contando, porém, com pouco efetivo e de forma sumamente intermitente. Completando esse quadro negativo, nos últimos anos os produtores rurais da região vêm contratando empresas especializadas em segurança, que passaram a agir organizadas como milícias paramilitares, amplificando tensões, avolumando atos de violência e insuflando um clima de insegurança e terror entre os indígenas. Entre estas, a empresa Gaspem Segurança, como denuncia o próprio MPF-MS, foi responsabilizada pelas mortes de várias lideranças indígenas, o que levou o seu proprietário a prisão domiciliar.(3)

Resumindo, pode-se afirmar que as inadimplências administrativas que emperram a publicação dos relatórios de identificação e delimitação das terras indígenas, a insegurança devida à ineficiência dos órgãos policiais, a atuação corrente e muitas vezes impune, de empresas de segurança e de capangas, unidas à judicialização dos processos de demarcação de terras, têm contribuído para inflamar em Mato Grosso do Sul um clima de tensão, no qual se consuma de forma paulatina um genocídio claramente anunciado. Ao manifestar certas atitudes e promover certas práticas e políticas, o Estado brasileiro, do Executivo ao Judiciário, passando pelo Congresso Nacional, torna-se inevitavelmente coparticipante deste processo, responsabilidade esta que a ABA vem aqui a ressaltar e a denunciar.

Associação Brasileira de Antropologia e sua Comissão de Assuntos Indígenas Brasília,

4/10/2015.

1. O MPF trata o caso como ação de genocídio, já que foi cometida violência motivada por questões étnicas contra uma coletividade indígena. Ainda no site consta que “nas fotos feitas é possível ver as marcas do ataque ao acampamento indígena, como barracos, pertences e alimentos queimados”. Para mais informações ver www.prms.mpf.gov.br/servicos/sala-de-imprensa/noticias/2011/09/

2. Neste episódio, o Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul denunciou seis pessoas, entre os quais políticos e fazendeiros da região. Eles são acusados por homicídio qualificado, ocultação de cadáveres, disparo de arma de fogo e lesão corporal contra idoso. Mais informações em www.prms.mpf.gov.br/servicos/sala-deimprensa/noticias/2011/11

3. A Gaspem (Grupo de Apoio, Segurança Privada e Empresarial) atua em Dourados e Região desde 1996. As investigações realizadas pelo o Ministério Público Federal levam-no a concluir que a GASPEM é “um grupo organizado o qual dissemina violência contra os guarani-kaiowá do cone sul do Estado de Mato Grosso do Sul através de pessoas brutais nominadas ‘vigilantes’, na maioria das vezes sem qualificação para o exercício da atividade, portando armamento pesado e munições, a fim de praticarem atos contrários ao ordenamento jurídico e à segurança pública”. Para mais informações ver http://www.prms.mpf.mp.br/servicos/sala-deimprensa/noticias/2015/06/decisao-livra-dono-da-gaspem-de-pagar-r-480-mil-a-vitimas-de-violencia-em-ms.

 

Fonte: Associação Brasileira de Antropologia - ABA
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